O mal não poderia ser isolado como substância, matéria, agente ou força em oposição ao bem. O mal é bastante complexo e pode ser entendido como uma privação ou ausência do bem, uma distorção do que é naturalmente bom ou um uso indevido de qualquer extensão de livre arbítrio que possa existir.
Considerando os conceitos de agência e estrutura, o mal tem lados ainda mais complexos. Processos naturais ou inevitáveis como o conflito de interesses (que envolve agência) e a sobrevivência do mais apto (que depende da estrutura) podem, mesmo sem intenção maliciosa, levar a resultados que podem ser considerados maus.
Uma simplificação popular de que o mal seia simplesmente a obra do Diabo não explica muito. Teologicamente, a Bíblia não se preocupa nem com a causa nem com a origem do mal (especulações tardias são questões levantadas mais pela mentalidade que buscava a etiologia das coisas), mas sobre a vitória sobre o mal.
A Evolução da Ideia do Mal nas Religiões Abraâmicas
No período do Primeiro Templo, a Bíblia Hebraica revela um Deus soberano que controla tanto o bem quanto o mal (Isaías 45:7). O mal era compreendido como consequência do pecado e da desobediência a Deus, ou como eventos fora do controle humano, como catástrofes naturais.
Após o exílio na Babilônia, novas ideias podem ter sido introduzidas, possivelmente sob influência persa. No entanto, a visão de Satã como um oponente de Deus se desenvolveu gradualmente ao longo do tempo, e não há evidências que sustentem a ideia de um “domínio autoexistente” do mal estabelecido nesse período. Contrário disso, o mal não é visto como um poder independente, mas subordinado à soberania divina.
No período Helenístico e do Novo Testamento, o judaísmo apresentava diversas interpretações sobre o mal, com influências da cultura grega e de outras religiões. Surgiram ideias sobre poderes e principados moralmente ambíguos, e o gnosticismo floresceu, vendo o mundo material como mau e o mal como resultado da distância entre o ser humano como ente material e Deus espiritual.
Os primeiros autores patrísticos, anteriores a Agostinho, como Irineu e Justino Mártir, rejeitaram o dualismo gnóstico e defenderam a bondade da criação divina. No entanto, suas visões sobre o mal variavam, com alguns, como Orígenes, explorando o papel do livre arbítrio humano, enquanto outros enfatizavam a importância da graça divina.
O maniqueísmo, uma religião influenciada pelo gnosticismo e pelo zoroastrismo, abraçou um dualismo radical, com um princípio do bem e um princípio do mal em conflito.
Agostinho de Hipona, influenciado pelo neoplatonismo, desenvolveu a teoria do mal como privação do bem. Para ele, o mal não tinha existência própria, mas era a ausência ou corrupção do bem.
A escolástica esmiuçou a teologia do mal. Abelardo enfatizou a intenção por trás dos atos, enquanto Tomás de Aquino distinguiu entre o mal moral (pecado) e o mal físico (sofrimento).
No Iluminismo, o racionalismo desafiou as explicações religiosas tradicionais para o mal. Leibniz, buscando conciliar a existência do mal com a bondade de Deus, propôs a teodiceia e a ideia de que este mundo é o “melhor dos mundos possíveis”. Hume elaborou sobre o Problema do Mal (veja abaixo).
Atualmente, o debate sobre o mal se expandiu para além da esfera humana, abrangendo questões como o sofrimento animal e a justiça para todas as formas de vida sencientes.
O Problema do Mal
O problema do mal é um dos desafios mais persistentes e angustiantes para a fé religiosa e o pensamento filosófico. Ele questiona como a existência do mal, em suas diversas formas – sofrimento, dor, injustiça – pode ser conciliada com a crença em um Deus onipotente, onisciente e onibenevolente.
Essa questão, como observou David Hume, remonta à antiguidade, encontrando expressão nas indagações de Epicuro: se Deus deseja evitar o mal, mas não pode, então é impotente; se pode, mas não deseja, então é malévolo; se pode e deseja, de onde então vem o mal?
O problema do mal não se limita ao sofrimento humano. Fiódor Dostoiévski, em Os Irmãos Karamazov, através da personagem Ivan, questiona o sofrimento inocente das crianças: “Se todos devem sofrer para comprar a harmonia eterna por meio de seus sofrimentos, o que as crianças têm a ver com isso?”.
Ao longo da história, pensadores como Platão, Agostinho, Tomás de Aquino e Leibniz buscaram respostas para o problema do mal. Platão, em “A República”, sugere que Deus, sendo bom, não pode ser a causa do mal, questionando a onipotência divina. Agostinho, influenciado pelo neoplatonismo, argumenta que o mal não possui existência própria, sendo a privação do bem.
A teodiceia, ramo da teologia que busca justificar os caminhos de Deus, oferece diferentes abordagens. A teodiceia do livre-arbítrio argumenta que o mal é consequência da liberdade humana, um dom divino que permite tanto o bem quanto o mal. A teodiceia da alma-criadora, proposta por John Hick, sugere que o sofrimento é necessário para o desenvolvimento moral e espiritual dos seres humanos.
No entanto, essas tentativas de solucionar o problema do mal enfrentam críticas. John Mackie, em Evil and Omnipotence, argumenta que Deus, sendo onipotente, poderia ter criado seres livres que sempre escolhessem o bem. James Wetzel, em Can Theodicy be Avoided?, questiona se a teodiceia não exige uma emaranhamento das nossas sensibilidades contra a racionalização do mal.
O problema do mal, portanto, permanece como um desafio para a teologia e a filosofia. Ele nos convida a questionar a natureza de Deus, a liberdade humana e o significado do sofrimento. As respostas podem variar ao longo da história e entre diferentes culturas, mas a busca por sentido e justiça diante do mal continua sendo uma constante na experiência humana.
BIBLIOGRAFIA
Davage, David Willgren, and Blaženka Scheuer, editors. Sin, Suffering, and the Problem of Evil. Forschungen zum Alten Testament 2/126. Tübingen: Mohr Siebeck, 2021.
Forsyth, Neil. The Old Enemy: Satan and the Combat Myth. Princeton: Princeton University Press, 1987.
Hick, John. Evil and the God of Love. 2nd ed. London: Macmillan, 1977.
Kelly, Declan. The Defeat of Satan: Karl Barth’s Three-agent Account of Salvation. London: Bloomsbury Publishing, 2022.
Mackie, J. L. “Evil and Omnipotence.” In The Problem of Evil, edited by M. M. Adams and R. M. Adams, 25–37. New York: Oxford University Press, 1990.
Pike, Nelson. “Hume on Evil.” In The Problem of Evil, edited by M. M. Adams and R. M. Adams, 38–52. New York: Oxford University Press, 1990.
Plantinga, Alvin. God, Freedom and Evil. London: Allen & Unwin, 1974.
Plantinga, Alvin. God, Freedom and Evil. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1977.
Rashdall, Hastings. The Theory of Good and Evil. London: Oxford University Press, 1924.
Surin, Kenneth. Theology and the Problem of Evil. Oxford: Basil Blackwell, 1986.
Walton, John Harvey. Demons and Spirits in Biblical Theology: Reading the Biblical Text in Its Cultural and Literary Context. Eugene, OR: Cascade Books, 2019.
Wetzel, James. “Can Theodicy be Avoided?” In The Problem of Evil, edited by Michael L. Peterson, 351–65. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1992.
