Alma

ALMA O conceito de “alma” na Bíblia Hebraica, expresso pelo termo néfesh, difere significativamente da noção platônica de uma entidade imaterial e imortal separada do corpo. Em vez disso, néfesh denota a própria vida, o princípio vital que anima o ser humano e o distingue dos seres inanimados. A “alma vivente” em Gênesis 2:7, por exemplo, não se refere a uma substância imaterial, mas sim ao ser humano como um todo, um organismo vivo e animado pelo sopro divino.

A néfesh abrange as dimensões física, psicológica e espiritual do ser humano, incluindo apetite, emoções, intelecto e vontade. Ela não é imortal por natureza, mas está sujeita à morte física, como expresso em diversos textos bíblicos (e.g., Ezequiel 18:4). A esperança de vida após a morte no Antigo Testamento está ligada à ressurreição do corpo, não à imortalidade inerente da alma.

No Novo Testamento, o termo grego psyché mantém uma relação complexa com o conceito hebraico de néfesh. Em alguns contextos, psyché se refere à vida física ou à pessoa como um todo, enquanto em outros, parece denotar uma dimensão interior que pode ser separada do corpo após a morte, como em Mateus 10:28. Essa aparente dualidade reflete a influência do pensamento grego sobre a cosmovisão judaica no período intertestamentário.

O debate entre dicotomistas e tricotomistas sobre a constituição do ser humano (corpo e alma versus corpo, alma e espírito) ilustra a complexidade do tema e a diversidade de interpretações. A Bíblia não apresenta uma teoria sistemática sobre a alma, mas utiliza a linguagem de forma dinâmica e contextualizada para expressar a totalidade da experiência humana.

A “alma” na Bíblia, portanto, não se encaixa perfeitamente nas categorias filosóficas modernas do mundo Ocidental. Ela representa a vida em sua plenitude, a unidade psicossomática que define o ser humano como criatura de Deus.  

Estela de Kuttamuwa

A Estela de Kuttamuwa é uma inscrição funerária em aramaico datada do século VIII a.C..

A lápide foi encontrada em Sam’al, Turquia, em 2008, em uma expedição da Universidade de Chicago. Pesa cerca de 350 kg e mede 100 cm por 60 cm.

A inscrição, em primeira pessoa, pede para quem possuir o local faça oferendas da vinha e sacrifícios em benefício da “alma”. É a mais antiga atestação em contexto semítico levantino da alma como continuidade além da morte.

Uma interpretação é que a estela infere que o corpo de Kuttamuwa tenha sido cremano na crença de que sua alma passou para a estela. A cremação é característica das culturas indo-européias, mas incomum entre os semitas.

Uma reconstrução do texto seria:

“Eu sou Kuttamuwa, servo de Panamuwa, que encomendou para mim [esta] estela enquanto ainda vivia. Coloquei-a em uma câmara eterna e estabeleci um banquete [nesta] câmara: um touro para Hadad Qarpatalli, um carneiro para NGD/R ṢWD/RN [?], um carneiro para Šamš, um carneiro para Hadad dos Vinhedos, um carneiro para Kubaba , e um carneiro para minha alma que nesta estela. De agora em diante, qualquer um dos meus filhos ou dos filhos de qualquer um [outro] que vier a possuir esta câmara, que ele pegue do melhor desta vinha uma – oferenda ano a ano . Ele também deverá realizar o abate [prescrito acima] em minha alma e deve conceder para mim um corte da perna.”

Imortalidade da alma

A crença na imortalidade da alma é entendida, em sentido estrito, como um componente vivo com existência separada e eterna do ser humano. Essa perspectiva não encontra respaldo no texto bíblico hebraico, mas é uma concepção helenista que ganhou sinonimia em círculos cristãos como crença na existência humana pós-vida.

No Antigo Testamento, a visão predominante descreve o ser humano como uma unidade humana (nefesh), sem a dicotomia que opõe o corpo a um componente espiritual presente na filosofia grega. A morte é representada como um estado de inatividade no Sheol, e embora algumas passagens poéticas sugiram uma continuidade da relação com Deus após a morte (Salmos 16, 49, 73), elas não sustentam explicitamente a ideia de uma alma imortal.

A noção da imortalidade da alma emerge no judaísmo durante o período intertestamentário (século II a.C. – século I d.C.), possivelmente influenciada pelo pensamento platônico. Posteriormente, o misticismo judaico elabora concepções mais complexas, distinguindo diferentes aspectos da alma (nefesh, ruah, neshamah, hayyah, yehidah) e suas jornadas após a morte.

No Novo Testamento, o termo grego psyche é utilizado para “alma”, mas geralmente preservando a concepção hebraica de unidade do ser humano. A doutrina central do cristianismo primitivo é a ressurreição do corpo (soma), como enfatizado em 1 Coríntios 15, em contraste com a ideia de uma alma imortal independente do corpo. Assim, a imortalidade da alma e a ressurreição corporal representam concepções distintas do pós-vida, com implicações teológicas divergentes.

A imortalidade da alma, enraizada na filosofia grega, particularmente em Platão, postula que a alma é inerentemente eterna e transcende o corpo, considerado uma prisão. A morte, nesse contexto, é vista como uma libertação. Em contrapartida, a ressurreição do corpo, central para o pensamento judaico-cristão, sustenta que tanto corpo quanto alma são criações divinas e serão restaurados em uma forma glorificada. Para o cristianismo, a morte é o último inimigo, vencido por Cristo, enquanto, para a tradição grega, é uma aliada que liberta a alma de sua condição material.

A noção liberacionista da alma encontrou respaldo entre círculos gnósticos que consideravam a matéria do corpo como um entrave para a salvação.

A distinção entre essas perspectivas é exemplificada por Oscar Cullmann em sua célebre palestra em Harvard Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos?. Cullmann contrasta a serenidade de Sócrates, que aceitou a morte como um momento de libertação da alma, com a angústia de Jesus, que enfrenta a morte como um inimigo a ser derrotado. Nos Evangelhos e na Epístola aos Hebreus, a morte de Jesus é marcada por terror e abandono, ressaltando a visão cristã de que a ressurreição é um ato criativo de Deus, restaurando a totalidade do ser humano, em vez de uma mera continuidade da existência da alma.

A ressurreição do corpo, portanto, é vista pelo cristianismo como um evento transformador e um milagre de recriação, enquanto a imortalidade da alma é considerada uma negação da morte. A ênfase cristã na ressurreição reflete uma visão holística da criação e da redenção, onde a totalidade do ser humano é restaurada à vida.

BIBLIOGRAFIA

Cullmann, Oscar. Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead?: The Witness of the New Testament. Wipf & Stock, 2000.