Ticônio

Ticônio ou Tychonius, foi um estudioso cristão ativo entre 370 e 390 d.C. Associado ao movimento donatista africano, era um erudito teológico bem versado em história e conhecimento secular. Genádio de Massélia, em sua obra “De viris illustribus”, descreve Ticônio como um teólogo e historiador erudito que escreveu livros defendendo o donatismo, citando sínodos antigos para apoiar seus argumentos.

Apesar de sua afiliação donatista, Ticônio nunca se alinhou totalmente nem com os donatistas nem com os católicos, mantendo uma posição única e um tanto isolada. Escreveu duas obras hoje perdidas sobre os donatistas: “De bello intestino” e “Expositiones diversarum causarum”.

Seu legado repousa principalmente em duas obras: “Liber regularum” (O Livro das Regras) e “In Apocalypsin”, um comentário sobre o Livro do Apocalipse. Essas obras refletem seu profundo envolvimento com a interpretação das escrituras e sua influência em teólogos posteriores, mais notavelmente Santo Agostinho de Hipona.

O Livro de Regras e Interpretação Bíblica
O “Liber regularum” é um guia para interpretar a Bíblia, delineando sete regras para entender seu simbolismo e alegoria complexos. Essas regras ajudaram os leitores a navegar pela “vasta floresta de profecias” encontradas nas Escrituras.

Regra 1 (Sobre o Senhor e seu corpo),
Regra 2 (Sobre as duas partes do corpo do Senhor) e
Regra 7 (Sobre o Diabo e seu corpo) destacam a ambiguidade de certas figuras e imagens bíblicas.
Por exemplo, “o Senhor” pode se referir a Cristo ou à Igreja, enquanto referências ao Diabo podem significar o próprio Satanás ou seus seguidores.

Regra 4 (De specie et genere) que afirma que declarações sobre coisas específicas podem conter verdades gerais.
Regra 5 (Sobre o tempo) na qual os números podem simbolizar conceitos em vez de quantidades, e as referências ao tempo podem alternar entre previsão e descrição.
Regra 6 (Sobre recapitulação) explora ainda mais os múltiplos significados de elementos bíblicos, números e narrativas.
Diferentemente das outras, a Regra 3 (Sobre promessas e lei) aborda uma questão teológica: a compatibilidade da graça de Deus e do livre-arbítrio humano. Ticônio se baseia nos escritos do apóstolo Paulo para argumentar que a presciência perfeita de Deus permite tanto a graça quanto o livre-arbítrio.

O método interpretativo de Ticônio enfatizou padrões históricos em vez de princípios filosóficos. Salientou a harmonia entre a liberdade humana e a soberania de Deus e se concentrou em como Deus interage com o tempo humano. Sua abordagem à profecia bíblica foi particularmente inovadora, reinterpretando versículos sobre a Segunda Vinda como se referindo ao advento da Igreja.

A influência de Ticônio em Agostinho
Agostinho reconheceu o “Livro de Regras” de Ticônio em sua própria obra sobre interpretação bíblica, “Doutrina Cristã”. Empregou os métodos de Ticonio na “Cidade de Deus” para oferecer leituras não apocalípticas de passagens em Mateus e Apocalipse. O próprio conceito de Cidade de Deus Agostinho deve a Ticônio.

A visão de Ticônio da Igreja como um corpo misto de santos e pecadores forneceu a Agostinho munição contra a eclesiologia perfeccionista dos donatistas.

Mais significativamente, a interpretação de Ticônio sobre Paulo e seus pensamentos sobre graça e livre-arbítrio ressoaram com as próprias lutas de Agostinho. Embora Agostinho discordasse das visões específicas de Ticônio, ele adotou a ideia de que a história da salvação se desenrola tanto linearmente (por meio da narrativa bíblica) quanto internamente (por meio do crescimento espiritual individual).

Este encontro com Ticônio na década de 390 levou Agostinho a uma nova compreensão do eu, de Paulo e da narrativa bíblica, culminando em suas obras “Confissões”, “Contra Fausto”, “Comentário Literal sobre Gênesis” e “Cidade de Deus”.

Deixe um comentário