Pelagianismo

O pelagianismo é um conjunto de ideias, tidas como heréticas, atribuídas a Pelágio e seus seguidores.

As caracterizações do pelagianismo vêm dos escritos de Agostinho e das condenações dos concílios de Cartago.

O concílio de Cartago de 416 d.C. condenou as doutrinas de Celéstio, um seguidor de Pelágio. Segundo a condenação, Celéstio sustentava que o pecado de Adão não teve impacto sobre a humanidade e que os seres humanos poderiam viver sem pecado sem a ajuda divina. Esse concílio representou uma rejeição inicial das ideias sobre o pecado original e a graça.

O concílio de Cartago de 418 d.C. foi mais categórico em sua condenação, estabelecendo vários cânones que rejeitavam explicitamente as doutrinas atribuídas. O Cânon 1 negou que Adão tenha sido criado mortal independentemente do pecado, afirmando que a morte entrou no mundo por meio do pecado. O Cânon 2 declarou que os recém-nascidos precisam do batismo para a remissão dos pecados devido ao pecado original herdado. O Cânon 4 condenou a ideia de que a graça justificadora se limita ao perdão de pecados passados, destacando a necessidade da graça para a realização de qualquer boa ação. O concílio afirmou que a salvação depende inteiramente da graça de Deus e que os seres humanos não podem alcançar a justiça por seus próprios esforços, como se tal ideia foi doutrina de Pelágio.

Posteriormente, o papa Zósimo, que inicialmente hesitou, acabou por apoiar as decisões tomadas em Cartago após a pressão dos bispos africanos. Emitiu uma encíclica condenando Pelágio e Celéstio.

Bonner argumenta que o “pelagianismo” foi uma construção artificial, um conjunto de ideias atribuídas a Pelágio sem correspondência em seus escritos. Seus ensinamentos se alinhavam à tradição ascética preexistente, que defendia a capacidade humana para a virtude e o livre-arbítrio efetivo, como visto em autores como Atanásio (Vida de Antônio), Jerônimo e Teodoreto de Ciro.

BIBLIOGRAFIA

Beck, John H. “The Pelagian Controversy: An Economic Analysis.” American Journal of Economics and Sociology 66, no. 4 (2007): 681–96. [invalid URL removed].

Bonner, Ali. The Myth of Pelagianism. Oxford, UK: Oxford University Press, 2018.

Ferguson, John. Pelagius: A Historical and Theological Study. Cambridge: W. Heffer & Sons, 1956.

Scheck, Thomas P. “Pelagius’s Interpretation of Romans.” In A Companion to St. Paul in the Middle Ages, edited by Steven Cartwright, 79–114. Leiden: Brill, 2012.

Ticônio

Ticônio ou Tychonius, foi um estudioso cristão ativo entre 370 e 390 d.C. Associado ao movimento donatista africano, era um erudito teológico bem versado em história e conhecimento secular. Genádio de Massélia, em sua obra “De viris illustribus”, descreve Ticônio como um teólogo e historiador erudito que escreveu livros defendendo o donatismo, citando sínodos antigos para apoiar seus argumentos.

Apesar de sua afiliação donatista, Ticônio nunca se alinhou totalmente nem com os donatistas nem com os católicos, mantendo uma posição única e um tanto isolada. Escreveu duas obras hoje perdidas sobre os donatistas: “De bello intestino” e “Expositiones diversarum causarum”.

Seu legado repousa principalmente em duas obras: “Liber regularum” (O Livro das Regras) e “In Apocalypsin”, um comentário sobre o Livro do Apocalipse. Essas obras refletem seu profundo envolvimento com a interpretação das escrituras e sua influência em teólogos posteriores, mais notavelmente Santo Agostinho de Hipona.

O Livro de Regras e Interpretação Bíblica
O “Liber regularum” é um guia para interpretar a Bíblia, delineando sete regras para entender seu simbolismo e alegoria complexos. Essas regras ajudaram os leitores a navegar pela “vasta floresta de profecias” encontradas nas Escrituras.

Regra 1 (Sobre o Senhor e seu corpo),
Regra 2 (Sobre as duas partes do corpo do Senhor) e
Regra 7 (Sobre o Diabo e seu corpo) destacam a ambiguidade de certas figuras e imagens bíblicas.
Por exemplo, “o Senhor” pode se referir a Cristo ou à Igreja, enquanto referências ao Diabo podem significar o próprio Satanás ou seus seguidores.

Regra 4 (De specie et genere) que afirma que declarações sobre coisas específicas podem conter verdades gerais.
Regra 5 (Sobre o tempo) na qual os números podem simbolizar conceitos em vez de quantidades, e as referências ao tempo podem alternar entre previsão e descrição.
Regra 6 (Sobre recapitulação) explora ainda mais os múltiplos significados de elementos bíblicos, números e narrativas.
Diferentemente das outras, a Regra 3 (Sobre promessas e lei) aborda uma questão teológica: a compatibilidade da graça de Deus e do livre-arbítrio humano. Ticônio se baseia nos escritos do apóstolo Paulo para argumentar que a presciência perfeita de Deus permite tanto a graça quanto o livre-arbítrio.

O método interpretativo de Ticônio enfatizou padrões históricos em vez de princípios filosóficos. Salientou a harmonia entre a liberdade humana e a soberania de Deus e se concentrou em como Deus interage com o tempo humano. Sua abordagem à profecia bíblica foi particularmente inovadora, reinterpretando versículos sobre a Segunda Vinda como se referindo ao advento da Igreja.

A influência de Ticônio em Agostinho
Agostinho reconheceu o “Livro de Regras” de Ticônio em sua própria obra sobre interpretação bíblica, “Doutrina Cristã”. Empregou os métodos de Ticonio na “Cidade de Deus” para oferecer leituras não apocalípticas de passagens em Mateus e Apocalipse. O próprio conceito de Cidade de Deus Agostinho deve a Ticônio.

A visão de Ticônio da Igreja como um corpo misto de santos e pecadores forneceu a Agostinho munição contra a eclesiologia perfeccionista dos donatistas.

Mais significativamente, a interpretação de Ticônio sobre Paulo e seus pensamentos sobre graça e livre-arbítrio ressoaram com as próprias lutas de Agostinho. Embora Agostinho discordasse das visões específicas de Ticônio, ele adotou a ideia de que a história da salvação se desenrola tanto linearmente (por meio da narrativa bíblica) quanto internamente (por meio do crescimento espiritual individual).

Este encontro com Ticônio na década de 390 levou Agostinho a uma nova compreensão do eu, de Paulo e da narrativa bíblica, culminando em suas obras “Confissões”, “Contra Fausto”, “Comentário Literal sobre Gênesis” e “Cidade de Deus”.

Ad intra e ad extra

Em seu tratado teológico De Trinitate, Agostinho de Hipona (354-430 DC) introduziu as frases latinas “ad intra” e “ad extra” para delinear a dinâmica interna e os compromissos externos da Trindade.

“Ad intra” investiga as relações intrínsecas entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo dentro da Divindade, capturando a essência atemporal e imutável do Deus triúno. Agostinho elucidou a geração do Filho pelo Pai e a processão do Espírito Santo tanto do Pai quanto do Filho, destacando o amor, a mutualidade e a unidade.

Por outro lado, “ad extra” direciona a atenção para as atividades da Trindade no domínio externo — criação, sustento e redenção. Agostinho destacou papéis distintos dentro do plano salvífico da Divindade: o Pai como fonte, o Filho como mediador e o Espírito Santo como doador de vida e graça.

Essa distinção ad intra-ad extra provou ser fundamental na articulação coerente da Trindade por Agostinho, equilibrando a unidade e a diversidade da natureza trina de Deus. Salvaguardou a afirmação da unidade das três pessoas em essência, igualdade e eternidade, ao mesmo tempo que reconheceu os seus papéis e relacionamentos distintos, tanto dentro da Divindade como em relação ao mundo.

Enraizado numa tradição teológica que remonta a Tertuliano, Agostinho defendeu a igualdade das pessoas divinas em substância, fundamentando a sua unidade na essência divina partilhada. Esta igualdade ad intra, argumentou Agostinho, constitui a base para a sua ação inseparável ad extra. As distinções reais entre as pessoas dentro da Divindade, de acordo com Agostinho, sustentam os seus compromissos diferenciados com o mundo externo.

Para Agostinho, a doutrina do Pai, do Filho e do Espírito Santo compartilhando uma substância elimina qualquer indício de desigualdade dentro da vida divina, excluindo todas as formas de subordinação. Distinções reais entre as pessoas, firmemente fundamentadas em relações subsistentes, moldam a compreensão de Agostinho das relações ad intra da Trindade e das suas ações consequentes ad extra. Este quadro teológico, rico na exploração da dinâmica interna e externa da Trindade, continua a ser uma pedra angular no discurso teológico cristão.

VEJA TAMBÉM

Teorias sobre a Trindade

Vestigia Trinitatis

Vestigia Trinitatis ou Vestigia Trinitata é um conceito teológico sobre vestígios da sinais discerníveis da Trindade em toda a criação.

O conceito foi desenvolvido por Agostinho, apesar de origens em Tertuliano. Agostinho costumava usar a mente humana como exemplo. Ao contrário das ilustrações, estes sinais são considerados impressões da Trindade formadas durante o ato da criação. A Vestigia Trinitatis foi uma analogia importante para o desenvolvimento do trinitarianismo psicológico.

O conceito evoluiu ao longo da Idade Média, com Boaventura enfatizando a distinção entre os vestígios e a semelhança e imagem da Trindade. No entanto, a noção teológica enfrentou escrutínio, nomeadamente por parte de Karl Barth. Barth contestou a ideia de duas raízes de conhecimento da Trindade – uma da natureza e outra da revelação – argumentando que somente a revelação é a fonte primária. Barth afirmou que os verdadeiros traços da Trindade são encontrados na auto-revelação de Deus, desafiando a ideia de uma disposição trinitária imanente nas realidades criadas à parte da revelação. Barth enfatizou que a verdadeira compreensão da Trindade surge do ato de Deus de se manifestar de maneira humana, sustentando que a revelação é a única raiz da doutrina da Trindade.

As discussões teológicas em torno de Vestigia Trinitatis investigam a tensão entre a revelação e a ordem criada, destacando o significado da linguagem e os desafios colocados pelas tentativas de derivar a Trindade apenas da natureza. O conceito reflete debates teológicos mais amplos sobre a natureza da auto-revelação de Deus e o papel da revelação na compreensão dos mistérios da Trindade.

BIBLIOGRAFIA

Agostinho. De Trinitate. XV.46, 431.

Cunningham, David S. “Interpretation: Toward a Rehabilitation of the Vestigia Tradition,” in Knowing the Triune God: The Work of the Spirit in the Practices of the Church, ed. James J. Buckley and David S. Yeago. Grand Rapids: Eerdmans, 2001.

Hart, David B. “The Mirror of the Infinite: Gregory of Nyssa on the Vestigia Trinitatis,” Modern Theology 18 (2002): 541‐61

Leithart, Peter J. Traces of the trinity: Signs of God in creation and human experience. Brazos Press, 2015.

Graça preveniente

A graça preveniente, em latim gratia praeveniens ou gratia praeparans, é um conceito teológico que descreve a ação da graça divina na vida dos indivíduos antes e sem qualquer mérito próprio, capacitando-os a responder ao chamado de Deus e à oferta de salvação. Ela opera removendo os obstáculos espirituais causados pelo pecado e despertando a vontade humana para crer. É considerada uma doutrina central nas teologias Arminiana e Wesleyana, embora suas raízes remontem a Agostinho de Hipona e a outros pais da Igreja.

Panorama Histórico

  • Agostinho de Hipona: Agostinho aponta a necessidade da graça divina para iniciar a fé, argumentando que a vontade humana, corrompida pelo pecado, é incapaz de buscar a Deus por si mesma. (De spiritu et littera 60, De natura et gratia liber unus 31.35).
  • Tomás de Aquino: Seguindo Agostinho, Aquino também afirmou a necessidade da graça para a salvação, distinguindo entre graça operante, que age diretamente em nós, e graça cooperante, que nos auxilia a responder a Deus.
  • Reforma Protestante: A doutrina da graça preveniente foi debatida durante a Reforma. Enquanto Calvino e outros reformadores enfatizaram a depravação total e a graça irresistível, Arminius e seus seguidores defenderam a graça preveniente como uma forma de reconciliar a soberania divina com o livre-arbítrio humano.
  • John Wesley: Wesley desenvolveu a doutrina da graça preveniente de forma mais sistemática, argumentando que ela é universal e capacita todos os seres humanos a responder ao chamado de Deus. Ele a via como um remédio para a depravação total, restaurando a liberdade humana para escolher ou rejeitar a salvação.

Tabela Comparativa:

Tradição TeológicaPerspectiva sobre a Graça Preveniente
Católica RomanaA graça preveniente é essencial para a salvação, preparando a vontade humana para cooperar com a graça divina. É concedida a todos, mas pode ser resistida.
Ortodoxa OrientalHá uma sinergia entre graça divina e livre-arbítrio humano. A graça divina é necessária para iniciar e sustentar a fé. A pessoa regenerada só pode realizar as boas obras de fé se dependente da graça que guia e precede suas ações.
LuteranaA graça preveniente é vista como o Espírito Santo operando através da Palavra e dos sacramentos, despertando a fé no coração humano.
AnabatistaA graça preveniente é universal e capacita todos a responder ao chamado de Deus. Enfatiza-se a liberdade humana e a responsabilidade de responder à graça.
ArminianaA graça preveniente é universal, restaurando o livre-arbítrio e capacitando todos a crer. É resistida, mas necessária para a salvação.
WesleyanaSemelhante à Arminiana, mas com ênfase na graça preveniente como um remédio para a depravação total, restaurando a capacidade humana de amar e obedecer a Deus.
FinneyA graça preveniente capacita a vontade humana a escolher a Deus livremente. Finney rejeitou a ideia de depravação total, argumentando que os seres humanos possuem uma capacidade natural de crer.
KeswickA graça preveniente capacita os crentes a regenerarem e a viverem uma vida vitoriosa sobre o pecado em uma progressiva santificação.
Reformada (em geral)A graça preveniente é vista com ceticismo, sendo comparada à graça comum, que não remove a depravação total, e ao chamado eficaz, que é irresistível.
BarthBarth rejeitou a graça preveniente como um conceito que diminui a soberania divina e a centralidade da graça na salvação.
BerkouwerBerkouwer criticou a graça preveniente por sugerir uma capacidade humana de contribuir para a salvação, mas reconheceu a ação divina na preparação do coração humano para a fé.
KuyperKuyper via a graça preveniente como uma forma de graça comum que opera em todas as áreas da vida, mas não garante a salvação.
BavinckBavinck rejeitou a graça preveniente como um conceito que compromete a soberania divina e a distinção entre graça comum e graça salvadora.

Recepção com a Teologia Reformada:

A teologia reformada tradicionalmente rejeita a doutrina da graça preveniente por considerá-la incompatível com a depravação total e a graça irresistível. No entanto, alguns teólogos reformados, como Karl Barth e G.C. Berkouwer, buscaram reinterpretar a graça preveniente de forma a torná-la compatível com a soberania divina.