Divisão da Lei

A divisão da Lei, ou Torá bíblica tem sido objeto de discussão teológica, filosófica e jurídica ao longo da história. Várias perspectivas surgiram, agrupadas no holismo legal, que vê a Lei como um todo integral,e no particionimso legal, que permite divisões ontológicas ou funcionais.

Diferentes tipologias para a divisão da Lei foram propostas entre as tradições religiosas, refletindo diversas abordagens teológicas e exegéticas.

O holismo legal afirma que a Lei não é divisível e deve ser entendida como uma entidade unificada. Um argumento é que aspectos como os sacrifícios de reparação envolvem o cumprimento de obrigações civis, deveres rituais e arrependimento moral simultaneamente para sua eficácia.

O particionismo legal considera que a Lei possa ser divisível. Seria dividida ou ontologicamente (os múltiplos aspectos foram pretendidos por Deus) ou funcionalmente (os múltiplos aspectos são ferramentas analíticas ou didáticas para seus intérpretes). Essa perspectiva inclui a dicotomia legal, dividindo a Lei em dois aspectos, e a tricotomia legal, dividindo-o em três aspectos.

Tipologias históricas para divisão da Lei

Perspectivas da Patrística

  • Em geral, os autores patrísticos trataram a Lei como algo holístico, por vezes em tom de supersessionismo. Contudo, alguns autores apresentam concepções particionistas.
  • Irineu (século II): Distingue-se entre Lei cerimonial (de duração limitada) e Lei moral (de validade permanente).
  • Justino Mártir (século II): Reconheceu três tipos de material na Lei, servindo à piedade, à justiça, ao mistério do Messias ou respondendo à dureza do coração das pessoas.
  • Barnabé (século II): Distinções reconhecidas na Lei de Deus, incluindo sacrifícios abolidos e circuncisão, enfatizando a adesão aos mandamentos.
  • Tertuliano (séculos II-III): Lei primordial ou natural reconhecida e Lei sacerdotal ou levítica, sugerindo as distinções morais e civis posteriores.
  • Epístola de Ptomeu a Flora (século II): Dividiu a Lei em preceitos genuínos, os adulterados pela injustiça, e os simbólicos e típicos, enfatizando a necessidade de complementação pelo Salvador.
  • Agostinho (século IV): Identificou preceitos morais e simbólicos, como exemplos o preceito moral “Não cobiçarás” e o preceito simbólico da circuncisão.

Judaísmo Normativo

  • Adere ao holismo legal, mas reconhece uma dicotomia para expressar a Lei.
  • Halacá: aspectos normativos da Lei.
  • Hagadá: aspectos descritivos (e frequentemente narrativos) da Lei.


Escolática Medieval

  • Tricotomia Legal: Lei moral, Lei cerimonial e Lei civil.
  • Remonta a Tomás de Aquino, distinguindo preceitos morais ditados pela lei natural, preceitos cerimoniais relacionados ao culto divino e preceitos judiciais ou civis que determinam a justiça entre as pessoas. Summa Theologica, 2a, Q 99, Artigo 4.


Perspectivas Protestantes

  • Lutero e os Anabatistas: holismo legal, vendo a Lei como um todo integral em oposição à Graça e ao Novo Testamento.
  • Tradição Reformada: tricotomia legal, dividindo a Lei em componentes morais, cerimoniais e judiciais. As leis cerimoniais e civis eram restritas aos israelitas enquanto as leis morais seriam eternas. Calvino, Institutas, 4. 20. 14. Turretino, Institutas da Teologia Elêntica 11.24.1.
  • Anglicanos e metodistas: implícito particionismo, mas não elaborado. Nenhum cristão estaria isento de obedecer os mandamentos do Antigo Testamento chamados morais.

Ciências bíblicas contemporâneas

  • Os estudos bíblicos contemporâneos tendem a rejeitar o particionamento legal como uma imposição de categorias externas ao texto bíblico. Os críticos argumentam que dividir artificialmente a Lei em partes distintas pode simplificar excessivamente a sua complexidade e negligenciar as intrincadas conexões dentro do quadro jurídico. No entanto, estudiosos como Cohen e Alt notaram diferentes aspectos analíticos da Lei.
  • Boaz Cohen identifica diferentes aspectos analíticos dentro da Lei. Cohen sugere uma divisão tripla que consiste em cerimonialismo, jurisprudência e ética. Nota termos específicos em Deuteronômio 6:1, enfatizando a relevância dos ‘mandamentos’, ‘estatutos’ e ‘julgamentos’ na compreensão da natureza multifacetada da Lei.
  • O exame indutivo de Albrecht Alt dos sistemas jurídicos do Antigo Oriente Próximo resultou na emergências de duas categorias. Alt reconhece uma forma de holismo legal, mas introduz uma distinção entre leis apodíticas e casuísticas. A lei apodítica refere-se a mandamentos divinos atemporais, como os Dez Mandamentos, sem explícita cláusula de penalidade. Por outro lado, a lei casuística trata da aplicação de leis a casos específicos, frequentemente com penalidade e aspectos processuais. Esta distinção acrescenta uma camada de complexidade à compreensão de como a lei divina interage com situações práticas.

Holismo teológico

O holismo teológico, defendido por estudiosos como John Metcalfe e Edgar Andrews, enfatiza a indivisibilidade da Lei. Metcalfe se opõe veementemente à divisão da lei em partes morais, judiciais e cerimoniais, argumentando que a totalidade da Lei foi dada por Moisés e não pode ser aplicada seletivamente. Andrews, em seu comentário sobre Gálatas, destaca que não há nenhuma indicação no texto bíblico sugerindo que Paulo considerasse a lei dividida em partes separadas. Em vez disso, Paulo fala explicitamente sobre “toda a lei” em Gálatas 5:14 reforçando a ideia da sua indivisibilidade.