O tolo e a tolice, no horizonte bíblico, não se definem pela ausência de inteligência, mas por uma deformação espiritual e moral que se opõe frontalmente à sabedoria (ḥokmāh, חָכְמָה), entendida como o conhecimento prático enraizado no temor de YHWH. A sabedoria é o princípio da vida ordenada, e a tolice, sua negação ética e teológica. A literatura sapiencial estrutura-se sobre essa tensão entre o justo e o insensato, o sábio e o tolo, não como categorias cognitivas, mas como destinos espirituais.
No hebraico bíblico, a linguagem da insensatez abrange uma gradação de tipos. O pěṯî (פֶּתִי) é o simples ou ingênuo, mente aberta e vulnerável, ainda educável, mas facilmente seduzido pelo erro. Sua tolice deriva da inexperiência, não da malícia, e pode ser corrigida pela instrução. O ’ĕwîl (אֱוִיל) é o tolo obstinado, arrogante e verbalmente precipitado, cuja resistência à correção reflete um desprezo ativo pela sabedoria. O kĕsîl (כְּסִיל) é o estúpido e obtuso, moralmente preguiçoso, incapaz de aprender mesmo quando advertido; sua kesîlût (כְּסִילוּת) conduz à ruína pessoal e social. O nābāl (נָבָל), termo mais grave, indica o ímpio e corrupto, cuja tolice é expressão de impiedade deliberada. Ele não é apenas ignorante, mas moralmente degenerado: “Diz o nābāl no seu coração: não há Deus” (Sl 14:1). Nesse sentido, a tolice é teológica antes de ser psicológica; é a recusa prática do temor do Senhor e a dissolução da ordem moral.
No aramaico bíblico, termos paralelos aparecem em Daniel e Esdras, ainda que com menor densidade teológica. Já na tradição rabínica, a distinção entre o tolo ingênuo e o ímpio endurecido se mantém: o primeiro pode ser instruído; o segundo, apenas punido. A sabedoria rabínica prolonga o contraste veterotestamentário entre ḥakham (sábio) e kesîl, interpretando-o como a diferença entre quem teme a Torá e quem a despreza.
No Novo Testamento, a tolice adquire dimensão cristológica e escatológica. O termo áphrōn (ἄφρων) designa o insensato que vive sem discernimento espiritual, ignorando a vontade de Deus. Jesus o aplica ao rico que acumula bens, mas perde a própria alma (Lc 12:20), e Paulo o contrapõe ao sábio que remi o tempo e age segundo o Espírito (Ef 5:15–17). O vocábulo mōrós (μωρός) — de onde deriva moria (μωρία), “loucura” — denota o tolo estúpido, o insensível às exigências do Reino. Nas parábolas de Jesus, as virgens mōrai (Mt 25:2–8) são as imprudentes que, por negligência, perdem a hora do Esposo, imagem do juízo final.
Paulo inverte a lógica humana ao chamar de “loucura” (moria) a sabedoria de Deus revelada na cruz (1Co 1:18–25). A cruz, sinal de escândalo e irracionalidade aos olhos do mundo, é, para a fé, a verdadeira sabedoria. A oposição entre sabedoria e tolice culmina, assim, na revelação cristã: a verdadeira sophia (σοφία) é Cristo crucificado; a verdadeira moria é rejeitá-lo.
Na teologia bíblica, o tolo não é o desprovido de razão, mas o desprovido de temor — aquele que confunde autonomia com liberdade e ignora o limite imposto pela sabedoria divina. A tolice é, portanto, uma desordem do coração, um distúrbio ético e espiritual que conduz à morte. O sábio vive sob o yir’at YHWH (יִרְאַת יְהוָה), o “temor do Senhor”; o tolo, sob a ilusão de autossuficiência. Entre ambos, estende-se o drama da liberdade humana diante da revelação: escolher a sabedoria é escolher a vida; persistir na tolice é escolher a perdição.
