Biblistas de Paris

A Escola de Paris de exegese bíblica, florescente nos séculos XII e XIII, representou um marco na interpretação das Escrituras. Conhecidos como “os biblistas de Paris” ou “os vitorinos,” em referência à Abadia de São Vítor onde boa parte estava associado, seus membros buscaram uma abordagem mais literal e histórica, em contraste com a exegese alegórica predominante.

Composta por clérigos da Abadia de São Vítor, estudiosos da escola da catedral de Notre Dame e leigos da nascente Sorbonne, os biblistas de Paris reacenderam os interesses pela exegese. Praticavam a lectio continua, isto é, uma leitura expositiva livro a livro das Escrituras.

William de Champeaux, Hugo de São Vítor, André de São Vítor, Pedro Lombardo, Pedro Abelardo e Stephen Langton figuram entre os seus principais expoentes. Hugo de São Vítor enfatizou a importância do estudo das línguas originais e da geografia bíblica, enquanto André de São Vítor se destacou por seu profundo conhecimento do hebraico e por sua consulta a fontes judaicas. Pedro Lombardo, com suas Sentenças, fundamentou uma crítica dialética que influenciaria tanto teologia medieval quanto a harmonização de passagens bíblicas. Stephen Langton contribuiu para a divisão da Bíblia em capítulos.

Uma versão popular da Bíblia foi escrita por Pedro Comestor. Sua Historia scholastica, uma paráfrase da Bíblia escrita para a escola da catedral de Notre Dame, acabou tornando-se um texto amplamente copiado para uso nas universidades e na devoção popular.

A Escola de Paris impulsionou o desenvolvimento da crítica textual e histórica, pavimentando o caminho para a exegese moderna.

Quadriga

A quadriga, ou método quádruplo de interpretação, é uma abordagem hermenêutica que surgiu na Antiguidade Tardia ocidental e foi popular Idade Média. Este método foi, em sua plenitude, desenvolvido por João Cassiano (cerca de 360-435 d.C.), que expandiu a teoria anterior do sentido triplo da Escritura, proposta por Orígenes. A quadriga consiste em quatro sentidos principais: literalalegóricotropológico e anagógico.

Os Quatro Sentidos da Quadriga

  1. Literal (ou Histórico): Este é o sentido mais básico e refere-se ao significado direto das palavras do texto. É a interpretação que considera os eventos e o contexto histórico e cultural em que as Escrituras foram escritas.
  2. Alegórico (ou Doutrinal): Este sentido busca entender os eventos bíblicos como prefigurações de verdades espirituais ou doutrinais. Por exemplo, a travessia do Mar Vermelho é vista como uma prefiguração do batismo cristão.
  3. Tropológico (ou Moral): Refere-se ao ensinamento moral que pode ser extraído das Escrituras. Este sentido é voltado para a aplicação prática da fé na vida cotidiana dos crentes, orientando-os sobre como viver de acordo com os princípios cristãos.
  4. Anagógico (ou Místico): O sentido anagógico aponta para as realidades futuras e esotéricas, ligando os textos bíblicos às esperanças escatológicas. Este sentido ajuda os fiéis a contemplar as promessas de Deus sobre a vida eterna e o Reino dos Céus.

A quadriga foi fundamental para a formação do pensamento teológico medieval, pois ofereceu uma estrutura abrangente para a interpretação das Escrituras. Os teólogos medievais utilizavam esta metodologia para explorar as múltiplas dimensões dos textos sagrados, permitindo que cada leitura revelasse aspectos diferentes. Uma famosa rima latina que resume os quatro sentidos é:

“Litera gesta docet; quid credas allegoria; moralis quid agas; quo tendas anagogia.”

Essa rima destaca como cada sentido contribui para a compreensão global das Escrituras: o literal ensina sobre ações passadas, o alegórico sobre crenças, o moral sobre comportamentos e o anagógico sobre esperanças futuras.

Declínio e Legado

Com o advento da Reforma no século XVI, o uso da quadriga começou a declinar em favor de métodos mais simplificados de interpretação bíblica. No entanto, os reformadores mantiveram algumas preocupações do método quádruplo, especialmente no que diz respeito à relevância direta do texto para a Igreja1. A quadriga continua a ser estudada e apreciada por aqueles que buscam uma compreensão mais profunda das Escrituras dentro da tradição cristã.

Atualização

A atualização, referente à exegese bíblica, indica o processo de aplicar e tornar o texto bíblico relevante no contexto atual. Envolve fechar a lacuna entre o público original do texto bíblico e os leitores ou ouvintes contemporâneos.

Esta etapa de interpretação foi descrita como “atualização” no documento de 1992 da Pontifícia Comissão Bíblica intitulado “A Interpretação da Bíblia na Igreja”. O objetivo da atualização é entender como as verdades e princípios atemporais encontrados no texto bíblico podem ser aplicados às atuais circunstâncias e desafios enfrentados por indivíduos, comunidades e sociedade como um todo. Requer fazer conexões entre o contexto histórico e cultural do texto e o contexto contemporâneo, levando em consideração fatores culturais, sociais e éticos.

O estágio de atualização encoraja crentes e estudiosos a explorar as implicações práticas da mensagem bíblica em suas próprias vidas e no mundo ao seu redor. Isso levanta questões como: O que essa passagem significa para nós hoje? Como podemos viver os ensinamentos da Bíblia em nosso contexto atual? Que relevância tem este texto para os desafios e questões que enfrentamos na nossa sociedade contemporânea?

É importante notar que a atualização muitas vezes é erroneamente confundida com outros estágios de interpretação, como aplicação, análise e explicação. A aplicação envolve a identificação do valor normativo de uma passagem, enquanto a análise se concentra na compreensão de sua estrutura e significado. A explicação, por outro lado, envolve a utilização de todas as informações disponíveis para fornecer uma compreensão abrangente do texto em questão.

Exegese

Exegese é a interpretação crítica e explicação de textos, especialmente textos religiosos como a Bíblia. É a prática de interpetação meticulosa de um texto de acordo com normas e métodos academicamente aceitos.

O termo tem origem na palavra grega ἐξήγησις (exēgēsis), que significa “conduzir para fora” ou “explicar”. Este processo analítico busca revelar os significados plausíveis de um texto conforme compreendido por seus autores, transmissores e suas audiências, evitando projeções de interpretações arbitrárias ou preconceitos sobre ele.

A exegese caracteriza-se por uma leitura objetiva. O foco é o significado do texto em seu contexto histórico e cultural. Esse método evita especulações ou interpretações criativas. A compreensão do contexto histórico e cultural é fundamental, incluindo análise putativa das situações dos autores, do contexto de sua audiência e do ambiente sociopolítico em que o texto foi escrito. A análise de técnicas literárias, formas e estruturas dentro do texto também desempenha um papel essencial na exegese, permitindo uma compreensão mais profunda de seu significado. Diferentes metodologias podem ser aplicadas, como a crítica textual, a análise linguística e a hermenêutica, o estudo dos princípios de interpretação.

No campo dos ciências bíblicas, a exegese refere-se especificamente à interpretação da Bíblia. Esta prática tem raízes nas tradições judaica e cristã, evoluindo ao longo dos séculos para abordar questões teológicas e ensinamentos morais extraídos dos textos sagrados. No Judaísmo, a exegese remonta ao antigo Israel, com figuras como Esdras sendo consideradas fundamentais no estabelecimento de métodos para interpretar textos sagrados. Ao longo da história, estudiosos judeus utilizaram a exegese para derivar leis e ensinamentos éticos da Torá, empregando técnicas interpretativas que refletem influências linguísticas e filosóficas de culturas circundantes. No Cristianismo, a patrística foi responsável pelo desenvolvimento de métodos exegéticos que influenciaram a teologia e a doutrina cristãs. Com o tempo, o trabalho exegético tornou-se essencial para a compreensão de questões doutrinárias e da autoridade das Escrituras no Cristianismo.

Na prática contemporânea, a exegese permanece como uma disciplina vital nos estudos bíblicos. Eruditos utilizam uma variedade de ferramentas e abordagens, incluindo comentários publicados que fornecem análises detalhadas dos textos bíblicos, com contextos históricos, detalhes linguísticos e implicações teológicas. Além disso, estudos acadêmicos modernos frequentemente adotam abordagens interdisciplinares que incorporam arqueologia, sociologia e literatura comparativa para enriquecer a compreensão dos textos.

A exegese desempenha funções importantes, como a clarificação de passagens ambíguas por meio do fornecimento de contexto e da exploração de interpretações fundamentadas em evidências textuais. Contribui para o desenvolvimento teológico, ajudando a moldar discursos teológicos e a informar crenças e práticas religiosas. Além disso, permite a aplicação dos textos bíblicos em contextos contemporâneos, ao mesmo tempo que respeita os significados prévios.

Tríade hermenêutica pentecostal

A tríade Espírito, Texto e Comunidade; Palavra, Espírito e Igreja; ou ainda Escrituras, Espírito e Eclésia, é um modelo proposto por Thomas (1994), Yong (2002) e Archer (2004) que resume a prática interpretativa realizada entre pentecostais.

A TRÍADE PENTECOSTAL

Análogo à prática interpretativa registrada em Atos 15, a hermenêutica produz entendimento pela relação dinâmica de três elementos:

Escrituras: A Bíblia é a Palavra inspirada de Deus e a fonte última da verdade cristã. Os pentecostais abordam a Bíblia com abordagens variadas, como interpretação literal, método de leitura bíblica, exegese histórica, existencial e devocional. No entanto, eles também acreditam que a Bíblia é um documento vivo que fala às suas vidas hoje, constituindo uma abordagem também contextual.

Espírito: Como seu autor, o Espírito Santo é o guia e intérprete final das Escrituras. A guia do Espírito pode iluminar o significado do texto e ajudá-los a aplicá-lo em suas vidas. O mesmo Espírito que inspirou a composição bíblica ainda fala hoje, sendo capaz de desnvendar novos entendimentos sobre a Bíblia, a vida cristã e concepções teológicas. Do mesmo modo que o Espírito Santo produziu consenso em Atos 15, a válida interpretação contemporânea tem a marca do Espírito de produzir comunhão e edificação. Por fim, o Espírito Santo move a interpretação profética das Escrituras para edificação, exortação e consolo.

Comunidade: o lócus interpretivo da Bíblia é em comunidade. As Escrituras foram canonizadas como obras de leitura pública. Assim, descontextualizá-la do culto e vida devocional retira o pano de fundo necessário para uma correta e fiel interpretação. O Espírito guia a comunidade como um todo e que os crentes individuais podem aprender com as percepções dos outros. A comunidade pode ajudar a evitar que interpretem mal a Bíblia. Enquanto Yong enfatiza a comunidade total do cristianismo pentecostal interpretando globalmente as Escrituras em comunhão, Archer enfatiza o papel litúrgico da interpretação bíblica na igreja local como comunidade interpretativa. De qualquer forma, a Igreja como comunidade interpretativa limita interpretações arbitrárias, desinformadas e desviantes.

A tríade hermenêutica pentecostal é um conceito dinâmico e em evolução. Não existe uma interpretação única e oficial da tríade, e os próprios pentecostais têm entendimentos diferentes sobre como aplicá-la.

ESTRATÉGIAS INTERPRETATIVAS PENTECOSTAIS

Para verificar a coerência e correspondência com as práticas pentecostais, Alves (2023) realizou uma pesquisa empírica etnográfica. Salienta que na vida concreta o modelo triádico ocorre meio a uma série de estratégias interpretativas.

Algumas da principais estratégias da hermenêutica pentecostal que ligam os polos da tríade hermenêutica pentecostal são as leituas:

  • Experimental. a Bíblia foi feita para ser experimentada, não apenas estudada. O crente pentecostal encontra Deus por meio da Bíblia, sob a guia do Espírito.
  • Rlacional. A Bíblia deve ser interpretada em comunhão com Deus, via Espírito, e comunidade, a Igreja. Sem esses vínculos, qualquer interpretação para a o cristão será problemática.
  • Recursiva: a intepretação seleciona e invoca textos com referência para a necessidade da ocasião. Os mesmos textos podem receberem diversas configurações interpretativas fluidas, conforme guia do Espírito e necessidade da comunidade.
  • Analógica: Ao invés de buscar uma reconstrução histórica do passado bíblico para atualizá-lo no presente, o crente pentecostal vê-se como parte da mesma história, aplicando por analogia os ensinos bíblicos.
  • Contextual: a imaginação e recriação do contexto apresentado no texto bíblico elucida a aplicação para compreensão da passagem.
  • Fragmentária: versículos, papéis de recitativos ou de caixinhas de promessas, memes por mídias sociais são capazes de plenamente comunicar a Palavra de Deus.
  • Polivalente: Entende que a significância de um texto é polivante. Assim, não há preocupações em determinar um só significado textual pela intenção autoral, nem pela recepção das primeiras audiências ou pela recepção da patrística ou da reforma.
  • Presente: Há uma relevância do texto bíblicopara as necessidades da vida diária mediante uma iluminação espiritual, bem como uma correspondência atual (e pessoal) com o mundo da história bíblica.
  • Sacramental: As Escrituras é um ponto tangível de contato entre a graça divina e o crente.
  • Incorporada: A mensagem das Escrituras é memorizada, digerida, corporificada, integrada no ser do crente leitor.
  • Narrativa: As Escrituras são lidas, transmitidas e compreendidas em um emuldoramento primordialmente narrativo. Exposições argumentativas, existem, mas sem o mesmo peso da narrativa.
  • Dialógica: A interpretação ocorre em diálogo com outros leitores da Comunidade e com a presença percebida de Deus pelo Espírito Santo.
  • É uma leitura cíclica, frequente, assistemática e multi-mídia.

A tríade hermenêutica pentecostal é um conceito dinâmico e em evolução, e não existe uma interpretação única e oficial da tríade. No entanto, fornece uma estrutura útil para a compreensão de como os pentecostais abordam a Bíblia.

MODELO TRIÁDICO E MÉTODOS EXEGÉTICOS

A adoção da tríade hermenêutica pentecostal não exclui diálogo e aproveitamento de outros métodos. Archer (2004) aponta para a popularidade do Método de Leitura Bíblica entre os primeiros pentecostais. Essa abordagem indutiva, tópica e sincrônica continua sendo praticada em grande parte de segmentos populares do pentecostalismo. Por outro lado, Keener (2016) argumenta que a leitura guiada pelo Espírito e situada na Igreja não contradiz e nem deve desencorajar a busca da compreensão original dos textos bíblicos pelos métodos exegéticos históricos.

A abordagem de Keener retrata bem a leitura feita por biblistas pentecostais como Fee, Menzies em tempos recentes, bem como Giuseppe Petrelli e Jonatham Paul no início do pentecostalismo. Contudo, tendo sua própria história, a hermenêutica pentecostal não precisa ficar cativa da exegese acadêmica, tampouco de pressupostos teológicos de outras tradições. Antes, o diálogo de uma interpretação vivida na liturgia e o desenvolvimento de uma teologia congregacional pode existir em diálogo com a exegese acadêmica e a teologia magisterial.

A emergência de uma hermenêutica distintivamente pentecostal resulta de sua história e contextos teológico e social. Como salientam Faupel (1996) e King (2011), em suas origens, os pentecostais não eram nem liberais nem fundamentalistas, na ocasião ambos grupos orientados por um desvelamento do sentido original do texto mediante ferramentas históricas. Como os liberais, tinham uma consciência do impacto social e comunitário de suas interpretações e enfatizavam a justiça prática. Como os fundamentalistas, considerava real todo elemento sobrenatural registrado em suas páginas. No entanto, queriam ler suas Bíblias com fé (ao contrário do ceticismo dos liberais) e experimentar toda a ação de Deus em suas vidas hoje (ao contrário dos fundamentalistas, que eram em sua maioria cessacionistas).

BIBLIOGRAFIA

Alves, Leonardo. “Unbound Bible: Empirical hermeneutics in Latin Migrant Pentecostal congregations in the Nordics.” PentecoStudies 21.2 (2023): 188-207.

Archer, Kenneth. A Pentecostal Hermeneutic for the Twenty First Century: Spirit, Scripture and Community. Vol. 28. London: T&T Clark, 2004.

Faupel, D. William. The Everlasting Gospel: The Significance of Eschatology in the Development of Pentecostal Thought, JPTSup 10. Sheffield, UK: Sheffield
Academic Press, 1996.

Kärkkäinen, Veli-Matti. “Pentecostal Hermeneutics in the Making: On the Way From Fundamentalism to Postmodernism.” Journal of the European Pentecostal Theological Association 18, no. 1 (April 1998): 76–115.

Keener, Craig S. Spirit Hermeneutics: Reading Scripture in Light of Pentecost. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2016.

King, Gerald Wayne. “Disfellowshiped : Pentecostal responses to fundamentalism in the United States, 1906-1943”. Pickwick, 2011.

Martin, Lee Roy. Pentecostal Hermeneutics : A Reader. Brill, 2013

Thomas, John. 1994. “Women, Pentecostals and the Bible: An Experiment in Pentecostal Hermeneutics.” Journal of Pentecostal Theology 2 (5): 41–56.

Yong, Amos. Spirit – Word – Community: Theological Hermeneutics in Trinitarian Perspective. Eugene, OR: Wipf & Stock, 2002