Chaoskampf é um motivo literário e um tema mitológico presente em diversas culturas antigas, descrevendo a batalha entre um herói divino e uma entidade caótica, frequentemente representada por um monstro marinho, serpente ou dragão.
Este motivo permeia mitologias do Antigo Oriente Médio, como o Ciclo de Baal ugarítico (Baal contra Yam, o deus do mar), o Enuma Elish babilônico (Marduk contra Tiamat, a deusa do oceano primordial) e também se manifesta em mitologias grega (Zeus contra Tifão), persa, indiana e egípcia. É frequentemente associado, mas não necessariamente, com a Criação e com o Escaton.
Em 1895 Hermann Gunkel, inspirado por materiais fornecidos pelo assiriologista Heinrich Zimmern, argumentava que Chaoskampf do Apocalipse como um evento que não ocorreria apenas no fim do mundo, mas já havia acontecido no início, antes da Criação.
Na Bíblia, há várias referências explícitas (Isaías 27:1; 51:9-11; Habacuque 3:8; Salmo 74:13-15; Salmo 77:16-19; Salmo 89:6-14; e Jó 26:5-13) e outras menos explícitas (Gênesis 1:1-3).
As águas te viram, ó Deus,
as águas te viram, e tremeram;
os abismos também se abalaram.
Grossas nuvens se desfizeram em água;
os céus retumbaram;
as tuas flechas correram de uma para outra parte.
A voz do teu trovão repercutiu-se nos ares;
os relâmpagos alumiaram o mundo;
a terra se abalou e tremeu.
Pelo mar foi teu caminho,
e tuas veredas, pelas grandes águas;
e as tuas pegadas não se conheceram.
Sl 77:16-19
Deus (YHWH, יהוה) não cria a partir de um combate, mas demonstra Seu poder soberano sobre as forças do caos, frequentemente simbolizadas pelas águas primordiais (tehom, תְּהוֹם – Gênesis 1:2), o mar (yam, יָם), e monstros marinhos como Leviatã (לִוְיָתָן – Jó 41:1; Salmo 74:14; Isaías 27:1) e Raabe (רַהַב – Salmo 89:10; Isaías 51:9). O termo tannin (תַּנִּין), traduzido como “monstro marinho” ou “dragão,” também é empregado (Gênesis 1:21; Ezequiel 29:3).
Essas referências bíblicas, muitas vezes poéticas, demonstram o poder de Deus sobre a criação e a ordem cósmica. Ele divide as águas (Gênesis 1:6-7), estabelece limites para o mar (Jó 38:8-11), e derrota os monstros marinhos, símbolos de desordem e oposição. O Salmo 77:16-19 descreve a teofania divina com imagens de controle sobre as águas: “As águas te viram, ó Deus, as águas te viram, e tremeram; os abismos também se abalaram.” A vitória sobre esses seres não é uma luta para criar, mas uma demonstração contínua da manutenção da ordem estabelecida e da proteção de Israel.
No Novo Testamento, a linguagem do Chaoskampf é empregada de maneira simbólica. A serpente (ophis, ὄφις) do Éden (Gênesis 3) é associada ao dragão (drakōn, δράκων) do Apocalipse (Apocalipse 12:9), que representa Satanás, a fonte do caos e do mal. Jesus Cristo, ao acalmar a tempestade (Marcos 4:35-41), demonstra poder sobre o mar, um domínio que evoca o controle divino sobre o caos primordial. Suas curas, exorcismos e, crucialmente, sua morte e ressurreição são interpretados como vitórias sobre as forças do mal e da morte, ecoando o tema do Chaoskampf. O Apocalipse descreve a derrota final do dragão e o estabelecimento do reino de Deus, consumando a vitória divina sobre o caos (Apocalipse 20). A figura do “Filho do Homem” (Daniel 7), título frequentemente usado por Jesus, é central nessa vitória, recebendo domínio eterno sobre os reinos terrestres, representados por bestas que emergem do mar.
BIBLIOGRAFIA
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