Uma exposição bíblica do artigo 5° dos Pontos de Doutrina e de Fé, a respeito da salvação.
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Gasparo Contarini
Cardeal Gasparo Contarini (1483 -1542) foi um diplomata e bispo italiano de Belluno. Foi membro da comunidade dos Spirituali, simpatizadores da reforma italiana.
Em 1511, durante um período de crise interior, Contarini chegou à convicção de que a humanidade é justificada diante de Deus pela fé, não pelas obras. Chegou de modo independente a tal posição, quase contemporânea a outros reformadores como Lutero e Zwingli, após um confessor garantir-lhe que obra alguma o justificaria.
Diplomata, iniciou sua carreira em 1518, representando a República de Veneza. Prestaria ainda serviços ao Imperador do Sacro Império Romano Germânico e ao papado.
Acompanhou prelados papais na Dieta de Worms, mas não se encontrou com Lutero. Mesmo sendo leigo, foi nomeado cardeal em 1535. Foi um dos primeiros proponentes do diálogo com os protestantes, após a Reforma, para tal, foi nomeado para presidir uma comissão para estudar uma reforma interna na Igreja Católica Romana.
Além de Contarini, a comissão contava com oito cardeais: Girolamo Aleandro, Tommaso Badia, Giovanni Pietro Carafa (mais tarde papa Paulo IV ), Gregorio Cortese, Federigo Fregoso, Gianmatteo Giberti, Reginald Pole e Jacopo Sadoleto. O relatório Consilium de Emendanda Ecclesia foi entrege a Paulo III em 1537. Embora o papa aceitasse as recomendações, não houve ações concretas. Depois que o documento vazou e foi publicado clandestinamente, inclusive uma versão alemã por Lutero, o documento perdeu sua força. Seria colocado no Index de livros proibidos.
No Colóquio de Regensburg entre católicos e reformadores em 1541, Contarini propôs a doutrina da dupla justificação (ou dupla justiça), que foi rejeitada por ambos partidos e, mais tarde, pelo Concílio de Trento.
Pela doutrina da duplex iustitia, Contarini distinguia entre justiça inerente — a qual seria adquirida por meio de boas obras e graça santificante — e justiça imputada — a qual seria adquirida pela fé por meio da justiça imputada de Cristo.
Soteriologia forense
A soteriologia forense é um conjunto de teorias teológicas a respeito da salvação. A soteriologia forense emprega a metáfora de um processo penal de justificação no qual o pecador é declarado inocente.
Por esse modelo, a justificação dos pecadores ocorre pela declaração de perdão de Deus por causa da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Este modelo desenvolveu-se na Idade Média com base na doutrina da graça de Agostinho, mas em rejeição de seu conceito de justificação como “ficar justo”. Ganharia sua primeira formulação sistemática com a teoria de expiação por satisfação de Anselmo da Cantuária.
A consolidação de uma soteriologia distintivamente forense deve-se a Filipe Melâncton. Com base na concepção de Lutero de que a justificação seria externa (iustitia aliena), Melâncton formulou a doutrina justificação imputada para explicar a condição de justo e pecador. Nessa perspectiva, o pecador seria declarado justo na justificação enquanto a santificação seria algo distinto dentro da obra de salvação. O conceito luterano de justiça imputada bem como os sistemas teológicos calvinistas e arminianos, de uma forma ou outra, são construídos sobre essa metáfora forense. A partir de Calvino a soteriologia forense ganhou contornos de uma substituição penal.
Na esteira calvinista, Francisco Turretin argumentava esse arcabouço soteriológico com os seguintes termos:
A palavra justificação é forense porque as passagens que tratam da justificação não admitem outro sentido senão forense, Jó 9:3. Ps. 143:2, Rom. 3:28 e 4:1-3, Atos 13:39, e em outros lugares, onde um processo judicial é estabelecido, e é feita menção de uma lei acusadora, de pessoas acusadas, que são culpadas, Rom. 3:19, de uma cédula contrária a nós, Col. 2:14, da justiça divina exigindo punição, Rom. 3:24, 26, de um advogado que defende a causa, 1 João 2:1, de satisfação e justiça imputada, Rom. 4 e 5; de um trono de graça diante do qual somos absolvidos, Heb. 4:16, de um Juiz pronunciando sentença, Rom. 3:20, e absolvendo os pecadores, Rom. 4:5.
Turretin
Uma crítica a essa escola soteriologica é atribuir uma inabilidade de Deus exercer livremente sua graça exceto via pagamento dos pecados mediante o sacrifício da cruz. Em outras palavras, pela soteriologia forense a oração dominical pedindo “perdoai as nossas dívidas” estaria errada, pois Deus seria incapaz de perdoar. Portanto, na oração deveria dizer “pagai as nossas dívidas”. Outra crítica é a noção abstrata de justiça e a concepção descontextualizada de justificação. Justiça — nos sentidos bíblicos de dikaiosynē ou tzedekah– implicaria em uma justificação que produza retidão, não se limitando a ser declarado justo. Adicionalmente, nas concepções magistrais de justificação refere-se somente à justiça retributiva, a qual é um dentre vários modelos de justiça, sem contemplar outros modelos desse conceito, como a justiça restaurativa da época do Novo Testamento. Por fim, alguns teólogos consideram a punição de um justo para satisfazer as faltas de alguém injusto um ato sádico que não condiz com o Deus bíblico.
Como todo modelo interpretativo, a soteriologia e justificação forenses são uma construção externa para rearranjar e configurar coerentemente as doutrinas bíblicas. Assim, há pontos fortes e fracos. No entanto, em uma confusão mapa-território, alguns teólogos igualam este modelo explicativo com o próprio evangelho, perfazendo exercícios de eisegese com as Escrituras.
Outros modelos soteriológicos bíblicos mais conhecidos — especialmente fundamentados nas doutrinas sobre expiação e justificação — são a teoria da recapitulação (Irineu, Hicks, Moltmann); a teoria do resgate; a teoria de Christus Victor de Aulén; a teoria da satisfação de Anselmo; a teoria do exemplo moral; teoria da influência moral de Abelardo; teoria do bode expiatório (Girard, Alison); teoria governamental (Grócio); novo aliancismo; nova perspectiva sobre Paulo; soteriologias terapêuticas (transformativa, restaurativa ou regenerativa); teose, dentre outras.
BIBLIOGRAFIA
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