Lecionários

Lecionários são livros ou listas de leituras bíblicas (perícopes) designadas para dias ou ocasiões específicas no calendário litúrgico. A história do lecionário reflete o desenvolvimento das práticas litúrgicas, a organização das Escrituras e as necessidades da comunidade cristã ao longo do tempo.

Evidências Bíblicas

As Escrituras oferecem evidências de práticas de leitura regulares, tanto em sinagogas quanto em igrejas.

O episódio em que Jesus lê um trecho de Isaías na sinagoga de Nazaré, descrito em Lucas 4:16-20, ilustra um ritual de leitura estabelecido, com um local designado para o leitor e a entrega de um texto específico, sugerindo um sistema de leituras programadas.

Em Atos 13:15, a menção da leitura da Lei e dos Profetas na sinagoga de Antioquia, seguida pelo convite para Paulo e Barnabé falarem, indica que as leituras eram selecionadas dessas duas divisões principais do Antigo Testamento.

A afirmação de Tiago em Atos 15:21, sobre a leitura da Lei de Moisés em todas as sinagogas a cada sábado, reforça a ideia de um ciclo de leitura regular e contínuo da Torá.

Nas igrejas, a exortação de Paulo a Timóteo para se dedicar à leitura pública das Escrituras, ao ensino e à exortação (1 Timóteo 4:13), embora não detalhe um ciclo de leitura, sugere uma prática regular e planejada. A instrução de Paulo aos Colossenses para lerem sua carta para a igreja em Laodiceia e vice-versa (Colossenses 4:16) indica que as cartas apostólicas também eram lidas publicamente nas igrejas, provavelmente seguindo algum tipo de ordem ou programação.

Na apresentação do Apocalipse como uma revelação a ser lida nas igrejas (Apocalipse 1:3), com a menção de bênçãos para aqueles que leem e ouvem as palavras da profecia, sugere que o Apocalipse também se destinava a fazer parte das leituras litúrgicas.

Cristianismo da Antiguidade

Nos primeiros séculos do cristianismo (I-III), a tradição oral era central, com as Escrituras sendo lidas em voz alta durante os cultos, provavelmente escolhidas pelo ministro presidente. Sem um sistema formal de lecionários, as leituras, que compreendiam trechos do Antigo Testamento, dos Evangelhos e das Epístolas, eram frequentemente selecionadas ad hoc, sob influência das práticas da sinagoga judaica.

Com a canonização do Novo Testamento e o uso generalizado de códices (livros), entre os séculos IV e V, as leituras passaram a ser organizadas de forma mais sistemática, marcando o surgimento dos primeiros lecionários formais, inicialmente listas de leituras para dias específicos, frequentemente escritas nas margens dos manuscritos bíblicos. Simultaneamente, o ano eclesiástico começou a se estruturar, com ciclos de festas e estações exigindo leituras bíblicas apropriadas, como evidenciado por anotações marginais no Codex Alexandrinus.

Cristianismo Medieval e Reforma

Na Igreja Oriental (Bizantina), os lecionários tornaram-se altamente organizados entre os séculos V e X, com o desenvolvimento do Menologion e do Synaxarion, e a criação de livros separados para leituras dos Evangelhos (Evangelion) e das Epístolas (Apostolos), refletindo um ano litúrgico com festas fixas e móveis.

No Ocidente (Latino), os lecionários, chamados Comes ou Capitularia, desenvolveram-se junto com o Rito Romano e outros ritos locais, frequentemente incluídos em sacramentários. Sob o papa Gregório Magno (séc. VI), a liturgia romana foi padronizada, uniformizando os lecionários, como o Lecionário de Würzburg.

Na Idade Média (séc. XII-XV), com a expansão do ano litúrgico, os lecionários, frequentemente iluminados, foram incorporados a breviários e missais. Após a Reforma (séc. XVI-XVII), reformadores como Lutero e Calvino revisaram os lecionários, enquanto a Igreja Anglicana incluiu um lecionário no Livro de Oração Comum, e a Igreja Católica padronizou o lecionário como parte da Missa Tridentina.

Usos contemporâneos

No século XX, o Concílio Vaticano II revisou o lecionário católico, introduzindo um ciclo de três anos para as leituras dominicais e um ciclo de dois anos para os dias da semana, com maior variedade de escrituras. Os lecionários ecumênicos, como o Revised Common Lectionary, foram adotados por diversas denominações protestantes, e, no século XXI, os lecionários digitais tornaram-se amplamente acessíveis.

Importância para a crítica textual

Na crítica textual do Novo Testamento, os lecionários registram um “instantâneo” do texto como era conhecido e utilizado por uma comunidade cristã em um determinado tempo e lugar.

Existem mais de 2.300 manuscritos de lecionários gregos, uma quantidade que os torna um dos maiores grupos de testemunhas textuais. Essa vasta coleção permite a análise da distribuição geográfica e cronológica de variantes específicas, ajudando a traçar como o texto da Bíblia evoluiu e se espalhou por diferentes regiões ao longo dos séculos. A tendência conservadora do texto litúrgico é uma das suas maiores vantagens, pois as leituras estabelecidas no culto público tendiam a resistir a mudanças. Isso significa que os lecionários podem, em alguns casos, preservar leituras muito antigas que foram substituídas em manuscritos de texto contínuo por versões mais recentes e padronizadas.

O estudo dos lecionários tem ajudado a entender a influência da liturgia na produção de outros manuscritos. Um escriba que copiava um códice de texto contínuo, como um Evangelho, podia ser inconscientemente influenciado pelas leituras que ouvia regularmente na igreja. Isso explica fenômenos como a harmonização de passagens e a adição de conclusões litúrgicas, como a doxologia no final da oração do Pai Nosso em Mateus 6:13, que provavelmente foi inserida de seu uso no culto para os manuscritos posteriores. A grande maioria dos lecionários contém a família tipo de texto Bizantino, tornando-os testemunhas primárias da forma textual mais amplamente utilizada por mais de um milênio na Igreja Ortodoxa Grega.

Apesar de seu valor, os lecionários enfrentam limitações. Eles não são considerados testemunhas primárias porque o texto foi frequentemente editado intencionalmente para a leitura pública. Versos podem ser omitidos para suavizar o fluxo de leitura, e introduções e conclusões padronizadas são adicionadas. A fragmentação do texto em perícopes também remove o contexto imediato, o que é crucial para avaliar qual variante textual faz mais sentido. Além disso, a maioria dos manuscritos de lecionários completos data do século VIII em diante, sendo geralmente mais recentes que os códices unciais mais importantes. Por isso, a importância deles é mais histórica e corroborativa, auxiliando a confirmar a dominância do texto bizantino e a entender o ambiente litúrgico que moldou a transmissão textual.

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