Prostituição cultual

A prostituição cultual ou prostituição sagrada na Antiguidade tem sido um tema de debate e investigação acadêmica. Por tempos, foi aceita a narrativa isolada do historiador grego Heródoto, o qual afirmava existir essa prática (Hist. 1.196).

As palavras hebraicas qadesh (m.) e qedesha (f.), muitas vezes traduzidas como “prostituta do templo” aparecem nessa discussão quando envolve texto biblicos. No entanto, um exame cuidadoso das referências bíblicas, acadêmicas e clássicas sugere que a compreensão tradicional da prostituição sagrada pode não ser precisa.

Em contextos bíblicos, as palavras qadesh e qedesha são frequentemente associadas a atividades religiosas proibidas. Por exemplo, Oseias 4:14 menciona que “os próprios homens se separam com prostitutas e sacrificam com as qedesha prostitutas do templo”, enquanto 1 Reis 15:12 afirma que o rei Asa “expulsou os qadesh da terra e removeu todos os ídolos que seus antepassados haviam feito”. Essas referências implicam uma conexão entre esses termos e práticas religiosas proibidas.

No entanto, há casos em que o termo qedesha é usado sem qualquer conexão com os templos. Em Gênesis 38:21, Judá pergunta sobre qedesha sem qualquer indicação de procurar uma sacerdotisa. Isso indica que procurava uma mulher sexualmente disponível, em vez de uma prostituta do templo.

Estudiosos, como Daniel Arnaud, Julia Assante e Stephanie Budin, contribuíram para a reavaliação do conceito de prostituição sagrada. Eles questionaram a existência da prostituição no templo com base em suas pesquisas e reinterpretações de fontes históricas. Stephanie Budin afirma que as práticas descritas nas fontes provavelmente eram mal-entendidos sobre sexo ritual não remunerado ou cerimônias religiosas não sexuais. Budin assegura que o conceito de prostituição sagrada pode ter sido inventado como dispositivos retóricos ou mitificado.

O mito da prostituição cultual em Corinto

A ideia de que havia prostituição cultual em Corinto, especialmente nos tempos do apóstolo Paulo, ganhou popularidade em certos círculos ao longo dos séculos. No entanto, uma análise crítica das fontes históricas e arqueológicas revela que essa visão é problemática. As principais fontes clássicas — Estrabão, Píndaro, Pausânias e Plutarco — e a arqueologia não suportam essa ideia.

Uma das fontes mais frequentemente citadas para justificar a existência da prostituição sagrada em Corinto é Estrabão, um geógrafo do século I a.C./d.C. Ele menciona que o santuário de Afrodite em Acrocorinto possuía mais de mil hieródulas, termo que ele associa a hetairas, cortesãs de elite (Estrabão, Geografia 8.6.20). Contudo, uma análise detalhada do texto revela ambiguidades significativas:

  1. Contexto temporal: Estrabão está se referindo à Corinto grega do século VII a.C., muito antes de sua destruição pelos romanos em 146 a.C. e de sua reconstrução como colônia romana no século I a.C. Isso torna difícil vincular sua descrição à cidade no tempo de Paulo.
  2. Falta de evidência de prostituição ritual: Estrabão não menciona explicitamente que essas mulheres praticavam sexo ritual ou que qualquer pagamento revertia para o santuário. Ele apenas afirma que eram dedicadas à deusa, sem especificar suas funções após a dedicação.
  3. Confusão terminológica: O uso de hierodoulai (servas sagradas) e hetairai (cortesãs) no mesmo contexto é problemático. Enquanto hetairai eram associadas ao entretenimento em banquetes, hierodoulai podiam desempenhar funções religiosas variadas, não necessariamente ligadas à sexualidade. Já Paulo é combativo à prostituição, a porneia, em suas cartas.

Um fragmento de Píndaro (Fragmentos 122) menciona a dedicação de um grupo de prostitutas a Afrodite em um bosque sagrado de Corinto. No entanto, assim como na descrição de Estrabão, o texto não indica que essas mulheres continuaram a praticar a prostituição após sua consagração à deusa. O contexto dessa dedicatória permanece incerto e não confirma a prática de prostituição cultual organizada em Corinto.

Escrevendo no início do século III d.C., Ateneu menciona cortesãs em Corinto participando de atividades cultuais. Ele baseia-se em Chamaleão de Heracleia (c. 350–275 a.C.), cujas observações são muito anteriores ao período das epístolas de Paulo. Em Os Deipnosofistas (13.32–33), Ateneu descreve uma antiga prática coríntia em que cortesãs eram convocadas para se unirem em súplicas à deusa Afrodite em questões importantes para a cidade. Após as preces, elas participavam de sacrifícios e rituais no templo. Ateneu também relata que, em um episódio durante a invasão persa da Grécia, as cortesãs coríntias oraram pela segurança de seu povo no templo de Afrodite, e sua contribuição foi imortalizada em uma pintura dedicada à deusa. Além disso, Ateneu menciona um homem chamado Xenofonte, que, após uma vitória em Olímpia, doou cem cortesãs ao templo de Afrodite. No entanto, essas narrativas não permitem inferir haver prostituição cultual e referem-se ao período clássico e helenístico, não à Corinto romana contemporânea de Paulo.

Pausânias, em sua Descrição da Grécia (2.5.1), descreve o templo de Afrodite no topo de Acrocorinto, destacando suas estátuas e associações imperiais romanas. Três problemas principais surgem ao associar este templo à prostituição sagrada:

  1. Acessibilidade: O acesso ao topo de Acrocorinto é dificultado por uma subida íngreme, tornando pouco prático o local para visitas frequentes.
  2. Espaço limitado: A área no cume não comportaria um grande número de indivíduos envolvidos em atividades como a prostituição.
  3. Significado imperial: A associação do templo com a linhagem imperial romana, que traçava suas origens à deusa Vênus, tornaria inaceitável a prática de prostituição em um local de tamanha relevância política.

Além disso, o viajante grego Pausânias menciona outros locais relacionados à deusa Afrodite, como o templo no portão de Craneion (2.2.4) e em Cencreia (2.2.3). Contudo, as evidências arqueológicas e literárias disponíveis não sustentam a prática de prostituição nesses locais, especialmente considerando os aspectos funerários associados à Afrodite Melainis.

Plutarco (Banquete dos Sete Sábios, 146d) menciona templos de Afrodite nos portos de Corinto, como Kencreia e Lequeo. Esses locais, mais acessíveis, poderiam teoricamente ter facilitado práticas como a prostituição. No entanto, nenhuma evidência direta corrobora a existência de prostituição cultual nesses templos.

Nas epístolas de Paulo, especialmente em 1 Coríntios, a palavra pornai é usada para descrever prostitutas, mas não há referência a hierodoulai ou hetairai. A escolha de palavras sugere que Paulo estava se referindo a práticas de prostituição comum, não a uma instituição religiosa. Além disso, Paulo critica práticas sexuais imorais no contexto de um ambiente urbano cosmopolita, mas não faz menção a rituais sexuais relacionados ao culto de Afrodite.

Por fim, vale notar que a lenda de que as prostitutas tinham de ter cabelos curtos ou rapados em Corinto ou no mundo do Mediterrâneo na época do Novo Testamento não possui respaldo histórico algum (Fee, 2014, p. 511). Tal associação entre prostitutas e cabelos tosados parece ter surgido no século XX com o romance Os Miseráveis, de Victor Hugo.


Vale notar que houve alguns antigos rituais envolvendo a sexualidade em algumas sociedades, embora fora dos contextos culturais bíblicos. Tais rituais não eram sinônimos de prostituição como entendida em termos contemporâneos. Referente à Corinto, as evidências literárias e arqueológicas não sustentam a existência de prostituição cultual organizada nessa cidade, especialmente no período romano contemporâneo a Paulo.

BIBLIOGRAFIA

Arnaud, Daniel. “La prostitution sacrée en Mésopotamie, un mythe historiographique?” Revue de l’Histoire des Religions 183 (1973): 111–115.

Assante, Julia. “From Whores to Hierodules: the Historiographic Invention of Mesopotamian Female Sex Professionals.” In Donohue, Alice A.; Fullerton, Mark D. Ancient art and its historiography. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, 13-47.

Budin, Stephanie Lynn. The Myth of Sacred Prostitution in Antiquity. Cambridge University Press, 2008.

Fee, Gordon. The First Epistle to the Corinthians in The New International Commentary on the New Testament, 2014.

How Immoral Was the City of Corinth–Really?

Mowczko, Marg. Aphrodite and Temple Prostitution in Corinth

Porneia

Porneia é uma forma de protistuição, cujo termo que aparece 32 vezes no Novo Testamento e cerca de 50 vezes na Septuaginta (LXX) e sem um correspondente exato no português.

O termo “fornicação” em algumas versões nas línguas latinas não traduz compreensivamente o alcance semântico de porneia. Nas línguas neolatinas o sentido de fornicação vai desde referências muito amplas de coito ou cópula (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) até ter referências restritas a relações sexuais ou cópula carnal fora do casamento (Diccionario RAE).[2] Incidentalmente, o termo fornicatio no latim do século I é mais próximo ao conceito grego de porneia que o atual prostituição ou fornicação.

No grego, porneia somente aparece em quatro textos anteriores à LXX e ao cristianismo. Deriva-se de pernemi, ato de venda de escravos e, por extensão de partes do corpo ou de prostitutas.

O termo porne para referir-se a prostituta aparece desde o século VII a.C., em sentido mais detrimental que as hetaira, as cortesãs livres. A porneia seria usufruir o acesso involuntário ao corpo da pessoa escravizada. Uma interpretação expansiva sugere que prostituta escravizada estaria sujeita às práticas sexuais não aceitas pelas prostitutas livres ou pelas esposas; consequentemente, porneia poderia incluir parafilias ou outras práticas sexuais anormais. O grego pornes huios tem a mesma conotação ofensiva do palavrão em português: filho da puta. Alguns comentarista interpretam o termo porneia em alguns contextos (como Atos 15) como referindo-se a incesto. O termo que alude à infelidade marital é moicheia.

Há comentaristas que prefere não traduzir o termo, dada a ausência de um equivalente contemporâneo.


BIBLIOGRAFIA

Gaca, Kathy L. The Making of Fornication: Eros, Ethics, and Political Reform in Greek Philosophy and Early Christianity. Berkeley: University of California Press, 2003.

Harper, Kyle. “Porneia: The Making of a Christian Sexual Norm.” Journal of Biblical Literature 131, no. 2 (2012): 363-83.

Malina, Bruce. “Does porneia mean fornication?.” Novum Testamentum 14.1 (1972): 10-17.

Osiek, Carolyn “Female Slaves, Porneia, and the Limits of Obedience,” in Early Christian Families in Context: An Interdisciplinary Dialogue (ed. David L. Balch and Carolyn Osiek; Religion, Marriage and Family; Grand Rapids: Eerdmans, 2003), 255–74

Skinner, Marilyn B. Sexuality in Greek and Roman Culture. Ancient Cultures. Malden, Mass: Blackwell, 2005.