A concepção de uma Assembleia Divina, Conselho Divino ou Concílio Divino sera um conselho de seres divinos que auxiliam na administração do cosmos sob a autoridade de uma divindade suprema, é um tema recorrente em diversas culturas do antigo Oriente Próximo, incluindo a israelita. Embora a ideia de um conselho divino seja comum a várias culturas, a religião de Israel apresenta características distintivas que merecem atenção.
A Bíblia Hebraica contém diversas referências a uma assembleia de seres divinos sob a autoridade de Yahweh, o Deus de Israel. Textos como Salmos 82:1, 89:5-7 e 29:1 mencionam explicitamente a existência de um conselho divino, utilizando termos como “assembleia de El” (עֲדַת־אֵל), “assembleia dos santos” (בִּקְהַל קְדֹשִׁים) e “filhos de Deus” (בְּנֵי אֵלִים).
A descoberta de textos ugaríticos, provenientes da antiga cidade de Ugarit (Ras Shamra), forneceu evidências importantes para a compreensão da Assembleia Divina na Bíblia Hebraica. A língua ugarítica, uma língua semítica aparentada ao hebraico bíblico, apresenta paralelos linguísticos e conceituais significativos com os textos bíblicos. Os textos ugaríticos descrevem um conselho de deuses liderado por El, o mesmo termo usado na Bíblia Hebraica para se referir a deuses e ao próprio Deus de Israel.
Tanto em Ugarit quanto na Bíblia Hebraica, a morada divina e o local de encontro da Assembleia Divina são frequentemente descritos como uma montanha ou um jardim exuberante. Em Ugarit, o conselho se reunia nas “tendas de El” ou em seu “santuário de tenda”, localizado na “fonte dos dois rios”. Na Bíblia Hebraica, o tabernáculo (מִשְׁכַּן), a Tenda do Encontro (אֹהֶל מוֹעֵד), o Monte Sinai, o Monte Sião e o Jardim do Éden são apresentados como locais de encontro com o divino e possíveis locais da Assembleia Divina.
A estrutura da Assembleia Divina em Ugarit e na Bíblia Hebraica apresenta similaridades e diferenças. Em Ugarit, o conselho era possivelmente composto por quatro níveis hierárquicos, com El e sua esposa Athirat no topo, seguidos pela família real (“filhos de El”), deidades artesãs e mensageiros (mlʾkm). Na Bíblia Hebraica, a estrutura parece ser tripartite, com Yahweh ocupando o lugar supremo, seguido pelos “filhos de Deus” (בְּנֵי אֵלִים) ou “filhos do Altíssimo” (בְּנֵי עֶלְיוֹן) e, possivelmente, pelos anjos (מַלְאָכִים).
Uma diferença crucial entre a Assembleia Divina israelita e a cananeia reside na figura de Yahweh. Enquanto em Ugarit o poder era compartilhado entre El e Baal, seu co-regente, na Bíblia Hebraica Yahweh assume ambos os papéis, fundindo em si as características de El e Baal. Essa fusão teológica coloca Yahweh como a autoridade suprema e única, superior a qualquer outra divindade.
A Bíblia Hebraica apresenta exemplos de deliberação e até mesmo oposição dentro da Assembleia Divina, mas a vontade de Yahweh sempre prevalece. Em 1 Reis 22:19-23, Yahweh permite que os membros do conselho opinem sobre como Ahab deve morrer, mas a decisão final é Sua. O episódio da Torre de Babel (Gênesis 11) e o Salmo 82 demonstram que Yahweh delega autoridade aos membros do conselho, mas os responsabiliza por suas ações e os julga quando agem de forma corrupta.
A presença de uma Assembleia Divina na Bíblia Hebraica não implica politeísmo ou henoteísmo. Yahweh é apresentado como o Deus único e incomparável, o criador de todas as coisas, inclusive dos membros do conselho divino. O termo אֱלֹהִים (elohim), traduzido como “Deus” ou “deuses”, pode se referir a diferentes seres, mas Yahweh é único em Sua essência e poder. As frases que parecem negar a existência de outros deuses devem ser interpretadas como afirmações da incomparabilidade de Yahweh, e não como uma negação literal da existência de outros seres divinos.
O termo “Satanás” (הַשָּׂטָן), que aparece em Jó 1-2, não se refere ao Diabo como o conhecemos no Novo Testamento. Nesse contexto, o Satanás é um membro da Assembleia Divina, responsável por testar a fidelidade dos seres humanos. Sua função é questionar a justiça de Deus e instigar testes de fé, mas ele age sob a autoridade de Yahweh.
Os profetas bíblicos frequentemente se apresentam como mensageiros da Assembleia Divina, comissionados por Yahweh para transmitir Sua palavra ao povo. Profetas como Isaías, Ezequiel e Jeremias descrevem experiências de serem levados à presença de Yahweh e receberem mensagens do conselho divino. A Assembleia Divina também é retratada como um exército celestial que participa da guerra escatológica e serve como testemunha dos decretos e ações de Yahweh.
A estrutura binária da Assembleia Divina na Bíblia Hebraica, com Yahweh ocupando o lugar de El e de Baal, tem implicações para a cristologia do Novo Testamento. Jesus é apresentado como o “segundo Yahweh”, o co-regente que compartilha a glória e o poder do Pai. Ele é descrito como o “unigênito” (μονογενής) Filho de Deus, o que significa que Ele é único em Sua relação com o Pai, mas não nega a existência de outros “filhos de Deus” na Bíblia Hebraica. Em João 10:34, Jesus cita o Salmo 82 para defender Sua divindade, afirmando que Ele é um dos “filhos de Deus” (אֱלֹהִים) mencionados no Salmo.
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