“Nós” divino

A expressão “nós”, a primeira pessoa no plural, presente em Gênesis 1:26, 3:22, 11:7 e Isaías 6:8, onde Deus se refere a si mesmo no plural, levanta várias questões exegéticas e teológicas. As tentativas de explicar esse fenômeno variam amplamente.

A teoria da reminiscência mitológica, proposta por Johann Gabler e defendida por Hermann Gunkel, sugere que o uso do plural por Deus reflete resquícios do politeísmo semita. Segundo essa visão, Deus estaria se dirigindo a outras divindades em um contexto onde o monoteísmo ainda não estava totalmente estabelecido. O ponto forte dessa teoria é que ela reconhece a possível influência de narrativas mitológicas antigas no texto bíblico. No entanto, enfrenta a forte objeção de que a Bíblia hebraica contém elementos antimito, que explicitamente rejeitam a existência de outros deuses.

A referência a Cristo, uma interpretação cristã inicial, vê o plural como uma indicação da Trindade, a relação entre o Pai e o Filho. Essa visão, atestada na Epístola de Barnabé e em Justino Mártir, foi posteriormente reafirmada no Primeiro Concílio de Sirmio, em 351 d.C. Sua força reside em sua conformidade com a doutrina trinitária desenvolvida no Novo Testamento. Contudo, a teoria é criticada por impor uma interpretação teológica posterior ao texto do Antigo Testamento, que não especifica a quem Deus está se dirigindo.

A comunicação do Pai com o Espírito Santo, defendida por D.J.A. Clines, argumenta que o contexto de Gênesis 1 aponta para o Pai se dirigindo ao Espírito Santo, ambos cocriadores. Essa interpretação é considerada atraente por reconhecer o papel do Espírito na criação, conforme mencionado em Gênesis 1:2 e Salmos 104:30. No entanto, ela é criticada por ignorar a participação de Jesus Cristo na criação, conforme expresso em João 1:1-3.

A teoria de que Deus se dirige a elementos terrenos, proposta por estudiosos judeus como Joseph Kimchi e Maimônides, sugere que Deus está se dirigindo à terra. O argumento aqui é que, como Deus criou Adão do pó da terra, a terra poderia ser vista como um parceiro na criação. No entanto, essa interpretação é fraca porque não há indicação de que a terra seja elevada ao status de cocriadora com Deus.

A teoria do plural de majestade, que compara o uso do plural por Deus ao discurso de monarcas, é uma teoria amplamente difundida em teologia popular, mas enfrenta críticas substanciais. Walter Martin argumenta que o hebraico bíblico não possui tal construção, pois ela não existia nas línguas do antigo Oriente Próximo. Além disso, o plural de majestade surgiu apenas no século XIII d.C., quando reis começaram a se associar à divindade, utilizando o plural para expressar autoridade. Portanto, aplicar essa interpretação ao texto bíblico seria um anacronismo, projetando um conceito posterior no passado. Essa crítica é reforçada por estudos como o de Joel Burnett, que examina o uso de Elohim e conclui que a explicação do plural de majestade é insustentável no contexto do hebraico bíblico e das culturas do antigo Oriente Próximo. A falta de evidências linguísticas e culturais nesse período torna a teoria do plural de majestade uma interpretação improvável.

A ideia de que Deus se dirige à sua corte celestial, defendida por John N. Oswalt e Nahum Sarna, argumenta que Deus está falando com anjos ou oficiais celestiais. Essa interpretação é atraente porque o Antigo Testamento menciona Deus se reunindo com sua corte celestial em algumas ocasiões (1 Reis 22:19-22, Jó 1:6-9, Daniel 4:14). No entanto, ela é criticada porque o paralelismo entre Gênesis 1:26 e 1:27 sugere que a criação do homem à imagem de Deus foi realizada exclusivamente por Deus, não por anjos.

O plural de autodeliberação, proposto por Umberto Cassuto e analisado por D.J.A. Clines, sugere que Deus está falando consigo mesmo, encorajando-se a realizar a criação. Essa teoria é criticada por carecer de paralelos bíblicos claros e por antropomorfizar Deus, atribuindo-lhe a necessidade de autoencorajamento.

O plural da plenitude, defendido por Derek Kidner e C. John Collins, interpreta o plural como uma comunicação interna dentro da Trindade. Essa teoria, que se refere a uma pluralidade dentro da divindade, é vista como a mais coerente com a teologia trinitária cristã, embora a terminologia usada tenha que ser melhor esclarecida.

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Teologia Própria

Teologia relacional

A teologia relacional é um movimento teológico e filosófico que enfatiza o conhecimento oriundo da relação com Deus mediante o encontro com a revelação.

A teologia relacional tende a ser próxima, porém distinta do teísmo aberto. Porém, alguns temas comuns a vulnerabilidade e abertura de Deus em ser voluntariamente afetado pelo que acontece na criação, particularmente em relação à humanidade. Ademais, ambas abordagens rejeitam concepções derivadas da filosofia grega, especialmente Platão e Aristóteles, para falar sobre Deus em termos a priori.

Os proponentes da teologia relacional rejeitam muitos pressupostos da noção teísta clássica de um Deus perfeito (no sentido de não ser capaz de mudar), impassível e imutável, bem como no conhecimento proposicional de Deus. Ao invés disso, concentra-se nas interações de dar e receber que caracterizam toda a existência, bem como no conhecimento posterior quando se conhece Deus revelado.

A teologia relacional se desenvolveu como um iniciativas isoladas no final do século XX e tem diversas raízes. Teve influências do Wesleyanismo, da devoção moderna, do pietismo e das teologias ortodoxas orientais. Viria a ser uma teologia distinta no final do século XX, ao combinar a filosofia analítica com críticas às teologias do processo e pós-modernas. São encontrados praticamente em todas as grandes tradições e ramos da teologia. Autores associados incluem Hegel, Horace Bushnell, I. A. Dorner, Emil Brunner, Kazoh Kitamori, Martin Buber, Juergen Moltmann, Robert Jenson, José María Castillo, Sergei Bulgakov, Clark Pinnock, John Sanders, Greg Boyd, Hans Urs Balthasar, Keith Ward, William Hasker, Amos Yong e Nicholas Wolterstorff. Dois expoentes a abraçar a identidade do movimento de teologia relacional são Thomas Jay Oord e William Andrew Schwartz. Oord enfatiza o caráter aberto da teologia relacional, enquanto outros teólogos concedem diferentes graus de perfeições descritas em termos estáticos.

Os teólogos relacionais enfatizam a natureza relacional de Deus conforme descrita na Bíblia, particularmente nas interações entre Deus e a humanidade. Eles também enfatizam a importância do amor, dos relacionamentos e da inter-relação na ética cristã e na vida da Igreja.

Essa perspectiva incentiva uma abordagem cristã aos relacionamentos e promove interações amorosas e traços de caráter que promovam relacionamentos positivos.

A teologia relacional critica nos teísmos clássicos os conceitos legados pela filosofia grega de impassibilidade e imutabilidade divina. Tais categorias e atributos de asseidade e impassibilidade afirmam que Deus permanece inalterado pela criação e imutável. Em contrapartida, essa abordagem de teologia afirma que Deus é relacional. Pela encarnação Deus demonstrou ser aberto a ser afetado e ativamente envolvido com as criaturas.

No sistema de teologia relacional a crença em um Deus pessoal/relacional disposto a interagir com a criação resolve vários paradoxos. De acordo com os principais articuladores da teologia relacional, os teólogos Oord e Schwartz, essa abordagem resolve o problema do mal.

BIBLIOGRAFIA
Brüntrup, Godehard; Göcke, Benedikt Paul; Jaskolla, Ludwig. Panentheism and Panpsychism: Philosophy of Religion Meets Philosophy of Mind. Innsbruck Studies in Philosophy of Religion, vol. 2, Brill, 2020.

Montgomery, Brint; Oord,Thomas Jay; Winslow, Karen , eds. Relational theology: A contemporary introduction. Wipf and Stock Publishers, 2012.

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Kenosis