Sermão da Montanha

O Sermão da Montanha (Mateus 5–7), o primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus explicita a ética cristã, com ênfase no discipulado radical, na não violência e na inversão dos valores sociais.

Conteúdo do Sermão da Montanha

Os ensinos se inicia com Jesus subindo a um monte (Mateus 5:1-2) e delineia os princípios de sua comunidade ideal. O discurso abrange as Bem-Aventuranças (Mateus 5:3-12) e a vocação da nova comunidade como sal e luz (Mateus 5:13-16).

O sermão estabelece a validade da Lei e dos Profetas (Mateus 5:17-20), afirmando que Jesus não veio para anular, mas para cumprir a Lei. Esta seção é seguida por uma série de antíteses (Mateus 5:21-48), onde Jesus intensifica a prática da justiça em relação aos outros. O texto discute a ira e o assassinato (Mateus 5:21-26), a luxúria e o adultério (Mateus 5:27-30), o divórcio (Mateus 5:31-32), os juramentos (Mateus 5:33-37), a retaliação (Mateus 5:38-42) e o amor aos inimigos (Mateus 5:43-48). Em seguida, o foco se desloca para a prática da justiça em relação a Deus, abordando a esmola (Mateus 6:1-4), a oração (Mateus 6:5-15) e o jejum (Mateus 6:16-18). O discurso prossegue com a exortação para não acumular tesouros terrestres (Mateus 6:19-24) e para não se preocupar (Mateus 6:25-34).

O sermão também adverte contra o julgamento (Mateus 7:1-5) e o desperdício de coisas sagradas (Mateus 7:6). Jesus assegura a seus seguidores que Deus atende às suas orações (Mateus 7:7-12) antes de concluir com exortações e avisos finais sobre o caminho estreito (Mateus 7:13-27). O Sermão da Montanha é um resumo da instrução moral de Jesus, e uma de suas questões centrais é a Lei de Moisés (Mateus 5:17-48). A passagem apresenta uma aparente tensão, pois afirma a validade da Lei, mas providencia normas que modificam certas de suas partes, como o divórcio (Deuteronômio 24:1-4) e a retaliação (Êxodo 21:24-25).

Análise literária

O Sermão estabelece continuidade com tradições sapienciais judaicas, como Provérbios e Eclesiástico, e com críticas proféticas presentes em Isaías e Jeremias. O contraste com o rigor sectário de Qumran, expresso na Regra da Comunidade, e com a filosofia moral greco-romana, especialmente o estoicismo, indica a singularidade da elaboração mateana.

Dois debates percorrem a exegese contemporânea. O primeiro diz respeito à relação entre Jesus histórico e o evangelista: o sermão seria uma expansão mateana de coleções menores de ditos atribuídos a Jesus, preservados em tradições paralelas, como o Sermão da Planície em Lucas 6:20–49. O segundo debate questiona a unidade do texto: alguns o consideram um catecismo destinado à comunidade mateana, enquanto outros apontam múltiplas fontes, incluindo a hipótese Q, a tradição M e material oral.

Questões específicas do texto recebem atenção particular. As antíteses de Mateus 5:21–48 suscitam discussão sobre sua relação com a Torá: prevalece a leitura que as entende como intensificação radical, em vez de abolição. O conceito de “justiça” (δικαιοσύνη) é característico de Mateus e remete à fidelidade à aliança, em oposição ao legalismo. A expressão “sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (5:48) divide a interpretação: alguns a leem como imitação da misericórdia divina, em paralelo a Lucas 6:36, outros como ideal escatológico. O preceito de “dar a outra face” (5:39) foi interpretado por Walter Wink como resistência não violenta (ainda que as evidências históricas não suportem suas interpretações), enquanto em Lutero e em pacifistas modernos aparece como prática de piedade pessoal. A proibição de julgar (7:1–5) é tensionada pela disciplina comunitária de Mateus 18:15–17, distinção que a crítica situa em diferentes contextos: pessoal e comunitário.

A passagem em Mateus 5:17-20, por vezes, é vista como uma resposta a uma posição existente, possivelmente defendida por seguidores de Paulo, que ensinava que a observância da Lei mosaica não era necessária para os cristãos. A ausência de menção à pureza de todos os alimentos em Mateus 15:1-20, em contraste com Marcos 7:19, sugere que a comunidade de Mateus mantinha a validade de certas leis judaicas. A instrução em Mateus 24:20 para orar para não fugir no inverno ou no sábado, bem como a afirmação em Mateus 23:23 para praticar o dízimo sem negligenciar as questões mais importantes da Lei, corroboram a visão de que Mateus representa uma forma de cristianismo que aderia à Lei, ou um cristianismo judaico. As semelhanças entre o evangelho de Mateus e a Epístola de Tiago, que critica a fé sem obras, também apoiam a hipótese de uma tensão entre as perspectivas de Mateus e Paulo sobre a Lei. O Sermão da Montanha, portanto, serve como a obra teológica central de Mateus, um manifesto contracultural que tem sido objeto de interpretações diversas ao longo da história, refletindo as lutas do cristianismo com questões de riqueza, violência e justiça.

As paralelas literárias reforçam o caráter composto do sermão. No judaísmo, há semelhanças com máximas éticas de Eclesiástico 25–31 e com os Testamentos dos Doze Patriarcas, que destacam misericórdia e pureza. No mundo greco-romano, o estoicismo, exemplificado em Epicteto, acentua a disposição interior em contraste com atos externos, enquanto o cinismo, representado por Diógenes, encontra eco na crítica mateana à riqueza (6:19–24). Nos evangelhos sinópticos, Lucas apresenta versão mais breve e incisiva do sermão, incluindo “ais” ausentes em Mateus, e Marcos 10 fornece material paralelo sobre divórcio e riquezas, que Mateus adapta, introduzindo, por exemplo, a exceção em 5:32 em contraste com a proibição absoluta de Marcos 10:11–12.

A história da recepção do sermão mostra diversidade de leituras. Na Igreja primitiva, a Didaché (séculos I–II) incorpora o motivo dos Dois Caminhos, em correspondência com Mateus 7:13–14. Agostinho, em seu comentário sobre o Sermão da Montanha, interpreta o texto como perfeição cristã que ultrapassa a Lei. Na Idade Média, Tomás de Aquino integra o sermão à lei natural, enquanto os franciscanos assumem literalmente a renúncia aos bens materiais (5:42). Na Reforma, Lutero o relaciona à teoria dos dois reinos, ao passo que os anabatistas o interpretam como pacifismo absoluto. Na modernidade, Tolstói, em O Reino de Deus está em Vós, o transforma em fundamento de anarquismo cristão, leitura que influenciou Gandhi em sua formulação da resistência não violenta. Bonhoeffer, em Discipulado, contrasta graça barata e graça custosa a partir do sermão. No período contemporâneo, a teologia da libertação, representada por Gutiérrez, lê as bem-aventuranças (5:3–12) como expressão da opção preferencial pelos pobres. Leituras feministas, como as de Fiorenza, ressaltam a sabedoria subversiva do sermão, atribuindo, por exemplo, agência moral às críticas ao desejo masculino em 5:28.

Antíteses do Sermão da Montanha

As Antíteses no Sermão da Montanha (Mateus 5:17-48) representam uma série de contrastes em que Jesus compara a compreensão tradicional da Lei do Antigo Testamento com uma interpretação mais profunda e radical. Por meio da expressão “Vocês ouviram o que foi dito… mas eu lhes digo”, Ele destaca essas diferenças fundamentais.

Principais Antíteses

Raiva e Assassinato (Mateus 5:21-26)

  • Compreensão Tradicional: “Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás'” (Êxodo 20:13).
  • Ensino de Jesus: Jesus amplia a proibição contra o assassinato para incluir a raiva sem justificação, destacando a gravidade dos pensamentos e sentimentos internos. Ele enfatiza a necessidade de reconciliação e resolução de conflitos como elementos essenciais da vida cristã.

Adultério e Cobiça (Mateus 5:27-30)

  • Compreensão Tradicional: “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Não cometerás adultério'” (Êxodo 20:14).
  • Ensino de Jesus: Jesus vai além do ato de adultério, condenando também os desejos e pensamentos impuros. Ele destaca a necessidade de pureza de coração e de evitar as fontes de tentação.

Divórcio (Mateus 5:31-32)

  • Compreensão Tradicional: “Quem repudiar sua mulher, dê-lhe certidão de divórcio” (Deuteronômio 24:1-4).
  • Ensino de Jesus: Jesus limita a permissão para o divórcio às situações de imoralidade sexual, enfatizando que o casamento é uma aliança sagrada que deve ser preservada.

Juramentos (Mateus 5:33-37)

  • Compreensão Tradicional: “Não faça juramento falso, mas cumpra os seus juramentos ao Senhor” (Levítico 19:12).
  • Ensino de Jesus: Jesus rejeita a necessidade de juramentos como garantias de verdade. Ele ensina que a honestidade deve ser inerente às palavras de uma pessoa, resumida na frase: “Seja o seu ‘sim’, ‘sim’, e o seu ‘não’, ‘não’.”

Retaliação (Mateus 5:38-42)

  • Compreensão Tradicional: “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente'” (Êxodo 21:24).
  • Ensino de Jesus: Jesus desafia a lei de talião, encorajando seus seguidores a não resistirem ao mal com o mal. Ele introduz uma ética de amor radical, incluindo gestos como oferecer a outra face e caminhar a milha extra.

Amor aos Inimigos (Mateus 5:43-48)

  • Compreensão Tradicional: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo.”
  • Ensino de Jesus: Jesus ordena amar os inimigos e orar por aqueles que perseguem. Este ensino culmina em um chamado à perfeição, como o Pai celestial é perfeito.

Pontos-Chave sobre as Antíteses

  1. Cumprimento da Lei: Jesus não abole a Lei do Antigo Testamento, mas a cumpre e a expande, dando ênfase à intenção por trás das regras.
  2. Foco nas Atitudes Interiores: As Antíteses destacam a importância da transformação interior, além de simples obediência externa.
  3. Ética de Amor e Perdão: O amor radical e o perdão são os pilares do ensino de Jesus, incluindo a não-violência e a generosidade.
  4. Um Padrão Elevado: Jesus estabelece um padrão elevado para seus seguidores, desafiando-os a viver com retidão, compaixão e autenticidade.

As Antíteses do Sermão da Montanha estão no centro dos ensinamentos de Jesus e apresentam um desafio profundo para todos que desejam segui-lo. Elas chamam a atenção para uma ética revolucionária, baseada no amor e na justiça, que transforma tanto a vida individual quanto a sociedade.

BIBLIOGRAFIA

Becker, Joachim. Jesus von Nazaret. Berlin: 1996, 337–87.

Gnilka, Joachim. Jesus von Nazaret: Botschaft und Geschichte. Herders Theologischer Kommentar zum Neuen Testament. Supplementband 3. Freiburg im Breisgau: 1990, 204–50.

Heininger, Bernhard. “Die Gottesherrschaft in der Predigt Jesu.” In Das Reich Gottes: Perspektiven des Alten und des Neuen Testaments, editado por G. Vanoni e B. Heininger, 75–96. NEB. Themen 4. Würzburg: 2002, especialmente 89–92.

Heckel, Thomas K. “Bergpredigt.” In Neues Testament, editado por L. Bormann, 91–109.

Hoppe, Rudolf. Jesus von Nazaret: Zwischen Macht und Ohnmacht. Stuttgart: 2012, 114–32.

Luz, Ulrich. Das Evangelium nach Matthäus (Mt 1–7). Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament 1/1. 2ª ed. Zürich/Neukirchen-Vluyn: 2002, 324–416.

Merklein, Helmut. Jesu Botschaft von der Gottesherrschaft: Eine Skizze. Stuttgarter Bibelstudien 111. Stuttgart: 1983, especialmente 93–129.

Strotmann, Andreas. Der historische Jesus: Eine Einführung. Paderborn: 2012, 140–56.

Theißen, Gerd, e Annette Merz. Der historische Jesus: Ein Lehrbuch. Göttingen: 1996, 311–58.

Zeller, Dieter. “Jesu weisheitliche Ethik.” In Jesus von Nazaret: Spuren und Konturen, editado por Ludger Schenke et al., 193–215. Stuttgart: 2004.

Beatitudes

As Beatitudes ou as Bem-Aventuranças , do latim beatus, frase iniciais das bem-aventuranças (Mateus 5:3-11; Lucas 6:21-22), são um conjunto de oito bênçãos proferidas por Jesus no início do Sermão da Montanha. As beatitudes descrevem o caráter e as ações daqueles que são abençoados por Deus e herdarão o Reino dos Céus.

  • Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus.
  • Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.
  • Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.  
  • Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.
  • Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.
  • Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus.  
  • Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus.
  • Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.  

Relação com as bênçãos judaicas e a berakha do Antigo Oriente Próximo:

  • Esperança Escatológica: As Bem-Aventuranças apontam para o cumprimento futuro das promessas de Deus no Reino dos Céus. Essa esperança escatológica também era central para a fé judaica, antecipando um tempo em que Deus estabeleceria seu reino de justiça e paz.
  • Forma e Estrutura: As Bem-Aventuranças seguem uma estrutura semelhante às bênçãos judaicas, geralmente começando com a palavra “bem-aventurados” (grego: makarios, hebraico: ashrei). Essa forma era comum na literatura sapiencial e nos Salmos, invocando o favor divino e a felicidade.
  • Conceito de Bênção: No AOP, as bênçãos eram vistas como pronunciamentos de favor divino e bem-estar, muitas vezes associadas à prosperidade material, fertilidade e longa vida. As Bem-Aventuranças, embora compartilhem esse conceito de bem-aventurança, mudam o foco para qualidades espirituais e a recompensa final do Reino dos Céus.
  • Ênfase na Humildade e Justiça: As Bem-Aventuranças enfatizam qualidades como humildade, mansidão, misericórdia e justiça, que também são valorizadas na tradição judaica e na literatura sapiencial do AOP. No entanto, as Bem-Aventuranças vão além da observância externa da lei e se concentram na transformação interior e em um coração dedicado a Deus.
  • Reversão da Sorte: As Bem-Aventuranças pronunciam bênçãos sobre aqueles que muitas vezes são considerados marginalizados ou desfavorecidos na sociedade (os pobres, os que choram, os perseguidos). Esse tema de reversão da sorte também está presente na literatura profética judaica, onde a justiça de Deus muitas vezes envolve elevar os humildes e derrubar os orgulhosos.