Nero Cláudio César Augusto Germânico (54-68 d.C.) foi um imperador romano durante um período crucial para o cristianismo nascente, como ilustrado na narrativa de Atos dos Apóstolos (25:11), que menciona a possibilidade de Paulo apelar para César, referindo-se a Nero.
A tradição associa o seu reinado à primeira grande perseguição aos cristãos em Roma, ocorrida após o incêndio da cidade em 64 d.C. (veja Shaw, 2015). Contudo, a extensão e a natureza dessa perseguição são objeto de debate historiográfico (Shaw, 2015; Jones, 2017; Shaw, 2018). Enquanto a visão tradicional descreve uma repressão severa, estudiosos modernos questionam se a perseguição foi tão ampla e sistematicamente motivada por uma política anti-cristã, sugerindo que pode ter sido mais localizada e ligada a eventos políticos específicos (Shaw, 2015).
O governo de Nero também marca o início da Primeira Guerra Romano-Judaica (66-73 d.C.), um conflito de grande significado para o contexto histórico e religioso em que o cristianismo se desenvolveu.
Nero como besta ou anticristo
A primeira identificação de Nero como a besta foi Vitorino de Pettau (250-303 d.C.) em seu Comentário sobre o livro do Apocalipse. E como anticristo, Nero aparece pela primeira vez no Poema dos Dois Povos, de Comodiano (fl. 250), e no livro anônimo donatista Liber genealogus (c. 405).
Após a morte do imperador Nero em 68 d.C., uma crença popular, conhecida como a lenda do “Nero Redivivus” (Nero redivivo ou Nero que voltará), disseminou-se pelo Império Romano. Essa lenda sustentava que Nero não havia realmente morrido, mas escapara e retornaria, frequentemente imaginado vindo do Oriente (particularmente da Pártia), com um exército para retomar o poder e/ou punir seus inimigos em Roma. Essa expectativa alimentou o aparecimento de vários impostores que se passavam por Nero.
No livro do Apocalipse 13:18, o autor menciona o “número da besta” ou “número de um homem” como 666 (havendo uma variante textual em alguns manuscritos antigos que apresenta o número 616). Uma interpretação desde o século XIX conecta este número a Nero através da gematria, um sistema onde letras em hebraico (e grego) possuem valores numéricos.
O nome e título “Nero César” (Νέρων Καῖσαρ em grego), quando transliterado para o alfabeto hebraico como “נרון קסר” (NRWN QSR), resulta na soma 666 (N=50, R=200, W=6, N=50, Q=100, S=60, R=200; 50+200+6+50+100+60+200=666). Um papiro do século I d.C., conhecido como o “Papiro de Neron César”, atesta essa grafia em aramaico. Uma variante textual em alguns manuscritos antigos do Novo Testamento apresenta o número da Besta como 616, que corresponde à transliteração hebraica de “Nero César” (nrw qsr), omitindo a última letra “n” de “Neron”. A familiaridade dos leitores judeu-cristãos da Ásia Menor com o hebraico ou aramaico é apontada como uma razão para João esperar que eles realizassem esse cálculo. A menção de nomes em hebraico e grego para o anjo do abismo (Abaddon/Apollyon) em Apocalipse 9:11 é citada como um possível precedente para o uso de ambos os contextos linguísticos por João. Curiosamente, a transliteração das consoantes da palavra grega para “besta” (θηρίον) para o hebraico também resulta no valor numérico de 666.
Era uma prática conhecida no mundo antigo usar códigos numéricos ou apelidos para governantes despóticos. Um grafite antigo igualava o valor numérico do nome de Nero em grego com a frase “assassinou a própria mãe”, ilustrando essa prática. As Oráculos Sibilinos, embora escritos posteriormente, referem-se a uma figura com “cinquenta como inicial” (o valor numérico da letra hebraica Nun, a primeira letra de Neron), sugerindo uma consciência contemporânea de uma associação numérica com o nome de Nero.
Para a audiência original do Apocalipse, que provavelmente vivia sob o impacto das perseguições imperiais e com a memória possível da crueldade de Nero contra os cristãos, a figura da “besta” que recebe uma ferida mortal mas sobrevive (Apocalipse 13:3) poderia ecoar a lenda do Nero Redivivus, e o número 666 serviria como um código para identificar essa entidade bestial e tirânica com o arquétipo do imperador perseguidor, Nero, cujo “retorno” ou a manifestação de um poder com seu espírito era temido.
A interpretação de Nero como a besta ou anti-Cristo é contestada. Malik (2020) considera tais interpretações como tardias na Antiguidade. Um dos principais argumentos contrários é por que João, escrevendo em grego para igrejas de língua grega na Ásia Menor, esperaria que sua audiência usasse a gematria hebraica para calcular o número da Besta. Originário da Ásia Menor, Irineu, escrevendo no século II que viveu relativamente perto da época da escrita do Apocalipse, afirmou não conhecer a identidade da Besta e discutiu a variante 616 sem mencionar Nero como a solução primária. Isso levanta dúvidas sobre se a identificação de Nero era amplamente conhecida ou compreendida na igreja primitiva.
BIBLIOGRAFIA
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