A palavra grega κάλυμμα (kálumma), traduzida como “véu”, carrega um significado que transcende o seu sentido literal de cobertura física. No contexto bíblico e cultural da época, o véu era um elemento presente em diferentes situações, com implicações simbólicas e práticas.
Literalmente, κάλυμμα referia-se a qualquer tipo de cobertura, como um manto, um véu facial ou uma cortina. Era usado por mulheres como sinal de modéstia e submissão, conforme ditavam os costumes sociais. No Antigo Testamento, o véu também tinha função religiosa, como no caso de Moisés, que cobria o rosto após falar com Deus, para que o brilho de sua face não ofuscasse o povo (Êxodo 34:33-35). Essa imagem do véu de Moisés é retomada por Paulo em 2 Coríntios 3:13-16, onde o véu representa a incapacidade de compreender as Escrituras sem a revelação de Cristo. O véu, nesse sentido, impede a verdadeira compreensão, obscurecendo a glória de Deus.
Em 1 Coríntios 11:10, Paulo menciona o véu no contexto da participação das mulheres nos cultos. A interpretação dessa passagem é controversa, mas a ideia principal é a prática do véu se relaciona ao decoro e à hesitação inicial dos cristãos em realizar cultos em espaços públicos.
No Império Romano, a “ekklesia” (igreja) era primariamente um conceito público, associado a assembleias políticas e cívicas. Os primeiros cristãos, por outro lado, se reuniam em casas particulares, as chamadas “igrejas domésticas”. Essa mudança do espaço público para o privado pode ter gerado tensões e questionamentos sobre o decoro e a ordem social, especialmente em relação ao papel das mulheres.
Em Corinto, uma cidade cosmopolita e multicultural, as mulheres desfrutavam de maior liberdade e visibilidade social em comparação com outras partes do Império. Participavam ativamente da vida pública, inclusive em atividades religiosas nos templos. No entanto, a transferência do culto cristão para o espaço doméstico pode ter gerado uma ambiguidade em relação ao comportamento feminino.
O uso do véu pode ser interpretado como uma forma de resguardar o decoro e evitar mal entendidos, especialmente em relação à distinção entre o culto cristão e outras práticas religiosas. Cobrir a cabeça sinalizava que as mulheres cristãs, mesmo em um ambiente doméstico, mantinham um comportamento respeitoso e distinto como na pública ekklesia, em conformidade com as normas sociais da época.
As teorias de Corinto como centro de prostituição cultual ou de que as prostitutas tinham cabelos tosados requerendo uso do véu, embora populares, carecem de fundamento histórico e arqueológico. Embora a prostituição sagrada existisse em algumas culturas antigas, não há evidências que associem Corinto a essa prática de forma generalizada. A cidade era um importante centro comercial e religioso, com diversos templos dedicados a diferentes divindades, mas não há registros que comprovem a existência no período de um culto a Afrodite baseado na prostituição. O argumento que prostitutas com cabeça raspada ou proibidas de ter cabelos longos também não encontra respaldo nas fontes históricas. Imagens e textos da época mostram que as prostitutas em Corinto, assim como outras mulheres, usavam diferentes estilos de cabelo, incluindo cabelos longos e elaborados penteados. Não havia uma regra que as obrigasse a raspar a cabeça ou que as proibisse de ter cabelos longos.
Além do seu uso literal e religioso, κάλυμμα também pode ser entendido metaforicamente como algo que encobre, esconde ou impede a percepção da verdade. Em 2 Coríntios 4:3, Paulo fala do evangelho que está encoberto para aqueles que se perdem, significando que a incredulidade impede a compreensão da mensagem salvífica. O véu, nesse sentido, representa a cegueira espiritual e a falta de discernimento.
Em resumo, o termo κάλυμμα e suas diversas aplicações no Novo Testamento revelam a riqueza de significados associados ao véu, desde a sua função prática como cobertura física até as suas implicações simbólicas de ocultação, separação e impedimento da compreensão espiritual.
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