Celeiro

celeiro ou armazém aparecem com vários termos hebraicos e gregos para descrever esses locais, cada um com suas nuances, na Bíblia. O termo hebraico tosar (Joel 1:17) refere-se a armazéns ou silos, enquanto mezer (Salmo 144:13) pode ser traduzido como despensa. Já a palavra grega apotheke (Mateus 3:12; Lucas 3:17) pode se referir a edifícios ou covas subterrâneas, enquanto tameion (Lucas 12:24) indica uma sala de armazenamento.

As práticas de armazenamento variavam na antiguidade. Cavidades no solo, muitas vezes revestidas com argamassa ou grandes potes de barro, serviam como celeiros para grãos. Em 1 Crônicas 27:27-28, o termo descreve depósitos onde se guardavam vinho e azeite. A palavra hebraica ’asamim (Deuteronômio 28:8; Provérbios 3:10) refere-se a esses silos subterrâneos, comuns nas escavações de cidades palestinas. O termo bet ha’osar, ou “casa do tesouro”, (1 Reis 7:51; 1 Crônicas 27:25) descrevia um armazém do governo ou do Templo para guardar diversos produtos.

A construção de armazéns era uma prática estratégica, como os faraós do Egito, que usavam mão de obra escrava para construir cidades-armazéns como Pitom e Ramessés (Êxodo 1:11), e os reis de Israel, como Davi (1 Crônicas 27:25), Salomão (1 Reis 9:19) e Ezequias (2 Crônicas 32:27-29), que construíram extensos depósitos para armazenar as riquezas e provisões do reino. Malaquias 3:10 se refere à casa do tesouro, um repositório para os dízimos, provavelmente localizado no Templo e supervisionado pelos levitas.

O termo é usado de forma figurada em Lamentações 4:2, onde o profeta Jeremias usa a palavra hebraica nebel, ou “jarro de armazenar”, para lamentar a humilhação do povo de Israel. No Novo Testamento, a parábola do rico insensato em Lucas 12:18-24 destaca a inutilidade de se confiar em celeiros e riquezas materiais. Ao mesmo tempo, o conceito de “celeiro” em Mateus 3:12 e Lucas 3:17 é usado por João Batista para ilustrar o julgamento divino, onde o trigo (os justos) será colhido e armazenado, e a palha (os ímpios) será queimada.

Couflaïres

Os Couflaïres de La Vaunage foram uma comunidade protestante singular do sul da França, emergiram no final do século XVIII durante a perseguição religiosa após a revogação do Édito de Nantes.

A denominação “Couflaïres,” derivada do termo em occitano couflar, que significa “inflar” ou “soprar,” era um apelido pejorativo usado para descrever a natureza extática durante suas reuniões de culto. Esses atos eram interpretados como manifestações do Espírito Santo. Concentrados principalmente na área rural entre Nîmes e Montpellier, os Couflaïres encontraram afinidade com os quakers britânicos, tanto pela crença na inspiração do Espírito Santo quanto no pacifismo.

O encontro com os quakers resultou da Guerra da Independência Americana (1775-1783). Joseph Fox, um quaker britânico e co-proprietário de navios, ficou horrorizado quando seus sócios usaram autorizações de corso para saquear embarcações francesas. Fiel aos princípios pacifistas, fez um propósito de compensar as vítimas francesas.

Após o tratado de paz, seu filho, Dr. Edward Long Fox, viajou a Paris e publicou um anúncio no jornal Gazette de France. O primeiro-ministro da França adicionou um parágrafo introdutório que detalhava a fé e a prática dos quakers, esclarecendo que eles não se envolviam em pirataria. Esse anúncio, lido em Congénies, impressionou cinco Couflaïres que viram uma afinidade entre suas crenças e as dos quakers. Escreveram ao Dr. Fox, e em 1788, Jean de Marsillac, um deles, visitou a comunidade quaker em Londres, estabelecendo a primeira comunidade quaker na França.

A primeira Casa de Reunião Quaker na França foi construída em 1822 em Congénies, com fundos doados por quakers americanos e ingleses. O local serviu como centro para uma comunidade que, no século XIX, chegou a contar com cerca de 200 famílias. No entanto, o grupo entrou em declínio no início do século XX, principalmente devido à emigração dos jovens pacifistas que buscavam evitar o serviço militar obrigatório na França. Com a saída dos homens, as jovens quakers que permaneceram na região casaram-se com protestantes locais, e a comunidade acabou sendo absorvida.

A última reunião para o culto foi realizada em 1905, e a casa foi vendida dois anos depois. Ao longo do século XX, o edifício teve diversos usos, até que um casal de quakers britânicos o adquiriu, o renomeou como “Villa Quaker” e o converteu em residência. A casa foi posteriormente vendida mais duas vezes, sempre para quakers, até ser comprada em 2003 pelo Encontro Anual da França da Sociedade dos Amigos. Em 2004, a Maison Quaker reabriu suas portas, voltando a ser um centro para reuniões de culto, retiros e grupos de discussão.

BIBLIOGRAFIA

Louis, Jeanne-Henriette. “Les Couflaïres de la Vaunage et les quakers anglophones. Une rencontre providentielle à la fin du XVIIIe siècle.” In La Vaunage au XVIIIe siècle, vol. 2, 145–167. Assoc. Maurice Aliger, 2005.

Roger, Jean Marc. “Les ‘Couflaïres’ de la Vaunage: Identité et Racines.” Mémoires de l’Académie de Nîmes 76. Nîmes: Académie de Nîmes, n.d.

Círculo de Meaux

O Círculo de Meaux foi um grupo de teólogos e eruditos franceses, ativo no início do século XVI, que buscava a reforma da Igreja Católica.

Centrado na cidade de Meaux e liderado pelo bispo Guillaume Briçonnet, o círculo incluía figuras como Jacques Lefèvre d’Étaples, Gérard Roussel, François Vatable e Guillaume Farel. Influenciados pelo humanismo e pelo estudo das Escrituras originais, defendiam uma reforma interna da Igreja, priorizando a pregação e o estudo da Bíblia.

Traduziram o Novo Testamento para o francês em 1523 e uma versão revisada dos Salmos para tornar a Bíblia acessível ao povo comum. Defendiam a salvação pela graça divina e a autoridade da Bíblia acima da tradição da igreja, antecipando muitas das ideias da Reforma Protestante que se desenvolvia em outras partes da Europa.

Apesar de sua abordagem inicial ser vista como uma tentativa de renovar o catolicismo, a crescente pressão da Sorbonne e de outros opositores levou ao fim do grupo por volta de 1525. Embora Briçonnet e outros membros tenham se reconciliado com a hierarquia católica, figuras como Farel se tornaram proeminentes líderes da Reforma Protestante.

Cristianismo núbio

A Núbia, região hoje no Sudão, foi um bastião do cristianismo entre os séculos V e XIV.

O cristianismo núbio floresceu nos reinos de Nobádia, Macúria e Alua entre os séculos V e XV, estabelecendo-se após o declínio do antigo reino de Meroé. A evangelização da região foi influenciada pelo Egito bizantino.

Origens lendária e histórica

A lenda conecta a Núbia ao cristianismo remonta ao eunuco “etíope” mencionado em Atos 8. Embora a Etiópia moderna seja um reino ao sul, o termo grego Aithiopia era usado para se referir a povos de pele escura ao sul do Egito, o que incluía os reinos núbios do Sudão e o império axumita da Etiópia. A rainha de Kush, o antigo reino da Núbia, era frequentemente chamada de Candace (ou Kandake), o mesmo título dado à rainha do eunuco em Atos. Essa conexão sugere que, embora a conversão oficial da Núbia tenha ocorrido séculos depois, pode ter havido uma presença cristã inicial na região, possivelmente através de viajantes e comerciantes, preparando o terreno para a posterior evangelização em grande escala.

Segundo o bispo sírio João de Éfeso, a conversão da corte real de Nobádia por missionários enviados pela imperatriz Teodora, por volta de 540 d.C., marcou o início de uma transformação social e cultural na Núbia. A igreja núbia, com uma teologia predominantemente miafisista, desenvolveu uma estreita relação com o Patriarcado Copta de Alexandria, do qual se tornou subordinada. Essa conexão influenciou a doutrina, a arquitetura e a liturgia.

A Idade de Ouro e o Contato com o Islã
Um momento crucial na história cristã núbia foi o encontro com as forças islâmicas no século VII. Ao contrário da maioria das civilizações da época, a Núbia resistiu com sucesso às invasões, uma vitória atribuída por historiadores árabes à destreza de seus arqueiros. Essa resistência militar levou à assinatura de um tratado de paz então inaudito em 651 d.C., conhecido como Baqt. O tratado estabeleceu uma coexistência pacífica e regulamentou o comércio entre a Núbia cristã e o Egito islâmico por séculos.

Esse período, especialmente a era fatímida, é considerado a “Idade de Ouro” de Macúria. Durante essa época (do século VIII ao XIII), os três reinos núbios consolidaram-se em um único estado cristão unificado, que teve seu auge com o estado multiétnico de Dotawo.

O Declínio Gradual e as Descobertas Arqueológicas
O declínio do cristianismo na Núbia resultou de muitos fatores. As incursões de aiúbidas e mamelucos, a partir do século XIII, e conflitos dinásticos internos, enfraqueceram os reinos. No século XIV, a intervenção direta dos mamelucos na sucessão de Macúria levou à queda de Dongola, sua capital, e acelerou a islamização da região.

O fim da civilização cristã núbia não foi um evento de conquista militar única, mas uma desintegração social e política gradual. A teoria de que a igreja de Dongola foi convertida em mesquita em 1317, marcando o fim da era cristã, foi desmistificada por novas pesquisas. Na verdade, a estrutura convertida era um palácio, e as igrejas na cidade continuaram a funcionar. Ainda, foi descoberto documentos de ordenação do Bispo Timotheos, datados de 1370. Relatos do século XVI mencionam uma delegação núbia que chegou à Etiópia em 1520, pedindo líderes religiosos, e um relatório do século XVIII fala de uma pequena comunidade cristã isolada que ainda existia na região da Terceiro Catarata. A cristianização persistiu em comunidades isoladas, como a de Qasr Ibrim, onde há registros do último rei cristão datado de 1483. Por volta do século XVI, o cristianismo havia praticamente desaparecido, com a capital de Alua, Soba, também em ruínas.

A maior parte do atual conhecimento sobre a Núbia cristã vem da operação de salvamento arqueológico da UNESCO nos anos 1960. O projeto, realizado antes da inundação da área pela Barragem Alta de Assuã, revelou descobertas relevantes. Entre elas, estão a catedral de Faras, com mais de 160 afrescos bem preservados, e fragmentos de manuscritos em Qasr Ibrim.

Cultura, Religião e Literatura
A literatura cristã núbia era multilíngue, utilizando o grego, o copta e o núbio antigo. O grego era a língua sagrada da liturgia, por influência bizantina. O copta resultava das ligações com a Igreja Copta do Egito. Já o núbio antigo, a língua nativa, foi utilizado para documentos e um crescente corpo de literatura religiosa. Seu uso crescente indica uma “nacionalização” cultural a partir do século XI.

Uma característica distintiva da crença cristã núbia foi o culto aos arcanjos, especialmente Miguel. Essa veneração era tão significativa que influenciou práticas de proteção territorial e manifestava-se em manuscritos como o Livro da Investidura de Miguel. Essa ênfase nos arcanjos como intermediários potentes ecoa tradições religiosas indígenas pré-cristãs.

A materialidade dos manuscritos também era fundamental para seu uso religioso. O pergaminho era usado para textos sagrados, enquanto o couro e o papel eram mais comuns para outros documentos. O uso ritual dos textos ia além da leitura, incluindo a grafo(biblio)fagia, a prática de comer as escrituras. Por exemplo, textos inscritos em vasos eram consumidos (após a tinta ser lavada) por seu poder de cura, um costume que encontra paralelos em tradições bizantinas e islâmicas modernas. Essa experiência multissensorial da fé envolvia a visão, a audição, o tato, o paladar (através da grafo(biblio)fagia) e o olfato (pelo uso de incenso).

BIBLIOGRAFIA

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Griffith, F. Ll. (Francis Llewellyn). The Nubian Texts of the Christian Period. Berlin: Verlag der Königl. akademie der wissenschaften, in commission bei Georg Reimer, 1913.

Shenk, Calvin E. “The Demise of the Church in North Africa and Nubia and Its Survival in Egypt and Ethiopia: A Question of Contextualization?” Missiology 21, no. 2 (1993): 131–142.

Tsakos, Alexandros. “Matérialité et physicalité des manuscrits médiévaux de Nubie chrétienne / Materiality and Physicality of Medieval Manuscripts from Christian Nubia.” Études et documents balkaniques et méditerranéens, no. 55 (2018): 967–992.

Conciliarismo

O Conciliarismo foi um movimento de reforma e uma teoria eclesiológica na Igreja Católica Romana, proeminente entre os séculos XIV e XVI, que sustentava que a autoridade suprema na Igreja residia num concílio ecumênico, e não exclusivamente no Papa.

Em tempos medivieis, esse princípio foi invocado principalmente como resposta à crise do Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), quando múltiplos papas reivindicavam legitimidade, gerando a necessidade urgente de uma solução que transcendesse as reivindicações papais individuais e restaurasse a unidade da Igreja. Teóricos como Marsílio de Pádua, em seu Defensor Pacis, e Guilherme de Ockham já haviam lançado bases para questionar a plenitude do poder papal, mas foram juristas e teólogos como Jean Gerson, Pierre d’Ailly e Francisco Zabarella que articularam mais diretamente os argumentos conciliaristas durante o cisma. Eles argumentavam, com base em interpretações do direito canônico e da história da Igreja primitiva, que o Papa, embora detentor de um ofício de grande importância, era um membro da Igreja e, como tal, sujeito ao corpo da Igreja universal, representado mais adequadamente por um concílio geral.

O Concílio de Pisa (1409) tentou, sem sucesso, resolver o cisma aplicando princípios conciliaristas, mas acabou por adicionar um terceiro pretendente ao papado. Foi o Concílio de Constança (1414-1418) que representou o ápice prático do Conciliarismo. Este concílio conseguiu depor os papas rivais e eleger Martinho V, restaurando a unidade. De fundamental importância foram seus decretos Haec Sancta (1415), que afirmava a superioridade do concílio sobre o Papa em questões de fé, reforma da Igreja “em sua cabeça e em seus membros” e a resolução do cisma, e Frequens (1417), que determinava a convocação regular de concílios ecumênicos para assegurar a continuidade da reforma e da boa governança.

O Concílio de Basileia-Ferrara-Florença (iniciado em 1431) buscou dar continuidade a essa agenda reformista, reafirmando a autoridade conciliar. Contudo, entrou em conflito prolongado com o Papa Eugênio IV, que defendia a primazia papal. As divisões internas no concílio e a habilidade política papal em transferi-lo para Ferrara e depois Florença, focando na união com as Igrejas Orientais, enfraqueceram gradualmente a posição conciliarista. Apesar de alguns sucessos iniciais, o radicalismo de uma facção em Basileia acabou por desacreditar o movimento aos olhos de muitos.

Papas subsequentes trabalharam ativamente para reverter os ganhos conciliaristas. Pio II, com a bula Execrabilis (1460), condenou os apelos a um concílio futuro como uma tentativa de escapar da jurisdição papal, declarando-os heréticos. Embora o Conciliarismo como teoria dominante tenha sido suplantado pela reafirmação da monarquia papal, consolidada dogmaticamente no Concílio Vaticano I (1869-1870) com a definição da infalibilidade e primazia jurisdicional do Papa, suas ideias não desapareceram por completo. Elas influenciaram movimentos como o Galicanismo na França e outras formas de episcopalismo, e continuaram a informar debates sobre a estrutura de poder e a governança eclesial. O Concílio Vaticano II (1962-1965), ao enfatizar a colegialidade episcopal e o papel do colégio dos bispos em união com o Papa no governo da Igreja, revisitou de certa forma a dinâmica entre a autoridade papal e a participação mais ampla do episcopado, embora dentro de um quadro que reafirma a primazia do Pontífice Romano como sucessor de Pedro e cabeça do colégio episcopal.