Justificação

Justificação, em grego dikaíōsis, aparece apenas em Rm 4:25 e Rm 5:18, é o ato transformativo de capacitar a vida em retidão ou justiça diante de Deus, tais palavras traduzem os conceitos bíblicos de dikaiosynē ou tzedakah.

No Novo Testamento e na Septuaginta, o substantivo dikaiosynē (justiça) refere-se ao comportamento correto de uma pessoa. Porém, o verbo dikaioō (ser considerado justo) aparece para denotar uma decisão, ação ou opinião favorável a respeito de alguém, incluindo, mas não se limitando, a um contexto forense. Para complicar, mesmo dentro do corpus paulino há diferenças de conotações.

Há conotações que se perdem na tradução. O termo hebraico hatsdiq seria vertido para o grego dikaioun e, por fim, nas línguas latinas justificar. No hebraico, hatsdiq seria vindicar, apresentar como justo, ser declarado justo ou inocente, habitar em justiça. Já o sentido grego dikioun apresenta ainda uma conotação forense, ou seja, fazer justiça ou justiçar, o que pode ser inclusive uma sentença condenatória. Dada a raridade do termo dikaíōsis, não há precisão de seu alcance semântico, tampouco certeza das definições propostas. As ambiguidades do grego passaram para o latim que separa iustitia de misericordia. Para complicar, boa parte da recepção desse conceito em língua inglesa distingue entre righteousness (retidão, algo pessoal) e justice (justiça, algo social), distinção não compreendida pelo conceito de tzedakah.

SENTIDOS BÍBLICOS

Nos sentidos bíblicos, na justificação corrige-se um ato errôneo. No Antigo Testamento havia o anseio de sanar as injustiças dos ímpios (Sl 37), além de o próprio ser humano se justificar (Jó 32:2; Jó 33:32; Is 43:9), visto que Deus se apresenta como demandando justiça (Dt 32:4; Sl 11:7; Sl 146:6-8; Is 5:16), especialmente para o vulnerável (Sl 10:14-18; Sl 72:1-2; Pv 31:8-9). Em contrapartida, há uma preocupação de demonstrar que Deus age em justiça (Jó 32:2; Sl 51:4).

Em uma analogia de um julgamento, a justificação aparece nas Escrituras na prestação de contas de Israel com Deus dentro de uma aliança. Assim, a justificação passou a denotar e esperança de Deus restaurar a sorte de Israel depois das opressão, sendo inocentada como nação em um julgamento (cf. Sl 43:1; 135:14; Is 50:8; Lc 18:7), expurgado de suas transgressões. Nesse sentido, a justificação seria um ato declarativo.

Diante a impureza moral e ritual, a expectativa messiânica era de que o messias possibilitasse a justificação em um reino de justiça (Sl 97). Jesus não limitou essa justificação a uma nacionalidade. Antes, pregou a justificação de Deus aos pobres. O cobrador de impostos, e não o fariseu (hipocritamente autojustificado), voltou para casa justificado diante de Deus (Lc 18,14).

A morte de Jesus na cruz poderia ser vista como uma sentença condenatória por parte de Deus, mas sua ressurreição seria entendida pelos discípulos como a “vindicação” ou “justificação” de Deus da obra de Jesus (cf. Atos 3:14-15, 26; 1 Tim 3:16). O Novo Testamento retrata Jesus Cristo cumprindo essa expectativa messiânica pelo sangue de sua morte (Rm 3:24-25) e pela sua ressurreição. Esses eventos foram para justificação (Rm 4:25), possibilitando que a humanidade obtenha paz com Deus (Rm 5:1) e implantando o seu reino de justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Rm 14:17).

Sumarizando o sentido dos termos cognatos com dik* em Paulo, há as conotações:

  1. fruto pelo relacionamento com Cristo (Fp 1:11; 3:9);
  2. libertação do domínio do mal e pecado em uma justiça transformadora (Rm 6:7-22);
  3. ser contado como justo (Rm 3, 4, 5);
  4. ser declarado justo (justificação forense) (Rm 2:13; 8:1 em via negativa).

E em sumário, através da Bíblia:

Significado de JustiçaDescriçãoExemplos BíblicosDesafios
Conformidade com uma Norma/LeiAderência a regras, leis e padrões estabelecidos, geralmente com foco em mandamentos divinos.Lev 19:36-37; Dt 6:25; Sl 119:172; Ez 18:19; Mt 6:1Não explica facilmente “justiça” como misericórdia ou salvação; pode criar uma tensão entre a justiça e a misericórdia de Deus.
Fidelidade/Solidariedade em um RelacionamentoLealdade e fidelidade dentro de um relacionamento, especialmente entre Deus e humanos ou dentro de uma comunidade.1 Sam 26:23; Prov 31:9; Sl 82:3; Is 11:4; Jer 22:3Pode não se alinhar totalmente com as raízes etimológicas da palavra; alguns textos descrevem a justiça de Deus como punição.
Fidelidade à AliançaManter o acordo da aliança entre Deus e Israel, implicando obediência e lealdade.Dt 6:25; Ez 18:19; Sl 31:1; Lev 19:36-37; Is 62:1Difícil de aplicar a não israelitas que são chamados de justos; não explica totalmente a rejeição de Paulo da “justiça da Lei”.
Lealdade a uma PromessaFidelidade de Deus às suas promessas, particularmente promessas de salvação.Dn 9:7; Dn 9:16; Sl 143:1; Sl 98:2; Is 45:23Concentra-se principalmente na justiça de Deus e pode não abranger totalmente a justiça humana ou os aspectos legais.
Vontade/Ação SalvíficaAções salvadoras e misericordiosas de Deus, geralmente equiparadas à própria salvação.Sl 40:10; Sl 71:2; Sl 71:15; Sl 98:2; Is 45:8; Is 46:13Pode parecer um afastamento da compreensão tradicional de “justiça”; alguns textos mostram a justiça como salvação e punição.
Ordem na CriaçãoManter a ordem adequada do universo, tanto no mundo natural quanto na sociedade humana.Sl 85:12-13; Sl 97:1-2; Jer 22:3; Sl 112:9Não explica totalmente por que os pecadores apelam para a justiça de Deus para a salvação; pode não explicar os diferentes tipos de “justiça” em Paulo.
Outros SignificadosVitória, inocência/integridade, estabelecimento de um relacionamento correto com Deus.Is 59:16; Jó 27:5-6Esses significados geralmente têm um escopo mais restrito e podem não explicar toda a gama de uso bíblico.
Conformidade com o que é Indicado/Estabelecido (Significado Básico Proposto)Alinhamento com o que é especificado ou revelado, seja uma lei, uma promessa ou a vontade de Deus.Gn 15:6; 1 Sam 12:7; Esdras 9:15; Dt 32:4; Mt 1:19Este significado mais amplo potencialmente engloba os outros significados como instâncias específicas.

TEOLOGIA

A justificação é o tema central da teologia protestante, oriunda de uma preocupação presente nas teologias ocidentais desde o século XI acerca da obra de expiação.

Diversas teorias soteriológicas tentam explicar como Jesus Cristo foi oferecido pelo pecado (2 Co 5:21), para que a humanidade mediante a fé nele fosse justificada (Rm 3:26). Metáforas como resgate, regeneração, restauração, redenção, processo penal, participação da natureza divina integram a doutrina da justificação à doutrina da salvação.

Agostinho apresentou justificação como “ficar ou fazer justo” diante de Deus em contraste com o que ele representava o pensamento de Pelágio sobre a justificação como imitação da obra justa de Cristo.

A doutrina da justificação pela fé de Lutero enfatiza um aspecto forense da salvação do crente em contraste com as interpretações “papistas” e “escolásticas” da justiça infundida merecida por boas obras.

Lutero distinguiu didaticamente entre justiça coram deo (diante de Deus) e coram mundo (diante do mundo). A justiça coram deo seria uma justiça passiva, a justiça da fé, a justiça do Evangelho ou justiça de identidade, porque restaura a identidade do homem como filho de Deus. Não é baseado em obras. A justiça coram mundo também é chamada de justiça ativa, justiça civil, justiça da lei e justiça da razão, justiça de caráter e trata das atitudes e comportamentos de uma pessoa. O homem é capaz de fazer grandes coisas pelo próximo por meio de sua razão e força. No entanto, essas boas obras são imperfeitas, maculadas por desejos pecaminosos e motivações impuras. Assim, não pode merecer a salvação. No entanto, Deus cuida do bem-estar temporal deste mundo e espera que as obras do homem cuidem de suas criaturas. Enquanto somente Deus é responsável pela salvação somente pela graça através da fé somente não tira as responsabilidades do homem dentro do mundo.

Muitos teólogos e o protestantismo popular após Lutero confudiram essa distinção didática como se fossem processos distintos. Assim, atribuíam um caráter salvítico somente à justificação coram deo, temendo que a justiça coram mundo pudesse implicar obras meritórias. Assim, várias vertentes teológicas negligenciaram as consequências transformativas da justificação e as consequências das boas obras produzidas pelos justificados em Cristo: os que andam em novidade de vida em retidão por graça de Deus.

Stephen Chester demostrou como o Comentário de Gálatas de Lutero reúne justificação e participação por meio de uma estrutura orientada cristologicamente. A justificação não é apenas um status forense, mas também a criação da vida por Deus a partir da morte, pois o crente participa da vida de Deus em Cristo. Esse foco na participação na vida de Deus fornece uma congruência conceitual entre a doutrina da justificação de Lutero e a promessa da teose.

Várias vertentes evangélicas buscaram além dos aspectos forenses e dessa teologia popular. Abordagens weslayanas e algumas católicas enfatizam a união mística em Cristo. O pentecostalismo clássico sintetiza aspectos forenses com transformativos ao considerar a justificação como ato do Espírito Santo que vindica o crente e o capacita para obras de justiça. A hermenêutica da obediência da teologia anabatista lê os escritos paulinos (e o conceito de justificação) a partir dos evangelhos, principalmente do Sermão da Montanha. As perspectivas luteranas da nova escola finlandesa aproxima a teologia da cruz, o Christus Victor e conceitos de theosis com a doutrina de justificação.

O avanço das ciências bíblicas e o aumento da interação entre diversas tradições cristãs que compreendem a justificação com suas nuances demandou uma revisão teológica em setores do protestantismo de tradição anglo-saxônica. A chamada Nova Perspectiva sobre Paulo, por exemplo, é uma delas. Um dos seus expoentes, NT Wright, argumenta que a ‘justificação’ paulina está embasada em quatros conceitos. Há um tribunal da lei cósmica; um propósito progressivo de Deus (‘escatologia’); o fato da realização de Deus em Jesus Cristo e da participação humna nele; e, um propósito divino único, mediante Israel, para todo o mundo (‘aliança’).

Apesar dos diferentes ângulos, formulações e terminologias há um consenso teológico sobre a justificação. Como processo da graça, a justificação e a regeneração — ambas inseparáveis — estão envolvidas na ação de Deus em tornar as pessoas justas, derramando em seus corações amor por si mesmo e pelo próximo.

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Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação. 1999.

Uma consideração sobre “Justificação”

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