Lecionário Comum Revisado

O Lecionário Comum Revisado (LCR) é um esquema de leituras bíblicas planejado para guiar as igrejas em um ciclo de culto de três anos.

 Fruto de renovação litúrgica e cooperação ecumênica no século XX, o LCR começou com a reforma litúrgica da Igreja Católica Romana. Em 1969, o Concílio Vaticano II introduziu um novo lecionário, o Ordo Lectionum Missae (Ordem das Leituras da Missa), que estabeleceu um ciclo trienal para as leituras do Evangelho, cobrindo Mateus, Marcos e Lucas em anos separados (A, B e C, respectivamente). A inovação católica rapidamente chamou a atenção de outras igrejas. Em 1978, a Consulta sobre Textos Comuns (Consultation on Common Texts – CCT), um grupo ecumênico de liturgistas, buscou adaptar a estrutura do lecionário católico para uso mais amplo. O objetivo era criar um lecionário que mantivesse a riqueza do modelo de três anos, mas que fosse mais adequado às tradições e aos contextos protestantes. O resultado dessa colaboração foi a publicação, em 1983, do Lecionário Comum. A “revisão” de 1992 deu origem ao nome que usamos hoje, Lecionário Comum Revisado.

A adoção do RCL foi ampla e significativa. Denominações como a Igreja Metodista Unida, a Igreja Evangélica Luterana na América e a Igreja Presbiteriana (EUA), entre muitas outras, o adotaram, muitas vezes substituindo seus próprios lecionários históricos. Essa decisão foi um marco ecumênico, pois permitiu que milhões de cristãos em diferentes igrejas ouvissem as mesmas Escrituras no mesmo dia, promovendo um senso de unidade e uma conversa teológica compartilhada.

O LCR é organizado em um ciclo trienal, designado pelos anos A, B e C, seguindo o ano litúrgico cristão. Cada ano tem um foco principal em um dos Evangelhos Sinópticos:

  • Ano A: Foco no Evangelho de Mateus
  • Ano B: Foco no Evangelho de Marcos
  • Ano C: Foco no Evangelho de Lucas

O Evangelho de João é lido em momentos específicos ao longo dos três anos, especialmente durante as estações de Quaresma e Páscoa, independentemente do ano em que se esteja.

Leituras Semanais

Para cada domingo e para os principais dias de festas, o lecionário geralmente oferece quatro leituras:

  1. Leitura do Antigo Testamento: Selecionada para estabelecer uma conexão temática ou narrativa com o Evangelho daquele dia.
  2. Leitura do Salmo Responsorial: Um Salmo que responde ou se aprofunda na temática da leitura do Antigo Testamento.
  3. Leitura do Novo Testamento (Epístola): Geralmente uma passagem contínua das cartas dos Apóstolos, lida de forma semi-contínua ao longo das semanas.
  4. Leitura do Evangelho: A leitura principal do dia, alinhada com o Evangelho do ano (Mateus, Marcos ou Lucas).

O Ciclo do Ano Litúrgico

O LCR segue as principais estações do ano litúrgico, o que ajuda a estruturar o culto e a narrativa cristã ao longo do tempo:

  • Tempo Comum ou ordinário: O período mais longo do ano, dividido em duas partes: uma que vai do final do Natal até a Quaresma, e outra que vai de Pentecostes até o Advento. As leituras aqui são semi-contínuas, permitindo que a congregação ouça grandes trechos da Bíblia.
  • Períodos Festivos:
    • Advento: Focado na preparação para a vinda de Cristo.
    • Natal: Celebração do nascimento de Jesus.
    • Quaresma: Período de preparação para a Páscoa, com foco em temas de arrependimento e redenção.
    • Páscoa: Celebração da ressurreição, com leituras que exploram a vitória de Cristo sobre a morte.
    • Pentecostes: Celebração da descida do Espírito Santo.

O LCR oferece leituras alternativas para o Antigo Testamento durante o Tempo Comum. A sequência mais comum para o Antigo Testamento é escolhida para corresponder tematicamente ao Evangelho. No entanto, há uma segunda sequência que permite uma leitura mais “semi-contínua”, cobrindo passagens do Antigo Testamento sem tanta ênfase na conexão direta com o Evangelho da semana. Essa flexibilidade permite que as congregações escolham o estilo de leitura que melhor se adapta às suas necessidades e tradições.

Lecionários

Lecionários são livros ou listas de leituras bíblicas (perícopes) designadas para dias ou ocasiões específicas no calendário litúrgico. A história do lecionário reflete o desenvolvimento das práticas litúrgicas, a organização das Escrituras e as necessidades da comunidade cristã ao longo do tempo.

Evidências Bíblicas

As Escrituras oferecem evidências de práticas de leitura regulares, tanto em sinagogas quanto em igrejas.

O episódio em que Jesus lê um trecho de Isaías na sinagoga de Nazaré, descrito em Lucas 4:16-20, ilustra um ritual de leitura estabelecido, com um local designado para o leitor e a entrega de um texto específico, sugerindo um sistema de leituras programadas.

Em Atos 13:15, a menção da leitura da Lei e dos Profetas na sinagoga de Antioquia, seguida pelo convite para Paulo e Barnabé falarem, indica que as leituras eram selecionadas dessas duas divisões principais do Antigo Testamento.

A afirmação de Tiago em Atos 15:21, sobre a leitura da Lei de Moisés em todas as sinagogas a cada sábado, reforça a ideia de um ciclo de leitura regular e contínuo da Torá.

Nas igrejas, a exortação de Paulo a Timóteo para se dedicar à leitura pública das Escrituras, ao ensino e à exortação (1 Timóteo 4:13), embora não detalhe um ciclo de leitura, sugere uma prática regular e planejada. A instrução de Paulo aos Colossenses para lerem sua carta para a igreja em Laodiceia e vice-versa (Colossenses 4:16) indica que as cartas apostólicas também eram lidas publicamente nas igrejas, provavelmente seguindo algum tipo de ordem ou programação.

Na apresentação do Apocalipse como uma revelação a ser lida nas igrejas (Apocalipse 1:3), com a menção de bênçãos para aqueles que leem e ouvem as palavras da profecia, sugere que o Apocalipse também se destinava a fazer parte das leituras litúrgicas.

Cristianismo da Antiguidade

Nos primeiros séculos do cristianismo (I-III), a tradição oral era central, com as Escrituras sendo lidas em voz alta durante os cultos, provavelmente escolhidas pelo ministro presidente. Sem um sistema formal de lecionários, as leituras, que compreendiam trechos do Antigo Testamento, dos Evangelhos e das Epístolas, eram frequentemente selecionadas ad hoc, sob influência das práticas da sinagoga judaica.

Com a canonização do Novo Testamento e o uso generalizado de códices (livros), entre os séculos IV e V, as leituras passaram a ser organizadas de forma mais sistemática, marcando o surgimento dos primeiros lecionários formais, inicialmente listas de leituras para dias específicos, frequentemente escritas nas margens dos manuscritos bíblicos. Simultaneamente, o ano eclesiástico começou a se estruturar, com ciclos de festas e estações exigindo leituras bíblicas apropriadas, como evidenciado por anotações marginais no Codex Alexandrinus.

Cristianismo Medieval e Reforma

Na Igreja Oriental (Bizantina), os lecionários tornaram-se altamente organizados entre os séculos V e X, com o desenvolvimento do Menologion e do Synaxarion, e a criação de livros separados para leituras dos Evangelhos (Evangelion) e das Epístolas (Apostolos), refletindo um ano litúrgico com festas fixas e móveis.

No Ocidente (Latino), os lecionários, chamados Comes ou Capitularia, desenvolveram-se junto com o Rito Romano e outros ritos locais, frequentemente incluídos em sacramentários. Sob o papa Gregório Magno (séc. VI), a liturgia romana foi padronizada, uniformizando os lecionários, como o Lecionário de Würzburg.

Na Idade Média (séc. XII-XV), com a expansão do ano litúrgico, os lecionários, frequentemente iluminados, foram incorporados a breviários e missais. Após a Reforma (séc. XVI-XVII), reformadores como Lutero e Calvino revisaram os lecionários, enquanto a Igreja Anglicana incluiu um lecionário no Livro de Oração Comum, e a Igreja Católica padronizou o lecionário como parte da Missa Tridentina.

Usos contemporâneos

No século XX, o Concílio Vaticano II revisou o lecionário católico, introduzindo um ciclo de três anos para as leituras dominicais e um ciclo de dois anos para os dias da semana, com maior variedade de escrituras. Os lecionários ecumênicos, como o Revised Common Lectionary, foram adotados por diversas denominações protestantes, e, no século XXI, os lecionários digitais tornaram-se amplamente acessíveis.

Importância para a crítica textual

Na crítica textual do Novo Testamento, os lecionários registram um “instantâneo” do texto como era conhecido e utilizado por uma comunidade cristã em um determinado tempo e lugar.

Existem mais de 2.300 manuscritos de lecionários gregos, uma quantidade que os torna um dos maiores grupos de testemunhas textuais. Essa vasta coleção permite a análise da distribuição geográfica e cronológica de variantes específicas, ajudando a traçar como o texto da Bíblia evoluiu e se espalhou por diferentes regiões ao longo dos séculos. A tendência conservadora do texto litúrgico é uma das suas maiores vantagens, pois as leituras estabelecidas no culto público tendiam a resistir a mudanças. Isso significa que os lecionários podem, em alguns casos, preservar leituras muito antigas que foram substituídas em manuscritos de texto contínuo por versões mais recentes e padronizadas.

O estudo dos lecionários tem ajudado a entender a influência da liturgia na produção de outros manuscritos. Um escriba que copiava um códice de texto contínuo, como um Evangelho, podia ser inconscientemente influenciado pelas leituras que ouvia regularmente na igreja. Isso explica fenômenos como a harmonização de passagens e a adição de conclusões litúrgicas, como a doxologia no final da oração do Pai Nosso em Mateus 6:13, que provavelmente foi inserida de seu uso no culto para os manuscritos posteriores. A grande maioria dos lecionários contém a família tipo de texto Bizantino, tornando-os testemunhas primárias da forma textual mais amplamente utilizada por mais de um milênio na Igreja Ortodoxa Grega.

Apesar de seu valor, os lecionários enfrentam limitações. Eles não são considerados testemunhas primárias porque o texto foi frequentemente editado intencionalmente para a leitura pública. Versos podem ser omitidos para suavizar o fluxo de leitura, e introduções e conclusões padronizadas são adicionadas. A fragmentação do texto em perícopes também remove o contexto imediato, o que é crucial para avaliar qual variante textual faz mais sentido. Além disso, a maioria dos manuscritos de lecionários completos data do século VIII em diante, sendo geralmente mais recentes que os códices unciais mais importantes. Por isso, a importância deles é mais histórica e corroborativa, auxiliando a confirmar a dominância do texto bizantino e a entender o ambiente litúrgico que moldou a transmissão textual.

Parashá

O parashá, plural parashot, é um ciclo de leitura, similar aos lecionários cristãos, que divide a Torá para leituras cúlticas. Outras partes da Bíblia Hebraica seguem esquemas de leitura pública diferente. Há Haftarot no caso dos Profetas e leituras específicas dos Escritos para certas ocasiões.

Existem diferentes sistemas de divisão das parashot, baseados principalmente em tradições culturais e litúrgicas.

O ciclo anual é o mais amplamente utilizado hoje, com 54 parashot lidas ao longo de um ano. A Torá é dividida em 54 parashot, com uma porção lida a cada semana. Em alguns anos, certas parashot são combinadas para ajustar as 54 leituras em um ano de 50 ou 51 semanas (devido às variações do calendário hebraico). É seguido pela maioria das comunidades ashkenazi, sefarditas e mizrahim.

Em anos não bissextos, os seguintes parashot são combinados:

Vayakhel-Pekudei
Tazria-Metzora
Acharei Mot-Kedoshim
Behar-Bechukotai
Chukat-Balak
Matot-Masei
Nitzavim-Vayeilech

Já o ciclo trienal é menos comum, mas ainda é usado em algumas comunidades judaicas progressistas.

Os judeus caraítas, que não seguem a tradição rabínica, têm seu próprio sistema de leitura da Torá. Suas divisões são baseadas em quebras naturais do texto e não estão vinculadas a um ciclo anual ou trienal fixo.

SistemaNúmero de ParashotUso
Ciclo Anual54Maioria das comunidades judaicas no mundo
Ciclo Trienal154 ou 175Historicamente em Israel o período talmúdico (c. 200–500 dC); algumas comunidades Reformistas/Conservadoras
Ciclo Trienal Palestiniano~175Histórico (Israel antigo)
Ciclo Anual Babilônico54Base para o ciclo anual moderno
Tradição Iemenita (Baladi)54Comunidades judaicas iemenitas
Tradição caraítaVariaComunidades judaicas caraítas