Acomodação é um princípio e doutrina hermenêutica e teológica de que Deus acomodou a expressão de suas revelações ao entendimento disponível às audiências.
A doutrina da acomodação foi empregada por Tertuliano, Clemente de Alexandria e Orígenes. Foi desenvolvida por Agostinho e reutilizada por Calvino, Descartes, Spinoza, Balthasar Bekker, Semler e Hamman.
A acomodação dirime muitos problemas interpretativos, pois permite conciliar os textos das Escrituras com informações tanto internas quanto externas — linguísticas, históricas, científicas e teológicas. No entanto, a conclusão lógica de que Deus estaria comunicando algo explicitamente mas com o real significado implicitamente diverso gerou controvérsias.
Utilizando-se desse conceito da retórica clássica, Agostinho interpretava as analogias do Criador na natureza como eloquência divina.
A partir de Agostinho surgem duas linhagens acerca da acomodação. Uma seria Deus acomodando-se à limitação humana. Outra vertente enfatizava o incapacidade humana dos autores bíblicos de conterem a revelação inefável.
Nessa primeira linha, Hilário de Poitiers defendia que Deus acomodava-se à fraqueza do intelecto humano. Na Reforma, considerando as limitações da linguagem humana, Matthias Flacius chama o uso de Deus da linguagem humana como meio de revelação um exemplo de acomodação divina. Johannes Andreas Quenstedt explicava as diferenças gramaticais e estilísticas entre os livros da Bíblia como uma acomodação do Espírito Santo à linguagem e estilo de cada autor.
Na segunda postura, Descartes, Spinoza, J. Kepler, Galileu, os racionalistas e os neólogos (especialamente Semler) seriam os próprios autores bíblicos que empregaram a acomodação, como recursos estilísticos como o antropomorfismo ou conforme a ciência disponível em seu tempo. Uma formulação do conceito foi proposta por Christophorus Wittichius (1625-1690) “Em questões da natureza, as Escrituras muitas vezes falam de acordo com as opiniões das pessoas comuns e não de acordo com a verdade exata”. O teólogo holandês Balthasar Bekker empregou a teoria da acomodação para explicar passagens consideradas embaraçosas ou supersticiosas enquanto mantinha uma respeitabilidade racionalizada do cristianismo.
Nem todos os teólogos da escolástica protestante aceitavam a teoria da acomodação. O teólogo pietista e teórico da hermenêutica Johann Jakob Rambach (1693- 1735) em seu Hypothesis de Scriptura sacra ad erroneos vulgi conceptus adcomodata (1729) fez contudentes críticas à teoria da acomodação. A ideia de Deus intencionalmente dizer algo, mas comunicar outra coisa para simplificar parecia a Rambach uma condescendência e uma blasfêmia. Embora adepto da doutrina dos “dois livros” — natureza e Escrituras como revelações divinas que não se contradiziam — Rambach defendia uma abordagem fenomenológica. Os registros bíblicos seriam conforme os autores e audiências perceberam a revelação divina. Desse modo, o sentido das Escrituras seria simples, sem haver um significado mais elevado por trás das palavras do texto. A obra de Rambach antecedeu o conceito de perspicuidade bíblica conforme adotado posteriormente pelos fundadores do método histórico-gramatical.
A controvérsia sobre a acomodação atingiu o pico no final do século XVIII. Uma síntese entre as duas teorias de acomodação e a abordagem de Rambach aparece formulado por Johann Georg Hamman (1730 – 1788). Influenciado por Kant, Hamman partiu da teologia da encarnação para interpretar a da Bíblia como uma indulgência da parte de Deus, na “acomodação” como sinônimo de “condescendência”.
Com o advento das revoluções científicas a partir do século XIX, a acomodação ganhou adicional aceitação. Análogo à kenosis, a teologia luterana do século XIX empregou a acomodação para manter a fé diante de críticas. No século XX, o tópico da acomodação aparece no debate sobre a desmitologização de Bultmann. Contemporaneamente, é um princípio empregado em argumentos apologéticos.
BIBLIOGRAFIA
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