Terceiro uso da lei

O “terceiro uso da lei” (em latim, tertius usus legis) é uma doutrina distintiva da teologia luterana, que busca clarificar o papel da lei mosaica na vida dos cristãos, após a justificação pela fé. Este conceito, embora derivado da teologia de Martinho Lutero, foi desenvolvido e debatido, principalmente, por Filipe Melâncton e outros teólogos luteranos. A questão central reside em se a lei possui um papel normativo e diretivo para os crentes, já justificados pela graça de Deus.

A Reforma Protestante trouxe uma ênfase renovada na justificação sola fide (somente pela fé), contrastando com as doutrinas católicas romanas que enfatizavam as obras. Lutero, ao interpretar as epístolas de Paulo, especialmente Romanos e Gálatas, destacou que a lei revela o pecado e condena, mas não pode justificar. Para ele, a justificação é um ato gracioso de Deus, recebido pela fé em Cristo.

No entanto, a questão de como a lei se relaciona com os cristãos após a justificação gerou debates. Lutero identificou dois usos principais da lei:

  1. Uso Teológico ou Pedagógico (usus theologicus/paedagogicus): A lei revela o pecado e a necessidade de Cristo, conduzindo o pecador à fé.
  2. Uso Civil ou Político (usus civilis/politicus): A lei mantém a ordem social e restringe o mal na sociedade.

O terceiro uso, que se refere ao papel da lei como guia para a vida cristã, foi o ponto de discórdia.

Filipe Melâncton, colaborador de Lutero, defendeu que a lei continua a ter um papel instrutivo para os crentes. Em sua Loci Communes, ele argumentou que a lei serve como um guia para a santificação, mostrando aos cristãos como viver em conformidade com a vontade de Deus. Melâncton enfatizou que a lei, agora vista à luz do evangelho, não condena, mas instrui.

No entanto, muitos luteranos, conhecidos como “luteranos estritos” ou “antinomistas”, resistiram a essa ideia. Eles temiam que o terceiro uso da lei pudesse obscurecer a doutrina da justificação sola fide, sugerindo que as obras de obediência à lei contribuem para a salvação. Eles enfatizaram que a vida cristã é guiada pelo Espírito Santo, e não pela lei.

Melâncton e seus seguidores:

  • A lei, em sua essência, reflete a vontade de Deus e, portanto, é relevante para os cristãos.
  • A lei, agora vista através das lentes do evangelho, instrui os crentes em como expressar sua gratidão a Deus através de uma vida de obediência.
  • O Espírito Santo capacita os crentes a obedecerem à lei, não como uma forma de alcançar a salvação, mas como uma expressão de sua fé.
  • Luteranos estritos:
    • A lei, após a justificação, não tem papel normativo para os crentes.
    • A ênfase na lei pode levar ao legalismo e obscurecer a graça de Deus.
    • O Espírito Santo é o único guia para a vida cristã.

A Formula de Concórdia (1577), um documento confessional luterano, buscou resolver essa controvérsia. Afirmou que a lei, no terceiro uso, é útil para os crentes, mas com algumas qualificações importantes:

  • A lei não é um meio de justificação, mas um guia para a santificação.
  • A lei é vista à luz do evangelho, que revela a graça e o amor de Deus.
  • A obediência à lei é uma resposta à graça de Deus, e não uma condição para ela.
  • A lei revela a vontade de Deus, e como a natureza humana, mesmo justificada, ainda possui tendencias pecaminosas, ela serve para instruir e exortar os crentes.

A Formula de Concórdia procurou equilibrar a ênfase na graça e na lei, afirmando que ambas são essenciais para a vida cristã.

O debate sobre o terceiro uso da lei tem implicações significativas para a ética cristã e a vida em igreja:

  • Manter a doutrina da justificação sola fide como o fundamento da vida cristã.
  • Reconhecer a relevância da lei como uma expressão da vontade de Deus.
  • Evitar o legalismo, que busca alcançar a salvação através das obras.
  • Entender que a obediencia é uma resposta a graça divina, e não um meio de consegui-la.

BIBLIOGRAFIA

  • Kolb, Robert. Luther’s Treatise on Christian Liberty and Its Significance for the Church Today. Baker Academic.
  • Nestingen, James A. Martin Luther: A Life. Fortress Press.
  • Veith, Gene Edward. Law and Gospel: How to Read and Apply the Bible. Concordia Publishing House.
  • Wengert, Timothy J. Human Freedom, Sin, and Justification in Luther. Eerdmans.
  • Formula of Concord. Solid Declaration, Article VI, “On the Third Use of the Law.”

Lei e Graça

A relação entre Lei e Graça é um tema central na teologia cristã, permeando discussões sobre salvação, justificação e o papel da lei na vida do crente. No entanto, a compreensão dessa relação exige uma análise cuidadosa dos diferentes significados do termo “lei” e do contexto histórico-redentor em que a Lei Mosaica foi inserida.

Diferentes Significados da Lei

O termo “lei” nas Escrituras pode se referir a diferentes coisas:

  1. Os Dez Mandamentos: A expressão máxima da lei moral, entregue por Deus a Moisés no Monte Sinai.
  2. O Pentateuco (Torá): Os cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), que contêm a lei cerimonial, judicial e moral.
  3. O Pacto Mosaico: A aliança entre Deus e a nação de Israel, baseada na obediência à lei.
  4. O Antigo Testamento: Usado metonimicamente por Paulo e Cristo para se referir a toda a revelação divina anterior à vinda de Cristo.

A Lei como Aio

Em Gálatas 3:24-25, Paulo afirma que “a lei foi o nosso aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados pela fé”. A lei, portanto, não tinha como objetivo primordial a salvação, mas sim preparar o caminho para Cristo. Assim como Deus escolheu Maria para ser a mãe do Salvador, Ele também escolheu um povo, Israel, para ser o instrumento de Sua revelação e preparar o mundo para a vinda do Messias.

A história do povo hebreu, com sua lei e seus profetas, serviu como um “aio”, conduzindo a humanidade à compreensão da necessidade de um Salvador. A lei, no entanto, era impotente para salvar. Nenhuma parte da aliança mosaica continha a promessa de vida eterna, e muitos judeus da época de Cristo (como os saduceus) sequer acreditavam na ressurreição.

O Propósito da Lei

A Lei Mosaica era um pacto entre Deus e um povo específico, Israel, dentro de um contexto histórico particular. Suas normas decorriam desse pacto e não se aplicam universalmente a todos os povos. Os aspectos morais da lei, como a regra áurea (“tratar o próximo como a si mesmo”), são comuns a diversas culturas e não exigem a adesão à Lei Mosaica para serem reconhecidos como válidos.

A lei cerimonial, com seus sacrifícios e rituais, apontava para o sacrifício perfeito de Cristo, que proporcionaria a salvação à humanidade. Os sacrifícios de animais não estabeleciam uma ligação permanente com Deus, mas sim um reconhecimento da necessidade de expiação e um anseio por um Salvador.

A Graça em Cristo

A vinda de Cristo marca a transição da Lei para a Graça. Enquanto a lei condenava e exigia obediência perfeita, a graça oferece perdão e justificação pela fé em Cristo. A lei serviu como um “aio”, conduzindo as pessoas a Cristo, que cumpriu a lei em nosso lugar e oferece a salvação a todos que creem.

A história de Sansão ilustra a fidelidade de Deus em cumprir Seus propósitos, mesmo diante das falhas humanas. Assim como Sansão libertou Israel em sua morte, Cristo libertou a humanidade do pecado e da morte por meio de Seu sacrifício.

Relação entre Lei e Graça em diferentes sistemas teológicos

Patrística: Os primeiros pensadores cristãos abordaram a relação entre a lei e a graça de maneiras distintas, como podemos ver em Ptolomeu, Marcion e Justino Mártir:

  • Ptolomeu, um gnóstico valentiano, propôs que todas as Escrituras (o Antigo Testamento) devem ser analisadas, mas apenas os ensinamentos de Jesus sobre a Lei são aplicáveis aos cristãos.
  • Marcion de Sinope, por sua vez, levou ao extremo a tensão entre Lei e Graça presente nas cartas de Paulo. Para ele, havia uma contradição fundamental entre a Lei e a Graça, e os cristãos deveriam seguir apenas a Graça, ignorando completamente a Lei.
  • Justino Mártir, por outro lado, apresentou uma visão mais conciliadora, argumentando que a Lei era uma profecia que apontava para a Graça. Ou seja, a Lei tinha seu propósito, mas a Graça a complementa e a transcende.

Visão Luterana: A lei tem uma tríplice função: expõe o pecado (o “pedagogo” que leva a Cristo), leva ao arrependimento (contrição e conversão) e serve como um guia para a vida cristã (embora não como um meio de ganhar a salvação). A teologia luterana enfatiza a distinção entre lei e evangelho. O evangelho é a mensagem da graça de Deus recebida pela fé em Cristo somente. A justificação é pela graça, por meio da fé, independentemente das obras da lei.

Visão Reformada: A lei tem uma função tríplice semelhante à da teologia luterana (expondo o pecado, levando ao arrependimento e guiando a vida cristã). No entanto, a teologia reformada enfatiza a unidade do propósito de Deus em toda a Escritura. A lei, mesmo após a justificação, continua a ser um guia para a santificação do crente. Ela fornece um padrão de justiça e motiva a obediência, não como uma forma de ganhar a salvação, mas como uma resposta grata à graça de Deus. A lei é assim vista como um “mestre-escola” para nos conduzir a Cristo e uma “regra de vida” para o crente.

Visão Ortodoxa Oriental: A teologia ortodoxa não enfatiza a mesma distinção nítida entre lei e graça como as tradições ocidentais. A salvação é entendida mais em termos de teose (tornando-se semelhante a Deus), um processo de transformação gradual através da participação na vida divina. A lei, em seus aspectos morais, é vista como uma expressão da vontade de Deus e um guia para essa transformação. A graça é entendida como as energias não criadas de Deus que capacitam esse processo. Enquanto a lei revela a fraqueza humana, é a graça que cura e aperfeiçoa.

Visão Católica Romana (após Nostra Aetate): A visão católica enfatiza a cooperação da graça e das obras. Embora reconhecendo a primazia da graça, ensina que os crentes justificados são chamados a cooperar com a graça por meio de boas obras, que são meritórias para a vida eterna. A lei, tanto natural quanto revelada, desempenha um papel em guiar os crentes para uma vida justa, que é em si um fruto da graça. Nostra Aetate e documentos subsequentes enfatizaram uma maior apreciação por outras tradições religiosas e sua busca pela verdade e bondade, reconhecendo que a graça de Deus pode estar operando de maneiras que não compreendemos totalmente.

Visão Metodista e de Santidade: A teologia metodista enfatiza a graça preveniente (a graça de Deus que precede e nos capacita a responder) e a graça justificadora (perdão dos pecados). A santificação, uma ênfase fundamental, é entendida como um processo de crescimento em santidade por meio da obra do Espírito Santo. A lei, embora não seja o meio de salvação, é um guia para a vida santa e um meio de graça, convencendo do pecado e provocando a necessidade de mais graça para superá-lo. A perfeição cristã, embora compreendida de várias maneiras, é um objetivo fundamental.

Visão Anabatista: Os anabatistas enfatizam o discipulado e uma obediência radical aos ensinamentos de Cristo, incluindo o Sermão da Montanha. A lei, particularmente como incorporada nos ensinamentos éticos de Jesus, é vista como um guia para a vida cristã em uma comunidade de crentes. A graça capacita essa obediência, mas requer uma escolha consciente e deliberada de seguir a Cristo. Há uma forte ênfase nas implicações éticas do Evangelho.

Visão Pentecostal Clássica: Os pentecostais enfatizam o poder do Espírito Santo para a vida cristã. Embora reconhecendo a importância da lei de Deus, eles enfatizam o poder transformador da graça por meio do Espírito. A lei não é vista como um fardo, mas como um guia para aqueles que são capacitados pelo Espírito. Dons espirituais e experiências são frequentemente vistos como confirmações da graça de Deus e como ferramentas para viver uma vida santa.

Visão Dispensacionalista: O dispensacionalismo divide a história da salvação em diferentes dispensações, cada uma com sua própria maneira de se relacionar com Deus. Enquanto a lei era central na dispensação do Antigo Testamento, a dispensação atual é caracterizada pela graça. No entanto, mesmo na era da graça, os princípios morais da lei permanecem relevantes como um guia para a vida cristã. Os dispensacionalistas frequentemente enfatizam o papel futuro da lei em um reino terreno restaurado.

Abordagens recentes

Há cinco visões sobre Lei e Graça, conforme apresentado no livro Five Views on Law and Grace, editado por Greg Bahnsen.

  1. Reformada Não-Teonômica (William A. VanGemeren): A validade permanente da lei moral como um guia para a vida cristã. No entanto, ele rejeita a teonomia, a visão de que as leis judiciais ou civis do Antigo Testamento devem ser aplicadas diretamente às sociedades modernas. Enfatiza a unidade do propósito redentor de Deus em toda a Escritura, com a lei servindo como um meio de graça e um guia para a santificação, mas dentro do contexto da Nova Aliança. Ele vê a lei como interpretada e cumprida por Cristo.
  2. Reformada Teonômica (Greg L. Bahnsen): Bahnsen defende a teonomia, argumentando que toda a lei do Antigo Testamento, incluindo os aspectos judiciais e cerimoniais, permanece vinculativa para as sociedades modernas, a menos que seja especificamente abrogada pelo Novo Testamento. Ele acredita que a lei de Deus é a melhor e mais justa base para a lei civil e que as sociedades devem se esforçar para implementá-la. Ele enfatiza a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento e a natureza imutável da lei moral de Deus.
  3. Luterana Modificada (Douglas J. Moo): Moo propõe uma perspectiva luterana modificada, enfatizando a nítida distinção (antítese) entre lei e evangelho. Ele vê a lei principalmente como um meio de revelar o pecado e conduzir as pessoas a Cristo. Embora a lei moral permaneça um guia para os crentes, ela não é o foco principal. Ele enfatiza a justificação pela graça por meio da fé somente em Cristo, independentemente das obras da lei. Ele reconhece um papel contínuo para a lei na vida do crente, mas sempre dentro do contexto da graça abrangente do Evangelho.
  4. Dispensacionalista (Wayne G. Strickland): Strickland defende uma visão dispensacionalista, que divide a história da salvação em eras ou dispensações distintas. Ele argumenta que a Lei Mosaica foi especificamente dada a Israel e não é diretamente vinculativa para os cristãos hoje. Ele enfatiza o caráter distintivo da Era da Igreja, que é caracterizada pela graça. Embora os princípios morais da lei ainda sejam relevantes, os cristãos não têm a obrigação de guardar a lei do Antigo Testamento.
  5. Mosaica Ponderada (Walter C. Kaiser): Kaiser argumenta que, embora toda a Lei Mosaica não seja igualmente vinculativa, as “questões mais importantes” da lei, particularmente a lei moral resumida nos Dez Mandamentos, permanecem vinculativas para os crentes hoje. Ele acredita que esses princípios básicos refletem o caráter moral imutável de Deus e fornecem uma base para a vida ética. Ele procura discernir os princípios duradouros da lei e aplicá-los às situações contemporâneas.

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