Antropormorfismo

O antropomorfismo na Bíblia refere-se à representação de Deus em termos humanos, usando características, atributos, emoções e ações humanas para retratar aspectos da natureza divina.

Dentre o gênero da categoria antropomorfismo, há as espécies antropomorfismo próprio, antropopatismo e antropopraxismo.

Em termos específicos, antropormofismo descreve Deus com traços humanos, quer físcos (olhos, boca, costas, etc). Já o antropopatismo descreve em termos psicológicos (ira, zelo, arrependimento). Por, fim atos comportamentais humanos constituem o antropopraxismo (Deus caminhar).

O antropomorfismo é um recurso literário empregado nas Escrituras para auxiliar os seres humanos a entender e se relacionar com os atributos e interações de Deus com a humanidade. Esta linguagem antropomórfica não pretende sugerir que Deus está limitado à forma humana, mas serve como um meio de transmitir verdades teológicas profundas de uma forma compreensível para os leitores humanos.

Exemplos de antropomorfismo na Bíblia:

  • A Mão de Deus: A Bíblia muitas vezes retrata a mão de Deus como um símbolo de Seu poder e ação. Em Êxodo 3:20, Deus fala de Sua “mão poderosa” ao libertar os israelitas do Egito. Representa Sua intervenção e autoridade nos assuntos da humanidade.
  • Os olhos de Deus, uma metáfora para Sua presença vigilante e conhecimento divino, são enfatizados no Salmo 33:18: “Eis que os olhos do Senhor estão sobre os que o temem, sobre os que esperam na sua benignidade”.
  • O braço de Deus, mencionado em Isaías 53:1, simboliza Sua salvação e libertação. O profeta Isaías usa essa figura de linguagem para destacar a força e a capacidade de Deus em resgatar Seu povo.
  • A voz de Deus, um antropomorfismo que representa Sua comunicação com a humanidade, é evidente em Gênesis 3:8: “E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela viração do dia”. Essa passagem ilustra a interação direta de Deus com Adão e Eva.
  • A face de Deus simboliza Seu favor, atenção e revelação. Em Números 6:25, a bênção sacerdotal invoca: “O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti”. Essa imagem transmite a graça e o amor de Deus para com Seu povo.
  • A ira de Deus, uma emoção humana atribuída a Ele, é demonstrada em Êxodo 32:9-10, quando os israelitas adoram o bezerro de ouro.
  • O odor que agrada a Deus, mencionado em Gênesis 8:21, descreve a satisfação divina com o sacrifício de Noé após o dilúvio.
  • O descanso de Deus, retratado em Gênesis 2:2, simboliza a conclusão da criação.
  • A alegria de Deus, expressa em Isaías 65:19, revela Seu contentamento com a restauração e prosperidade de Jerusalém.
  • A tristeza/aflição de Deus, mostrada em Juízes 10:16, ilustra Sua compaixão pelo sofrimento de Israel.
  • O ódio de Deus, manifestado em Salmos 5:5-6, revela Sua aversão ao mal e à injustiça.
  • O amor de Deus, exemplificado em Jeremias 31:3, revela Seu carinho eterno e incondicional por Seu povo. Essa emoção divina destaca Sua fidelidade e compromisso com a humanidade.
  • Deus como pastor: Salmos 23:1 retrata Deus como um guia e protetor amoroso.
  • Deus como juiz: Gênesis 18:25 descreve Deus como o árbitro supremo, que age com justiça.
  • Deus como noivo: Marcos 2:19-20 usa essa metáfora para ilustrar a relação entre Jesus e seus discípulos.
  • Deus como marido: Isaías 54:5 retrata Deus como um parceiro fiel em uma aliança matrimonial com Seu povo.

BIBLIOGRAFIA

Cole, Graham. The God Who Became Human: A Biblical Theology of Incarnation. Vol. 30, InterVarsity Press, 2013.

Köhler, Ludwig. Anthropomorphisms and Their Meaning from Old Testament Theology. Westminster, 1957.

Yamauchi, Edwin M. “Anthropomorphism in Ancient Religions.” Bibliotheca Sacra, vol. 125, Jan.-Mar. 1968, pp. 29-44.

VEJA TAMBÉM

Acomodação

Linguagem religiosa

Palavra de Deus

Palavra de Deus, Logos de Deus, Memra de Deus, Verbo de Deus refere-se à presença divina autocomunicada existente com Deus. No Novo Testamento é exclusivamente manifestada como pessoa em Jesus Cristo (Jo 1:1; 1 Jo 1:1-3, 5; Ap 19:13).

Este conceito, proverbialmente difícil de se traduzir, tradicionalmente aparece como Verbo ou Palavra nas Bíblias de língua portuguesa.

DEFINIÇÕES SEMÂNTICAS E TEOLÓGICAS

O termo teológico Palavra aparece de três formas na Bíblia:

  • A raíz d-b-r, especialmente davar, דָּבָר, H1821, em seu significado originário transmite as ideias de algo pensado (noético), dinâmico e seu produto (coisas). No sentido particular como d-b-r pertinente a Deus refere-se a seu modo de existência que cria e mantém o universo, bem como comunica a vontade divina. No Antigo Testamento a Palavra de Deus é criativa (Gn 1; Is 55:10-11) e dotada de comando (Am 3:1).
  • Logos λόγος, G3364. Daí, Ο λόγος του Θεού. Em seu sentido genérico significa discurso ou a razão em exercício (raciocínio). Porém, ganha uma conotação especial no conceito de logos como razão ou ordem subjacente conforme conceberam-na os filósofos gregos, servindo a calhar para traduzir o conceito de d-v-r de Deus. Complica mais seu conteúdo semântico por ser próximo de léxis, enunciados, do qual logos com plural logoi é quase sinônimo. A logia (plural de logos) de Deus como atos da razão subjacente na Criação foi particularmente empregada por autores israelitas do segundo Templo, tanto em literatura parabíblicas como Filo de Alexandria, como um modo de existência distinto do próprio Deus. E um termo semanticamente próximo é o logion (G3051) é uma declaração divina ou um oráculo, cujo plural é logia. Nesse último sentido, aparece em At 7:38; Rm 3:2; Hb 5:12; 1 Pe 4:11.
  • Rhema, ῥῆμα, G4839, expressão verbal, assunto. No que se refere à rhema divina indica à autoridade do que é dito por Deus (Rm 10:17).

Na expectativa messiânica do período do Segundo Templo esperava-se pela manifestação do D-B-R/Memra/Logos. A Septuaginta traduz davar como logos e rhema quase de modo intercambiável. Com sentido virtualmente sinônimos esses termos aparecem no Novo Testamento. Nesse sentido aparecem nas versões aramaicas da Bíblia Hebraica, Targum, que utilizam o termo Memra, a Palavra personificada. Nesse período, a teologia do Logos de Filo de Alexandria sintetizou o anseio pela manifestação da Palavra.

O Cristianismo reconheceu essa manifestação em Jesus Cristo (Jo 1:1; 1 Jo 1:1-3, 5; Ap 19:13). O Logos joanino é fortemente paralelo ao conceito de Sabedoria no judaísmo de expressão helenística. Nele, a Sabedoria e a Palavra já estavam associadas (Sabedoria de Salomão 9:1-2).

O evangelho de João afirma que o Logos estava plena e unicamente identificado com Jesus Cristo. Comparando com autores da época, o Logos para Filo, por exemplo, seria um modo divino, porém subordinado a Deus, mas pervasivo a todo pensamento racional. Em contraste, no evangelho de João a encarnação do Logos trouxe vida aos seres humanos, aos quais, de outra forma, ela não estaria disponível (Jo 1:1-18).

Há conotações no Novo Testamento no qual a “Palavra” frequentemente significa a mensagem cristã ou seja, a instrução sobre Jesus Cristo, sobre o Evangelho e exortações para levar uma vida cristã. (2 Co 2:17; cf. 1 Co 1:18), ou o genérico “palavra”, em seu sentido como léxico. No livro de Atos 6:2, 4, 7; 12.24; 13:46; 17:13: 19.20, a expressão “palavra de Deus” conota consistemente a mensagem proclamada pelos primeiros cristãos.

Muitas vezes, o termo se refere a algo que é falado, o conteúdo da fala, o ato de falar.

Apesar da expressão “Palavra de Deus” não aparecer nas Escrituras para conotar as próprias Bíblia, na idade média tal expressão ganhou este significado por metonímia. Um dos mais antigos registros, nessa acepção que iguala a Bíblia à Palavra de Deus, em um sermão dos seguidores de Wycliff em 1425.

Durante a Reforma, consagrou-se a fórmula de a Palavra de Deus ter uma tripla manifestação: a Palavra de Deus encarnada em Jesus Cristo, a Palavra de Deus escrita testificada nas Escrituras e a Palavra de Deus proclamada na pregação do Evangelho. Nesse respeito diz o Artigo 1o da Segunda Confissão Helvética:

A Escritura é a Palavra de Deus. O mesmo apóstolo diz aos tessalonissenses: “Tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes, não como palavra de homens, e, sim, como, em verdade é, a palavra de Deus”, etc. (I Tes 2.13). E o Senhor disse no Evangelho: “Não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós” (Mat 10.20); portanto, “quem vos der ouvidos, ouve-me a mim; e, quem vos rejeitar, a mim me rejeita; quem, porém, me rejeitar, rejeita aquele que me enviou”, (Mat 10.40; Luc 10.16; João 13.20).

A pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus. Portanto, quando esta Palavra de Deus é agora anunciada na Igreja por pregadores legitimamente chamados, cremos que a própria Palavra de Deus é anunciada e recebida pelos fiéis; e que nenhuma outra Palavra de Deus pode ser inventada, ou esperada do céu: e que a própria Palavra anunciada é que deve ser levada em conta e não o ministro que a anuncia, pois, mesmo que este seja mau e pecador, contudo a Palavra de Deus permanece boa e verdadeira.

Nem pensamos que a pregação exterior deve ser considerada infrutífera pelo fato de a instrução na verdadeira religião depender da iluminação interior do Espírito; porque está escrito: “Não ensinará jamais cada um ao seu próximo… porque todos me conhecerão” (Jer 31.34), e “nem o que planta é alguma cousa, nem o que rega, mas Deus que dá o crescimento”, (I Cor 3.7). Pois, ainda que ninguém possa vir a Cristo, se não for levado pelo Pai (cf. João 6.44), se não for interiormente iluminado pelo Espírito Santo, sabemos contudo que é da vontade de Deus que sua palavra seja pregada também externamente. Deus poderia, na verdade, pelo seu Santo Espírito, ou diretamente pelo ministério do anjo, sem o ministério de São Pedro, ter ensinado a Cornélio (cf. At 10.1 ss); não obstante, ele o envia a São Pedro, a respeito de quem o anjo diz: “Ele te dirá o que deves fazer” (cf. At 11.14).

A iluminação interior não elimina a pregação exterior. Aquele que ilumina interiormente dando aos homens o Espírito Santo é o mesmo que deu aos discípulos este mandamento: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16.5). E assim, em Filipos, São Paulo pregou a Palavra externamente a Lídia, vendedora de púrpura; mas o Senhor, internamente, abriu o coração da mulher (At 16.14). E o mesmo São Paulo, numa bela gradação, em Rom 10.17, chega, afinal, a esta conclusão: “E assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo”.

Reconhecemos, entretanto, que Deus pode iluminar quem ele quiser e quando quiser, mesmo sem ministério externo, pois isso está em seu poder; mas aqui falamos da maneira usual de instruir os homens, que nos foi comunicado por Deus, tanto por mandamento como pelo exemplo.

TEXTOS BÍBLICOS RELEVANTES

  • Gênesis 15:1-6
  • 1 Samuel 3:1,7,19-21
  • Salmo 18:30
  • Salmo 33:4-6
  • Jeremias 1:4-10
  • João 1:1-3
  • Atos 6:7; 12:24; 13:49; 19:20
  • 1 Tessalonicenses 2:8-13
  • Hebreus 4:12; 13:7
  • 1 João 1:1-3, 5
  • Apocalipse 19:13

SAIBA MAIS

Boyarin, Daniel. “The Gospel of the Memra: Jewish Binitarianism and the Prologue to John.” Harvard Theological Review 94.3 (2001): 243-284.

Bullinger, Heinrich. “Artigo 1”. Segunda Confissão Helvética (1566).

Bury, Robert Gregg. The Fourth Gospel and the Logos-Doctrine. Cambridge, W. Heffer & Sons, 1940.

Currie, Thomas Christian. The Only Sacrament Left to Us: The Threefold Word of God in the Theology and Ecclesiology of Karl Barth. ISD LLC, 2016.

Ronning, John. The Jewish Targums and John’s Logos Theology. Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2010.

Sandberg, Glenn R, and Frank Hofmann. How Does God Talk to Us? The Concept of the “Word of God” in Augustine, Martin Luther, and Karl Barth. Wipf and Stock Publishers, 2021.

Zander, Glenn, “An Investigation of Logos Tou Theou in the New Testament” (1974). Master of Divinity Thesis. 122. Concordia Seminary, St Louis. https://scholar.csl.edu/mdiv/122