Filiação divina

A filiação divina é uma doutrina cristã que afirma que Jesus Cristo é o Filho unigênito de Deus por natureza e, por meio de Jesus, os crentes se tornam filhos (e filhas) de Deus por adoção (João 1:11–13; Romanos 8:14–17).

A filiação divina é a peça central do Evangelho, fornecendo a razão para a salvação da humanidade e o propósito por trás do batismo (2 Pedro 1:4). Implica divinização, permitindo que os crentes participem da natureza divina (2 Pedro 1:4). As referências bíblicas em João e Romanos destacam o poder transformador do Espírito Santo, afirmando os crentes como filhos de Deus e herdeiros com Cristo.

A noção de Imago Dei na Bíblia reivindica que toda a humanidade seja filha de Deus (Gn 1:26-27; Sl 8:4-5; Tg 3:9; Cl 3:9-10; At 17:28). Na mesma linha, diversas genealogias ligam a humanidade a Deus. O Novo Testamento retrata Jesus Cristo como cabeça da família cristã (Ef 5:23; Cl 1:18) e conectando a humanidade com o Pai.

O tema da filiação divina é apresentado com destaque no Evangelho de João. Esse evangelho enfatiza a relação transformadora entre Jesus Cristo e aqueles que nele creem. Escrito a uma audiência quando os crentes em Jesus eram minoritários entre os israelitas, argumenta que filiação ou pertencimento étnico não seria vantagem, “Mas a todos os que o receberam, aos que creram em seu nome, deu-lhes o direito de serem feitos filhos de Deus.” (João 1:12). Essa e outras passagens joaninas (João 3:3; 4:19-24; 8:39-59; 11:52; 20:17; 14:20) salientam a salvação como integração à família de Cristo, não contradizendo a doutrina da filiação divina como origem da humanidade.

Essa doutrina, defendida pela maioria dos cristãos, encontra uso particular na teologia católica. Na teologia católica, a doutrina da filição divina deriva-se da doutrinas da Criação, Trindade e da Encarnação, assim Deus Filho assumiu a natureza humana como Jesus de Nazaré (João 1:14).

Em algumas vertentes reformadas, especialmente entre adeptos da doutrina da expiação limitada, a filiação divina é entendida como restrita somente aos eleitos, citando textos-provas como João 1:12; 8:44.

O tema da filiação divina no Novo Testamento não se confunde com o conceito de filhos de Deus (bnei Elohim) presente no Antigo Testamento e na literatura sírio-cananeia.

Antropologia teológica

A Antropologia Teológica é um ramo da teologia sistemática que lida com temas relacionados à humanidade e sua constituição diante das coisas divinas. Não se confunde em métodos, objetivos e escopo com a disciplina homônima da antropologia, ramo das ciências sociais.

A antropologia, em termos teológicos, é o ramo da teologia sistemática que explora a natureza, o propósito e a condição da humanidade em relação a Deus. Examina a compreensão teológica da humanidade como criada por Deus, caída no pecado e redimida por meio de Jesus Cristo.

O estudo da antropologia teológica emprega vários métodos e abordagens. Ele se envolve na exegese bíblica, examinando passagens que revelam percepções sobre a natureza e o propósito da humanidade. Também se baseia em tradições e ensinamentos teológicos, explorando as percepções dos teólogos ao longo da história. Além disso, incorpora a reflexão filosófica para abordar questões relacionadas à identidade humana, ao propósito e à relação entre corpo e alma.

Tópicos principais:

  • Criação e Imago Dei: investiga a doutrina da criação, afirmando que os seres humanos são criados exclusivamente por Deus à Sua imagem (imago Dei). Explora as implicações de ser feito à imagem de Deus, incluindo a dignidade humana, a responsabilidade moral e a capacidade de relacionamento com Deus e com os outros.
  • Hamartiologia: Este tópico explora os efeitos do pecado atual e original (dos pais primevos Adão e Eva) na natureza e na existência humana. Aborda conceitos de pecado original, pecado universal, pecado ancestral, inclinação para o mal, alienação de Deus e distorção das faculdades humanas.
  • Natureza Humana: examina a natureza da humanidade, incluindo a relação entre corpo e alma, o significado do gênero, os aspectos morais e racionais dos seres humanos e a tensão entre a liberdade humana e a soberania divina.
  • Redenção e Restauração: enfoca a obra redentora de Jesus Cristo e seu impacto na humanidade. Explora a doutrina da salvação, considerando temas como justificação, santificação e glorificação. Também aborda o processo de transformação espiritual e a esperança da futura ressurreição e restauração.
  • Implicações éticas: explora as responsabilidades e obrigações morais dos seres humanos à luz de seu relacionamento com Deus e com os outros. Aborda temas como justiça social, direitos humanos, ética e as implicações éticas da imago Dei nas relações humanas e estruturas sociais.
  • Esperança Escatológica: O estudo da antropologia teológica inclui a esperança de cumprimento escatológico para a humanidade. Considera o destino final do ser humano, a ressurreição do corpo e a esperança da vida eterna na comunhão com Deus.

Como subdisciplina, essa abordagem discute tópicos como:

  • Constituição ontológica do ser humano;
  • Imortalidade e atitude diante do mundo vindouro;
  • Estado intermediário;
  • A ressurreição e corporalidade;
  • A inerente bondade, maldade ou um misto dos dois;
  • O pecado original, o hybris, a expiação e redenção;
  • Livre-arbítrio e determinismo;
  • A origem do sofrimento e o propósito do mal;
  • O significado da vida ou o propósito da existência.

Constituiçao ontológica do ser humano

Diversas posturas biológicas, psicológicas, antropológicas e teológicas discutem como é constituído o ser humano:

  • Monismo imaterial ou idealismo: há somente uma realidade espiritual e o ser humano integra-a. Proposta por George Berkeley.
  • Monismo material ou fisicalismo: o ser humano é mais um animal, ainda que culturalmente complexo, com a emergência da consciência como variável de processos biológicos sem haver uma alma ou espírito imaterial. Proposta por Uriel Acosta, Marx, Nietzsche, Darwin, Spencer, Freud, L. Baker e Kevin Corcoran.
  • Monismo e teísmo naturalista: pressupõe a existência integrada do ser humano, com um componente (alma ou espírito) emergente da composição biológica. O divino age na história e na natureza de modo imanente, portanto, sem necessidades sobrenaturais de constituir a existência. A novidade dessa abordagem é a combinação de exegese bíblica com informações da antropologia e da neurociência. Seus expoentes são Henry Wheeler Robinson, Aubrey Johnson, N.T. Wright, Nancey Murphy (fisicalismo não reducível) e Joel Green, os últimos ambos ligados ao Seminário Fuller.
  • Emergentismo: sustenta que as almas são pessoais e individuais com propriedades ontologicamente distintas e irredutíveis e capacidades geradas por processos físicos e biológicos de seus corpos. Defendida por A. Peacocke, P. Clayton e T. O’Connor.
  • Monismo psicofísico: almas e corpos (pessoalidade e organismo) são aspectos correlativos de seres humanos. O seres humanos são eventos primordiais que não são nem puramente materiais nem imateriais, mas geram ambos. Postura de John Polkinghorne, Wolfhart Pannenberg e David Griffin.
  • Dualismo corpo-mente: o ser humano possui um corpo material e uma alma racional radicalmente separadas. A humanidade, em sua essência, reside na alma (a substância pensante), enquanto o corpo é sua substância extensa e substituível por recomposição (vide o Navio de Teseu). Proposta por Platão, Agostinho de Hipona, Descartes e Nicolas Malebranche.
  • Realismo hilomorfista: há somente uma substância inseparável para o ser o humano vivente, porém sob dois princípios intrínsecos: a matéria primária é potencial mas assume forma substancial atual. Para a tradição aristotélico-tomista, no geral, esses são os significados para os termos corpo e alma. O aspecto imaterial do ser humano depende do material para adquirir o conhecimento e viver nesse mundo. Proposta por Aristóteles, Duns Scotus, Avicebron e Tomás de Aquino.
  • Trialismo, tripartite ou tricotomia: distinção entre três fundamentos do ser humano: corpo, alma e espírito. Enquanto o ser humano compartilha a matéria e a vida com os animais, a consciência seria um terceiro elemento único. Por vezes, o termo alma refere-se à vida e espírito à consciência, mas há pensadores que usam esses termos de modo invertido. É uma concepção eminentemente cristã, derivada de uma leitura literal de Paulo que disse: “E o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo, sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo“. 1 Tessalonicenses 5:23. Proposta por autores iniciais da patrística como Irineu, Melito de Sardes, Justino Mártir, Orígenes bem como por pensadores germânicos como Lutero, Kierkegaard, teólogos reformados e luteranos do século XIX.
  • Transcendentalismo ou fenomenologia: postula um espírito universal compartilhado por cada ser humano em particular. O aspecto subjetivo do ser humano o separa radicalmente dos objetos. Proposta por Immanuel Kant, Ralph Waldo Emerson e Edmund Husserl.
  • Existencialismo: a existência precede a essência. O ser humano existe no mundo e com suas escolhas se define como ser ou essência. Proposta por Heidegger, Sartre e Gabriel Marcel.
  • Estruturalismo e antropologia simbólica: a realidade humana reside em plano simbólico, boa parte inconsciente. O sentido do ser humano é relacional, principalmente moldado mediante as estruturas sociais, relações de poder e teias de símbolos. Proposta por Cassirer, Jung, Lévi-Strauss, Geertz e Michel Foucault.

Nos textos bíblicos há um conjunto de perspectivas sobre a ontologia do ser humano. O consenso entre biblistas era que antes do Exílio, os antigos hebreus eram monistas, mas depois tiveram influências dualistas persas e gregas. No Novo Testamento haveria concepções dicotomistas e tricotomistas. No entanto, pesquisas recentes revelam um cenário mais complexo, como por exemplo a Inscrição de Katumuwa indicando a possibilidade da crença em existência autônoma da alma separada do corpo entre povos semitas.

BIBLIOGRAFIA

Alves, Leonardo. Fundamentos da Antropologia Filosófica. Ensaios e Notas, 2019.

Cooper, John W. Body, Soul, and Life Everlasting: Biblical Anthropology
and the Monism–Dualism Debate
. Grand Rapids: Eerdmans, 1989.

Steiner, Richard C. The nefesh in Israel and kindred spirits in the ancient Near East, with an appendix on the Katumuwa inscription. Ancient Near East Monographs 11. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2015.