Fundamentalismo é a designação dada tanto a vertentes doutrinárias cristãs quanto a fenômentos sociológicos.
1. Fundamentalismo como fenômeno sociológico
O fundamentalismo pode ser definido como um fenômeno sociológico complexo, caracterizado por uma adesão fervorosa a um conjunto de crenças percebidas como verdades absolutas. Sua emergência se dá em resposta a ameaças percebidas à identidade, valores ou tradições de um grupo, frequentemente em contextos de rápidas transformações sociais e culturais da modernidade.
Dentre as características principais do fundamentalismo, destacam-se:
- Reivindicação de um literalismo escritural: Observa-se uma interpretação intransigente dos textos sagrados, considerados inerrantemente como a autoridade máxima em todas as questões. Contudo, apenas a interpretação autorizada pelo grupo é considerada válida. As frequentes alegações de interpretação literal das escrituras não resistem a um escrutínio hermenêutico rigoroso, visto que algumas partes dos textos são lidas literalmente enquanto outras não, a fim de adequá-los à ideologia do grupo.
- Rejeição da modernidade: Constata-se uma resistência a valores, ideias e práticas modernas, percebidas como elementos que corroem as crenças e normas sociais tradicionais. Apesar de aderir a um ideal de tradição e passado, trata-se antes de uma criação e resposta da modernidade.
- Fronteiras Rígidas: Verifica-se a criação de distinções claras entre crentes e não-crentes, o que frequentemente conduz à exclusão social e à intolerância. Isso pode levar a um paradoxal separatismo em relação à sociedade ampla, com formação paralelas de suas próprias instituições (escolas, clínicas) ao mesmo tempo que fomenta o ativismo político para impor suas visões à sociedade ampla não aderente ou com um discurso de ameaça a seus valores.
- Ativismo Político: Nota-se um engajamento em ações políticas com o objetivo de promover suas crenças e moldar a sociedade de acordo com sua visão ideal de realidade.
- Liderança Carismática: Observa-se a dependência de líderes carismáticos e tradicionais. Tais líderes podem alegar possuir uma compreensão privilegiada da vontade divina e, por conseguinte, guiam seus seguidores. Outras vertentes valorizam figuras que expressem autoridade tradicionais, apresentando-os como
O fundamentalismo manifesta-se em diversas tradições religiosas, incluindo o Cristianismo, o Islamismo, o Judaísmo e o Hinduísmo. É crucial salientar que nem todos os adeptos dessas religiões são fundamentalistas. O fundamentalismo representa uma resposta específica à modernidade e à secularização, marcada pela rigidez, exclusividade e resistência à mudança.
2. Fundamentalismo cristão
O fundamentalismo cristão é uma vertente encontrada no protestantismo, com equivalentes no catolicismo e ortoxia oriental. Surgiu no final do século XIX e início do século XX, com a publicação da série de livretos chamados Os Fundamentais. Originalmente um movimento angloamericano, propagou-se pelo mundo mediante literatura, missionários, ativismo e cooperação.
A Controvérsia Fundamentalista-Modernista, um cisma marcante no protestantismo americano do início do século XX, eclodiu em meio a debates sobre a interpretação da Bíblia e a adaptação da fé cristã à modernidade. Fundamentalistas, apegados à inerrância bíblica e à ortodoxia doutrinária, defendiam a imutabilidade da fé cristã (Judas 1:3). Modernistas, influenciados pelo Iluminismo e pela ciência moderna, buscavam reinterpretar a fé à luz de novas descobertas.
O conflito se intensificou com a ascensão do que chamavam de “alta crítica”, método que analisava a Bíblia como documento histórico-literário, e com o caso Briggs. A publicação de “The Fundamentals” (1910-1915) e o sermão “Shall the Fundamentalists Win?” (1922) de Harry Emerson Fosdick cristalizaram as facções. O julgamento de Scopes (1925), sobre o ensino da evolução, evidenciou a polarização entre fundamentalistas, liderados por William Jennings Bryan, e modernistas, representados por Clarence Darrow.
Figuras como J. Gresham Machen, defensor da ortodoxia, e Charles Erdman, conciliador, protagonizaram debates teológicos e institucionais. A cisão se concretizou com a fundação do Seminário Teológico de Westminster por Machen e seus seguidores, após a reorganização do Seminário de Princeton em 1929. A controvérsia se estendeu às missões estrangeiras, culminando na criação da Junta Independente para Missões Estrangeiras Presbiterianas e na formação da Igreja Presbiteriana Ortodoxa em 1939. Muitas igrejas locais independentes adotaram a designação “igreja bíblica”, sendo várias delas associadas à Fellowship of Fundamental Bible Churches em 1939.
No geral, o fundamentalismo era cessacionista e amplamente demonizava o pentecostalismo. Contudo, as primeiras gerações pentecostais a buscarem um avanço em educação teológica acabavam por consumir materiais fundamentalistas e adaptá-los à espiritualidade e teologia pentecostais, carregando muito do conteúdo fundamentalista para suas denominações, principalmente entre pentecostais dos Estados Unidos.
Em meados do século XX, uma nova cisão começou a se formar dentro do movimento fundamentalista. Insatisfeitos com o isolamento e o que viam como um anti-intelectualismo crescente, alguns fundamentalistas buscaram uma reaproximação com a cultura e um diálogo mais construtivo com a sociedade. Esse grupo, que passou a se identificar como “evangelical”, mantinha a crença na inerrância bíblica e nas doutrinas fundamentais da fé cristã, mas rejeitava o separatismo e a militância política que caracterizavam os fundamentalistas “clássicos”. Líderes como Billy Graham e Harold Ockenga lideraram esse movimento em direção a uma maior ênfase no evangelismo e na ação social, buscando influenciar a cultura através do diálogo e da persuasão, em vez do confronto. Essa separação resultou na formação de novas instituições e organizações, como a Associação Nacional de Evangélicos (NAE), e marcou o início de uma nova fase no protestantismo americano, com os evangélicos assumindo um papel cada vez mais proeminente na vida religiosa e política dos Estados Unidos.
A partir da década de 1970, uma nova onda de defesa do fundamentalismo ganhou força entre os americanos. Dentro da Sociedade Teológica Evangélica (ETS), a controvérsia sobre a inerrância bíblica se intensificou, culminando na expulsão de membros. A coordenação de vertentes fundamentalistas, como a “ressurgência conservadora” entre os batistas levaram à tomada de posições-chave em estruturas denominacionais. Coincide com a emergência do novo calvinismo. A Declaração de Cambridge consolidou os posicionamentos do neofundamentalismo. Todas essas tendências também estavam conexas com as políticas partidárias norteamericanas, desde a eleição de Jimmy Carter.
BIBLIOGRAFIA
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Noll, Mark A. The Scandal of the Evangelical Mind. Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1994.
Marsden, George M. Fundamentalism and American Culture: The Shaping of Twentieth-Century Evangelicalism: 1870–1925. New York: Oxford University Press, 1980.
