Marcionismo

O Marcionismo, doutrina cristã dualista fundada por Marcião de Sinope por volta de meados do século II, propunha uma distinção radical entre o Deus do Antigo Testamento, considerado um criador imperfeito e zeloso, e o Deus do Novo Testamento, um ser de puro amor e graça revelado em Jesus Cristo.

Marcião rejeitava todo o Antigo Testamento e grande parte do Novo, aceitando apenas uma versão editada do Evangelho de Lucas e dez epístolas paulinas, por ele purgadas de referências ao judaísmo. Sua teologia enfatizava a salvação pela fé em Cristo, contrastando com o legalismo judaico. A rápida disseminação do Marcionismo levou a Igreja primitiva a definir seu cânon bíblico e a formular o Credo Niceno para refutar suas ideias, consideradas heréticas. Apesar da forte oposição e de ter sido eventualmente extinto como movimento religioso organizado, o Marcionismo forçou a Igreja a confrontar questões cruciais sobre a autoridade das Escrituras, a natureza de Deus e a relação entre o Antigo e o Novo Testamento, deixando um legado importante no desenvolvimento do pensamento cristão.

Cerdo

Cerdo (em grego: Κέρδων), um gnóstico sírio considerado herege pela Igreja primitiva por volta de 138 d.C., com doutrinas similares ao marcionismo.

Segundo a tradição, iniciou sua trajetória como seguidor de Simão Mago, a exemplo de Basilides e Saturnino, ensinando aproximadamente na mesma época que Valentino e Marcião. Segundo Ireneu, Cerdo foi contemporâneo do bispo romano Higino, residindo em Roma como um membro proeminente da Igreja até ser expulso.

Sua doutrina centralizava-se na existência de dois deuses distintos: um que exigia obediência, identificado como o Deus do Antigo Testamento e criador do mundo, e outro, superior, bom e misericordioso, conhecido apenas através de seu filho, Jesus. Alinhado com gnósticos posteriores, Cerdo era docetista, negando a ressurreição corporal dos mortos.

Ireneu relata que Cerdo não pretendia fundar uma seita separada da Igreja, comparecendo repetidamente para confessar publicamente seus erros, mas persistindo em ensinar sua doutrina secretamente, sendo eventualmente condenado e afastado da comunhão dos irmãos. Alguns interpretam seu afastamento como voluntário, enquanto outros entendem que foi uma exclusão. A doutrina atribuída a Cerdo por Ireneu contrastava o Deus justo do Antigo Testamento com o Pai bom de Jesus Cristo, sendo o primeiro conhecido e o segundo desconhecido.

Pseudo-Tertuliano, possivelmente ecoando o Syntagma de Hipólito, descreve Cerdo como introdutor de dois princípios primordiais e dois deuses, um bom e outro mau, sendo o último o criador do mundo. Uma diferença notável é que, para Ireneu, ao deus bom se opunha um deus justo, enquanto para Hipólito, um deus mau. Na posterior Refutação de Hipólito, Cerdo é dito ter ensinado três princípios do universo: o bom (agathon), o justo (dikaion) e a matéria (hylen).

Pseudo-Tertuliano acrescenta que Cerdo rejeitava a lei e os profetas, renunciando ao Criador. Afirmava que Cristo era filho da divindade superior e boa, que não veio em substância carnal, mas apenas em aparência, e que não morreu nem nasceu verdadeiramente de uma virgem. Adicionalmente, reconhecia apenas a ressurreição da alma, negando a do corpo. Pseudo-Tertuliano, sem o apoio de outras autoridades, alega que Cerdo aceitava apenas o Evangelho de Lucas, em uma forma mutilada, rejeitando algumas epístolas de Paulo e partes de outras, além de descartar completamente os Atos dos Apóstolos e o Apocalipse. Há forte indicação de que Pseudo-Tertuliano atribuiu a Cerdo ideias que, em sua fonte, eram referentes a Marcião.

Prólogos Antimarcionitas

Os Prólogos Antimarcionitas são um conjunto de prefácios que precedem os Evangelhos canônicos em alguns manuscritos da Vulgata Latina. Estes prólogos surgiram no final do século IV ou início do século V como uma resposta direta à teologia de Marcião de Sinope. Os prólogos visavam refutar as ideias de Marcião, afirmar a unidade entre o Antigo e o Novo Testamento e estabelecer a autoridade e a linhagem apostólica dos quatro Evangelhos canônicos.

Marcião, ativo em Roma por volta de 144 d.C., defendia a existência de dois deuses distintos: um deus criador do Antigo Testamento, considerado inferior e legalista, e um Deus supremo e bom revelado por Jesus Cristo no Novo Testamento. Consequentemente, Marcião rejeitou o Antigo Testamento e propôs um cânon do Novo Testamento que consistia em uma versão expurgada do Evangelho de Lucas e dez epístolas paulinas, também editadas para remover quaisquer referências ao deus criador judaico.

Os Prólogos Antimarcionitas são curtos textos introdutórios colocados antes de cada um dos quatro Evangelhos. Embora existam variações entre os manuscritos, eles geralmente seguem um padrão similar, abordando os seguintes pontos:

  • Cada prólogo afirma a autoria do Evangelho (Mateus escrito para os hebreus, Marcos como intérprete de Pedro, Lucas como companheiro de Paulo e João, o discípulo amado). Ao fazer isso, eles ligam os Evangelhos diretamente aos apóstolos de Jesus, conferindo-lhes autoridade apostólica.
  • Os prólogos frequentemente indicam o público-alvo original de cada Evangelho, reforçando sua relevância para diferentes comunidades e contextos.
  • Implicitamente ou explicitamente, os prólogos se opõem à visão de Marcião ao enfatizar a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento e a unidade do Deus revelado em ambas as partes da Escritura. A inclusão de todos os quatro Evangelhos, em contraste com o cânon limitado de Marcião, já constitui uma refutação.
  • A própria existência dos prólogos, precedendo os quatro Evangelhos em conjunto, contribuiu para a consolidação do cânon do Novo Testamento como conhecido hoje.

A autoria exata dos Prólogos Antimarcionitas é desconhecida. Acredita-se que eles tenham surgido em círculos eclesiásticos na Itália ou no norte da África, provavelmente no final do século IV ou início do século V. Este período coincide com a época em que a influência de Marcião ainda era sentida e a Igreja estava firmando seu cânon e sua ortodoxia. Alguns estudiosos sugerem que figuras como Jerônimo ou Agostinho poderiam ter tido algum papel na sua disseminação, embora a autoria direta seja difícil de determinar.

Rhodon

Rhodon foi um apologista cristão do século II, que se opôs aos ensinamentos de Marcião e Apeles, juntamente com suas respectivas igrejas.

Nascido na província romana da Ásia, foi aluno de Taciano em Roma, conforme registrado por Eusébio de Cesaréia. Sue nome é derivado da antiga palavra grega para “rosa” (ῥόδον). Pouco sabe sobre sua vida.

Rhodon confrontou as heresias propagadas por Marcião. Atesta o estado fragmentado do movimento marcionita durante seu tempo. Listou meticulosamente os indivíduos responsáveis pelas divisões dentro do movimento e refutou eficazmente os seus ensinamentos.

Em uma disputa com o marcionita Apeles, Rhodon argumentou de forma convincente contra muitas das crenças dos marcionitas. O encontro levou Apeles a reconhecer a futilidade dos debates teológicos, enfatizando a importância da fé. Apeles argumentou que a salvação poderia ser encontrada colocando esperança no Cristo crucificado e aderindo às boas obras, abandonando eventualmente as doutrinas divinas divisivas características dos ensinamentos de Marcião.

Entre as obras de Rhodon está “Πρòς τὴν Μαρκίωνος αἵρεσιν” (“À Seita Marcionita”), um tratado dedicado a se opor aos ensinamentos do movimento Marcionita. Além disso, ele escreveu um comentário sobre Gênesis, focando especificamente nos seis dias da criação, embora o título exato permaneça desconhecido.

Marcião de Sinope

Marcion ou Marcião de Sinope (c. 85 – c. 160) foi um líder da igreja cristã primitiva com controversos ensinamentos sobre a natureza de Deus e sua rejeição do Antigo Testamento.

Marcião nasceu em Sinope, uma cidade no Ponto (atual Turquia). A tradição diz que era filho de um bispo. Em 138 apareceu em Roma com uma versão do Evangelho e estabeleceu uma escola. Em 144 foi excomunicado pelas igrejas de Roma.

Marcião acreditava que o Deus do Antigo Testamento era uma divindade diferente do Deus do Novo Testamento, e que o Antigo Testamento era, portanto, irrelevante para os cristãos. Jesus não era o filho do Deus do Antigo Testamento, mas sim um ser divino enviado por um Deus desconhecido e superior para redimir a humanidade. Marcião escreveu as Antíteses para mostrar as diferenças entre o deus do Antigo Testamento e o verdadeiro Deus.

Apesar de ter sido rejeitado pela igreja cristã primitiva, Marcião influenciou no desenvolvimento da teologia cristã, particularmente nas áreas de formação do cânone e a relação entre o Antigo e o Novo Testamento. Marcião seria o responsável da mais antiga tentativa de estabelecer um cânon explícito para o cristianismo, que consistia no Euangelion (Evangelho do Senhor) e no Apostolikon (dez epístolas de Paulo, não incluindo as pastorais). Há um debate sobre se Marcião truncou Lucas e Paulo ou se escribas ortodoxos posteriores podem tê-los expandido em alguns casos.

Muitas das ideias de Marcião acabaram sendo condenadas como heréticas. Marcião recebe referências depreciativas do apologista contemporâneo Justino Mártir e do heresiólogo Irineu de Lyon. No entanto, podemos reconstruir os escritos de Marcião por meio das referências no Adversus Marcionem de Tertuliano, no Panarion de Epifânio, no Diálogo de Adamantius e nos Prólogos Antimarcionitas.

Existem três hipóteses principais sobre a relação entre o evangelho de Marcião e o evangelho de Lucas: 1) O Evangelion de Marcião deriva de Lucas por um processo de redução (a visão majoritária); 2) O atual evangelho de Lucas deriva-se do Evangelion de Marcião por um processo de expansão (Hipótese de Schwegler); e 3) O Evangelion de Marcião e Lucas de Marcião são ambos desenvolvimentos independentes de um proto-evangelho comum (Hipótese de Semler). Muitos de seus críticos pensaram que havia editado Lucas, embora alguns estudiosos tenham argumentado que o evangelho de Marcião era simplesmente um relato local semelhante a Lucas, que pode até ter sido uma fonte usada pelo terceiro evangelista. De qualquer forma, a crise marcionita levou à necessidade de haver escrituras cristãs autorizadas, literatura que poderia ser lida no culto e usada para resolver debates dogmáticos.