666

O número 666, seiscentos e sessenta e seis, ou número da besta, é uma cifra enigmática que aparece no livro do Apocalipse 13:18. A passagem diz: “Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem; e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.”. A identidade desse número tem sido objeto de intensa especulação e interpretação ao longo da história. É identificado como o “número da besta”, associando-o a uma figura ou poder terreno oposto a Deus.

A gramática da frase grega “ἀριθμὸς γὰρ ἀνθρώπου ἐστίν” (“pois é número de homem”) oferece duas interpretações principais. Uma leitura sugere que o número 666 é o número de um homem específico, enquanto outra interpretação propõe que “homem” (ἄνθρωπος – anthrópou) é genérico, significando que o número representa a humanidade em geral. A construção gramatical no grego apoia a leitura genérica, indicando que o número 666 seria simbólico da humanidade. Nesse sentido, a Besta, como a maior representação da humanidade sem Cristo e a melhor falsificação de um homem perfeito engendrada pela serpente antiga, ainda estaria aquém da perfeição, que seria simbolizada pelo número sete.

Ao longo dos séculos, inúmeras tentativas foram feitas para identificar o “homem” cujo número é 666. Uma leitura influente porém questionada, apoiada por evidências textuais e históricas, sugere que 666 codificaria o nome do imperador romano Nero (ou talvez Domiciano), cuja perseguição aos cristãos no século I d.C.. Essa interpretação se baseia na prática antiga da gematria, que atribuía valores numéricos às letras hebraicas e gregas, permitindo que nomes fossem expressos como números. Ao transliterar o nome “Neron César” em hebraico e aplicar a gematria, seria possível chegar ao valor 666.

Além disso, uma variante textual minoritária em alguns manuscritos antigos do Apocalipse apresenta o número como 616, que corresponde à gematria do nome “Nero César” em latim. No entanto, essa variante é considerada suspeita por muitos estudiosos, pois pode ter sido motivada pela tentativa de se alinhar mais precisamente com a gematria do nome de Nero.

  • Papiro P¹¹⁵: Um dos manuscritos que apresenta a leitura de 616.
  • Códice C (Codex Ephraemi Rescriptus): Outro testemunho textual que registra 616.
  • Alguns manuscritos conhecidos por Irineu: O Pai da Igreja Irineu, escrevendo no século II, estava ciente de manuscritos que traziam a leitura de 616.
  • Dois minúsculos manuscritos (5 e 11): Embora não mais existentes, esses manuscritos também continham a variante 616.

Outra associação histórica do número 666 é com o rei Salomão. Em 1 Reis 10:14, é registrado que o peso do ouro que Salomão recebia anualmente era de 666 talentos de ouro. Alguns intérpretes veem essa menção como um símbolo da riqueza terrena que levou à apostasia de Salomão, estabelecendo um paralelo com a natureza anticrística da Besta.

Outras interpretações propõem que o número represente um sistema político, econômico ou religioso específico, ou ainda simbolize a imperfeição máxima, uma vez que 6 é um número aquém do número perfeito 7. Variações textuais antigas do Apocalipse, como um papiro que apresenta o número 616, complicam ainda mais a questão, sugerindo que a interpretação original pode ter se referido a outra figura ou cálculo.

Apesar dessas associações históricas, o termo “Anticristo” em si não aparece no livro do Apocalipse, restringindo-se às epístolas de João para descrever aqueles que negam a natureza de Cristo. A partir do século IV, a figura do Anticristo passou a ser sinônimo dos poderes malignos descritos no Apocalipse, incluindo a Besta cujo número é 666.

Nero

Nero Cláudio César Augusto Germânico (54-68 d.C.) foi um imperador romano durante um período crucial para o cristianismo nascente, como ilustrado na narrativa de Atos dos Apóstolos (25:11), que menciona a possibilidade de Paulo apelar para César, referindo-se a Nero.

A tradição associa o seu reinado à primeira grande perseguição aos cristãos em Roma, ocorrida após o incêndio da cidade em 64 d.C. (veja Shaw, 2015). Contudo, a extensão e a natureza dessa perseguição são objeto de debate historiográfico (Shaw, 2015; Jones, 2017; Shaw, 2018). Enquanto a visão tradicional descreve uma repressão severa, estudiosos modernos questionam se a perseguição foi tão ampla e sistematicamente motivada por uma política anti-cristã, sugerindo que pode ter sido mais localizada e ligada a eventos políticos específicos (Shaw, 2015).

O governo de Nero também marca o início da Primeira Guerra Romano-Judaica (66-73 d.C.), um conflito de grande significado para o contexto histórico e religioso em que o cristianismo se desenvolveu.

Nero como besta ou anticristo

A primeira identificação de Nero como a besta foi Vitorino de Pettau (250-303 d.C.) em seu Comentário sobre o livro do Apocalipse. E como anticristo, Nero aparece pela primeira vez no Poema dos Dois Povos, de Comodiano (fl. 250), e no livro anônimo donatista Liber genealogus (c. 405).

Após a morte do imperador Nero em 68 d.C., uma crença popular, conhecida como a lenda do “Nero Redivivus” (Nero redivivo ou Nero que voltará), disseminou-se pelo Império Romano. Essa lenda sustentava que Nero não havia realmente morrido, mas escapara e retornaria, frequentemente imaginado vindo do Oriente (particularmente da Pártia), com um exército para retomar o poder e/ou punir seus inimigos em Roma. Essa expectativa alimentou o aparecimento de vários impostores que se passavam por Nero.

No livro do Apocalipse 13:18, o autor menciona o “número da besta” ou “número de um homem” como 666 (havendo uma variante textual em alguns manuscritos antigos que apresenta o número 616). Uma interpretação desde o século XIX conecta este número a Nero através da gematria, um sistema onde letras em hebraico (e grego) possuem valores numéricos.

O nome e título “Nero César” (Νέρων Καῖσαρ em grego), quando transliterado para o alfabeto hebraico como “נרון קסר” (NRWN QSR), resulta na soma 666 (N=50, R=200, W=6, N=50, Q=100, S=60, R=200; 50+200+6+50+100+60+200=666). Um papiro do século I d.C., conhecido como o “Papiro de Neron César”, atesta essa grafia em aramaico. Uma variante textual em alguns manuscritos antigos do Novo Testamento apresenta o número da Besta como 616, que corresponde à transliteração hebraica de “Nero César” (nrw qsr), omitindo a última letra “n” de “Neron”. A familiaridade dos leitores judeu-cristãos da Ásia Menor com o hebraico ou aramaico é apontada como uma razão para João esperar que eles realizassem esse cálculo. A menção de nomes em hebraico e grego para o anjo do abismo (Abaddon/Apollyon) em Apocalipse 9:11 é citada como um possível precedente para o uso de ambos os contextos linguísticos por João. Curiosamente, a transliteração das consoantes da palavra grega para “besta” (θηρίον) para o hebraico também resulta no valor numérico de 666.

Era uma prática conhecida no mundo antigo usar códigos numéricos ou apelidos para governantes despóticos. Um grafite antigo igualava o valor numérico do nome de Nero em grego com a frase “assassinou a própria mãe”, ilustrando essa prática. As Oráculos Sibilinos, embora escritos posteriormente, referem-se a uma figura com “cinquenta como inicial” (o valor numérico da letra hebraica Nun, a primeira letra de Neron), sugerindo uma consciência contemporânea de uma associação numérica com o nome de Nero.

Para a audiência original do Apocalipse, que provavelmente vivia sob o impacto das perseguições imperiais e com a memória possível da crueldade de Nero contra os cristãos, a figura da “besta” que recebe uma ferida mortal mas sobrevive (Apocalipse 13:3) poderia ecoar a lenda do Nero Redivivus, e o número 666 serviria como um código para identificar essa entidade bestial e tirânica com o arquétipo do imperador perseguidor, Nero, cujo “retorno” ou a manifestação de um poder com seu espírito era temido.

A interpretação de Nero como a besta ou anti-Cristo é contestada. Malik (2020) considera tais interpretações como tardias na Antiguidade. Um dos principais argumentos contrários é por que João, escrevendo em grego para igrejas de língua grega na Ásia Menor, esperaria que sua audiência usasse a gematria hebraica para calcular o número da Besta. Originário da Ásia Menor, Irineu, escrevendo no século II que viveu relativamente perto da época da escrita do Apocalipse, afirmou não conhecer a identidade da Besta e discutiu a variante 616 sem mencionar Nero como a solução primária. Isso levanta dúvidas sobre se a identificação de Nero era amplamente conhecida ou compreendida na igreja primitiva.

BIBLIOGRAFIA

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