Divisão em capítulos e versículos

A Bíblia, composta por diversos livros escritos ao longo de séculos, originalmente não possuía divisões em capítulos e versos. Essas subdivisões foram introduzidas gradualmente, em um processo que se estendeu por vários séculos, com o objetivo de facilitar a leitura, a memorização e a referência.

Divisão das Escrituras Hebraicas na Antiguidade

Durante o período dos Pergaminhos do Mar Morto, os textos eram escritos sem vogais ou pontuação, utilizando espaços em branco para dividir as seções do texto. Esse sistema coexistiu, ao que tudo indica, com o desenvolvimento do sistema de parashot (as porções semanais da Torá), embora ainda seja incerto como essas divisões eram indicadas no texto.

No texto bíblico hebraico, “setumah” e “petuchah” são dois tipos de quebras de parágrafo que ajudam a estruturar e organizar o texto. “Setumah” (סתומה), que significa “fechado”, é uma pequena pausa no meio da linha, como se um espaço fosse deixado entre as palavras. Já “petuchah” (פתוחה), que significa “aberto”, é uma quebra maior, onde a linha termina antes da margem e a próxima seção começa em uma nova linha. Essas quebras visuais não apenas facilitam a leitura, mas também atuam como pistas para a interpretação, sinalizando a relação entre as seções e destacando temas ou transições importantes. Em edições impressas modernas, a setumah é frequentemente representada pelo símbolo “ס” (samekh), e a petuchah pelo símbolo “פ” (peh).

Evidências dessas divisões de parágrafos foram encontradas em manuscritos do Mar Morto, como o 4QDeutj (4Q37) e o 4QDeutq (4Q38), ambos contendo partes do Deuteronômio e datados do final do século II a.C., e o 4QNumc (4Q26), com partes do Números, do mesmo período. O famoso rolo 1QIsaiaha (1QIsa^a), com o texto completo de Isaías, também exibe o uso sofisticado de setumah e petuchah, sugerindo que essas práticas de organização textual já existiam antes da padronização do texto bíblico pelos masoretas.

Entre o século II a.C. e o século I d.C., ocorreu o provável desenvolvimento e a padronização do sof pasuq (o sinal “:” usado para marcar o fim de um versículo). Foi também nesse período que se formalizou o sistema das 54 parashot, estabelecendo o ciclo anual lunar de leituras da Torá. Essa evolução está em harmonia com a tradição talmúdica que atribui a divisão dos versículos aos escribas.

A mais antiga atestação de divisões aparece em um manuscrito do livro de Daniel do século II d.C. O Papiro 967 é um códice da versão Old Greek (Septuaginta) dos livros de Ezequiel, Daniel e Ester, escrito por volta de 200 d.C. O livro de Daniel já continha uma divisão de capítulos em letras gregas. Esses números, inseridos como subscriptio, não foram acrescentados posteriormente, mas já estavam presentes no texto original.

Na Bíblia Hebraica, no século I ao VII d.C., a tradição oral foi a principal responsável por preservar o conhecimento sobre as divisões dos versículos, a pronúncia e o sistema das parashot. Contudo, com o declínio do hebraico como língua falada, tornou-se necessária a criação de um sistema escrito mais formalizado para garantir a continuidade dessa tradição.

Entre os séculos VII e X d.C., os massoretas padronizaram a Bíblia Hebraica. Eles introduziram o sistema de vocalização (niqqud) e as marcas de cantilação, além de formalizar o uso do sof pasuq para delimitar os fins dos versículos. As parashot também foram claramente demarcadas no texto, frequentemente coincidindo com o sistema mais antigo de espaços abertos e fechados.

Divisão das Escrituras Gregas

Os κεφάλαια (kephalaia) e τίτλοι (titloi) surgiram como ferramentas essenciais para a organização e navegação dos textos bíblicos, facilitando o estudo, o uso litúrgico e a referência. A divisão em kephalaia, influenciada por práticas semelhantes na literatura clássica, teve seu início entre os séculos III e IV d.C., buscando criar uma estrutura lógica para o texto e facilitar a localização de passagens específicas durante a leitura pública, o ensino ou o estudo individual. Os Evangelhos foram um dos primeiros livros da Bíblia a serem divididos dessa maneira, como evidenciado pelos Cânones Eusébianos. Paralelamente, o uso de titloi (cabeçalhos ou títulos) para as seções bíblicas também se desenvolveu, servindo como uma forma de introduzir e resumir o conteúdo de cada kephalaion, agilizando a navegação pelo texto.

Manuscritos antigos como o Codex Vaticanus e o Codex Sinaiticus já continham anotações marginais e cabeçalhos, embora não de forma tão sistemática como em manuscritos posteriores. A partir dos séculos V e VI, o uso de kephalaia e titloi tornou-se mais padronizado, especialmente em manuscritos gregos, como os do tipo textual Alexandrino e Bizantino, como parte de um esforço mais amplo para organizar e sistematizar os textos bíblicos para uso litúrgico e acadêmico. Essa prática era particularmente importante para os lecionários, que continham leituras selecionadas para dias específicos, auxiliando o clero a localizar as passagens apropriadas rapidamente. No Ocidente, os manuscritos latinos também adotaram sistemas de divisão em capítulos e cabeçalhos, como a Vulgata, embora menos sistemáticos do que nos manuscritos gregos.

No século III, Amônio de Alexandria deu início a uma prática de organização textual ao dividir os Evangelhos em pequenas seções, permitindo comparações entre passagens paralelas. Seu trabalho com as Seções Amonianas foi posteriormente aprimorado por Eusébio de Cesareia, que criou tabelas canônicas para cruzar os Evangelhos, os cânones eusebianos. No início do século V, um autor desconhecido introduziu divisões nas epístolas paulinas, prática que foi ampliada por Eutálio, diácono de Alexandria, para as Epístolas Gerais e os Atos dos Apóstolos nos aparatos eutalianos. Além disso, Eutálio popularizou a esticometria, um método que organizava o texto em linhas curtas contendo uma única cláusula ou ideia, facilitando tanto a leitura em voz alta quanto a memorização. Embora a esticometria não tenha sido inventada por Eutálio, ele foi o primeiro a aplicá-la sistematicamente ao Novo Testamento.

Já o Livro do Apocalipse, embora não possuísse um sistema de divisão tão bem documentado e padronizado como os Cânones Eusebianos ou o Aparato Eutaliano para outras partes do Novo Testamento, era organizado de maneiras diversas. Alguns manuscritos tentaram estruturá-lo tematicamente ou numericamente. Manuscritos como o Codex Alexandrinus e o Codex Ephraemi Rescriptus, por exemplo, utilizavam notas marginais e marcadores de parágrafo para indicar quebras temáticas, sugerindo uma consciência do simbolismo numérico presente no Apocalipse, embora não dividindo o texto explicitamente em 24 ou 72 seções. Comentários como os de André de Cesareia, que dividiu o livro em 72 capítulos, refletindo o uso simbólico de números (como 12 tribos x 6 visões = 72), e de Aretas de Cesareia, que se baseou na obra de André, popularizaram as divisões temáticas e simbólicas do texto, influenciando a forma como o Apocalipse era lido e organizado em manuscritos posteriores, enfatizando o simbolismo numérico, como os 24 anciãos e as 12 tribos.

O uso de lecionários, excertos bíblicos para fins litúrgicos, levou ao aprimoramento dessas divisões para a leitura pública. Nos primeiros séculos do cristianismo (I-III), a tradição oral desempenhava um papel central nas celebrações litúrgicas, com as Escrituras sendo lidas em voz alta durante os cultos. As leituras, provavelmente escolhidas pelo ministro presidente com base nas necessidades da comunidade, compreendiam trechos do Antigo Testamento, dos Evangelhos e das Epístolas, frequentemente selecionados em resposta a eventos ou temas contemporâneos. Nessa fase inicial, não existia um sistema formal de lecionários, e as seleções eram feitas ad hoc, refletindo a influência das práticas da sinagoga judaica, onde as leituras da Torá e dos Profetas faziam parte da liturgia.

Com a canonização do Novo Testamento e o uso generalizado de códices (livros), entre os séculos IV e V, os cristãos começaram a organizar as leituras das Escrituras de forma mais sistemática, marcando o surgimento dos primeiros lecionários formais. Esses eram, inicialmente, listas de leituras para dias específicos, frequentemente escritas nas margens dos manuscritos bíblicos. Simultaneamente, o ano eclesiástico começou a tomar forma, com ciclos de festas (como a Páscoa e o Pentecostes) e estações (como a Quaresma) exigindo leituras bíblicas apropriadas. O Codex Alexandrinus, do século V, por exemplo, já continha anotações marginais indicando leituras para ocasiões específicas, evidenciando essa transição para um sistema mais organizado e litúrgico. Essa organização das leituras, por sua vez, influenciou a forma como os textos bíblicos eram divididos, com o desenvolvimento dos kephalaia e titloi para facilitar a localização das passagens designadas para cada dia ou ocasião.

Padronizações

A divisão moderna em capítulos iniciou-se no século XIII. Revisando os kephalaia e titloi anteriores, Stephen Langton, arcebispo de Cantuária, criou uma estrutura de capítulos por volta de 1227. Esse padrão foi adotado na Bíblia Inglesa de Wycliffe em 1382. Alguns anos depois, Hugo de Santo Caro, um cardeal dominicano, desenvolveu uma concordância completa da Bíblia, dividindo os capítulos em partes menores, marcadas por letras como A, B, C, D. Embora a proposta de Hugo tenha sido pensada inicialmente para manuscritos da Vulgata Latina, sua influência estendeu-se gradualmente para manuscritos gregos e edições impressas do Novo Testamento.

No século XIV, os capítulos da divisão da Vulgata começaram a aparecer em manuscritos hebraicos. Os estudiosos judeus adotaram a divisão cristã dos capítulos porque isso facilitava os debates teológicos.

Em 1516-1517, Daniel Bomberg imprimiu a primeira Bíblia Hebraica (Mikraot Gedolot) com divisões de capítulos e versículos. Essa obra estabeleceu a padronização dos capítulos nas Bíblias hebraicas impressas, embora as parashot continuassem sendo uma parte integral da tradição de leitura judaica.

A introdução dos versos foi um passo posterior. No Antigo Testamento, a divisão foi realizada em 1448 por Isaac Nathan ben Kalonymus, um rabino francês que trabalhava na criação de uma concordância para a Bíblia Hebraica. Em 1509, Henry Stephens imprimiu o Quincuplex Psalterium de Le Fevre d’Étaples com numerais arábicos para cada versículo. A Bíblia completa com divisão dos versos em apareceria em 1528, na versão latina de Sancte Pagninus, foi publicada em Lyon, utilizando letras para marcar as subdivisões do texto. Esse sistema foi inspirado nas divisões anteriores feitas por Hugo de Santo Caro, que também empregava letras do alfabeto para segmentar os capítulos. No entanto, as divisões de Pagninus revelaram-se excessivamente amplas e pouco práticas, dificultando o uso ágil do texto para estudo e referência. Na edição de 1547-1548 da Bíblia de Bomberg aparece a numeração dos versos pela primeira vez para a Bíblia Hebraica.

Para o Novo Testamento, o sistema moderno de versos foi concebido por Robert Estienne (ou Stephanus), um impressor francês que, em 1551, publicou um Novo Testamento grego em Genebra, já com numeração de versos. Estienne baseou-se na tradição hebraica de divisões curtas, inspirando-se no trabalho de rabinos como Nathan. Seus versos tornaram-se padrão em todas as edições subsequentes.

A disseminação da divisão em capítulos e versos foi consolidada com as primeiras edições impressas. Em 1552, foi publicado o Novo Testamento Francês, uma revisão de João Calvino do trabalho de Olivetan. No ano seguinte, surgiu o Novo Testamento Italiano traduzido por Paschale. Em 1555, Estienne produziu uma edição da Vulgata Latina em Genebra, seguindo seu sistema de capítulos e versos. Nos anos subsequentes, outras versões, como a Bíblia Biestke em holandês (1559) e uma tradução latina feita por Beza a partir do grego (1556), adotaram o mesmo padrão. Em 1557, a Bíblia de Genebra tornou-se a primeira edição em inglês a incluir números de capítulos e versos em todo o texto.

DIFERENÇAS ENTRE AS VERSÕES

Ainda que a divisão em capítulos e versos tenha se tornado universal, diferenças permanecem nas tradições judaica e cristã.

Por exemplo, nas Bíblias hebraicas, as inscrições dos Salmos são frequentemente contadas como versículos, enquanto as traduções cristãs as tratam como títulos não numerados. Além disso, algumas divisões de capítulos divergem, como em 1 Crônicas 5:27–41 na Bíblia Hebraica, que corresponde a 1 Crônicas 6:1–15 nas traduções cristãs. Já para o livro de Joel, a Bíblia Hebraica possui quatro capítulos, divergindo nas seguintes divisões:

Bíblia HebraicaEdições cristãs
Joel 2Joel 2:1–27
Joel 3Joel 2:28–32
Joel 4Joel 3

Há também variações entre as edições católicas e protestantes, por exemplo, Salmo 18, Jeremias 23 e Jó 42. Mesmo entre edições protestantes, ocorrem pequenas variações na divisão e na contagem dos versos, como em 2 Coríntios 13:13 e 3 João 1:14-15 na Almeida Revista Corrigida e a divisão da King James Version. Há maior discrepância entre a Reina-Valera Antigua (RVA) e a Bíblia de Lutero com outras edições das Sociedades Bíblicas, normalmente influenciadas pela King James Version. Uma pequena comparação:

LivroVersículo na RVAVersículo na ARCNotas
38:38 — 40:6A RVA tem uma numeração única nesta seção.
40:1-1941:1-20A RVA segue a numeração da Vulgata Latina, enquanto a ARC segue a KJV.
1 Samuel20:4320:42A RVA segue a numeração da Vulgata Latina, enquanto a ARC segue a KJV.
Números29:3929:40A RVA segue uma combinação da tradição hebraica, latina e grega.
1 Samuel24:2324:22A RVA combina as tradições hebraica, latina e grega.
1 Reis22:4322:44A RVA segue uma combinação da tradição hebraica, latina e grega.
Jonas2:112:10A RVA segue uma combinação da tradição hebraica, latina e grega.
Neemias3:323:33
Neemias4:234:24
Eclesiastes5:205:19
SalmosEm geral, a RVA coincide com a numeração da ARC nos Salmos.
1 Crônicas5:27-416:1-15Diferença na divisão de capítulos entre a RVA (que segue a tradição hebraica) e a ARC (que segue a tradição cristã).

Uma consideração sobre “Divisão em capítulos e versículos”

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