Leitura Mântica

A leitura mântica é uma prática de leitura que consiste em abrir aleatoriamente a Bíblia para encontrar inspiração, resposta ou conforto em um versículo específico. Esta prática popular, conhecida também como sortes biblicae, sustenta uma abordagem sincrônica da leitura bíblica, em que o contexto histórico do texto é considerado irrelevante, e busca uma recepção imediata, sem a necessidade de replicar interpretações ou aplicações teológicas tradicionalmente associadas ao texto.

Características da Leitura Mântica

  • Sincronicidade: O foco está na interpretação imediata, desconsiderando o contexto original.
  • Inspiração instantânea: Busca-se uma mensagem direta e aplicável ao momento presente.
  • Estímulo à memorização: Comumente praticada em momentos de dúvida, a leitura mântica contribui para a retenção e associação de trechos bíblicos a questões pessoais.

Problemas Associados

  • Superstição: A prática pode se aproximar de formas supersticiosas de adivinhação, as quais são condenadas nas Escrituras (cf. Deuteronômio 18).
  • Responsabilidade e Ética: Atribuir ao acaso, ou a Deus, a resolução de problemas pessoais sem reflexão mais profunda pode projetar uma imagem simplificada da relação divina com os fiéis.
  • Descontextualização: Ao ignorar o contexto histórico e teológico, essa prática oferece interpretações que podem ser distorcidas em relação ao sentido plausível do texto.

Raízes e Desenvolvimento

A leitura mântica encontra raízes em tradições pietistas, especialmente entre alemães e escandinavos, onde surgiram as “caixinhas de promessas” — caixas com versículos bíblicos que se consultam aleatoriamente para obter orientação.

Um exemplo icônico dessa prática é narrado nas Confissões 8.12.29 de Agostinho de Hipona, quando, em um momento de desespero, ele interpretou o cântico infantil “toma e lê” como um chamado divino. Ao abrir a Bíblia, leu Romanos 13:13, que desencadeou uma profunda transformação espiritual. Contudo, o próprio Agostinho mais tarde desaconselharia essa prática, considerando-a preferível à adivinhação, mas inferior à busca de entendimento contextual das Escrituras (Epístola 55.20.37).

Às vezes, as pessoas anotava as questões ou as interpretações (hermeneia) de suas causas nas margens dos livros. O Codex Bezae é um exemplar possui várias dessas hermeneia.

A leitura mântica encontrou resistência oficial em diversos períodos. Sínodos do século IV e V a condenaram. Carlos Magno a proibiu em 789 d.C., sob o Duplex Legationis Edictum 2, que proibia consultas mânticas de qualquer tipo: “Concernente inquirições por meio de tabelas e livros, e que ninguém presuma que [possa] lançar sortes no Saltério ou no Evangelho ou em outras coisas, ou realizar adivinhações.”

No século XV, os morávios, um grupo pietista com origens hussitas, empregraram amplamente a leitura mântica. Eles consultavam a Bíblia para decisões importantes, como casamentos, ordenações e missões, acreditando que essa prática ajudava a manter a unidade da comunidade. Ainda hoje, o devocional diário Losungen, utilizado pela comunidade, é composto por versos selecionados aleatoriamente em um evento anual.

Com a ascensão do humanismo e do Iluminismo, a prática foi criticada pela sua falta de racionalidade, embora permaneça presente na religiosidade popular. John Wesley, por exemplo, utilizou a leitura mântica em 1775, durante uma grave doença, interpretando uma passagem de 2 Reis 20:6 como sinal de sua recuperação. Essa prática perdura em grupos pietistas e anabatistas, que utilizam textos aleatórios para pregações, acreditando ser uma forma de evitar influências externas e assegurar a pureza do sermão.

Apesar de suas raízes populares, a leitura mântica contribuiu para o desenvolvimento hermenêutico ao incentivar a distinção entre interpretação e aplicação, bem como a relação entre o texto sagrado e a experiência pessoal. Os puritanos empregavam largamente esse método. Como viam esses textos como profeciam, partiram para o inverso: encontrar sinais na história e na vida pessoal que relacionassem com  textos bíblicos. Assim, As leituras historicistas também são associadas com comunidades interpretativas que aceitam essa prática. Comunidades que adotaram esse método desenvolveram formas de atribuir significado a passagens específicas de forma adaptada ao cotidiano, explorando novas dimensões da interpretação bíblica.

Bibliografia

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