Dispensacionalismo

O dispensacionalismo é um sistema teológico, modo interpretativo e abordagem de teologia bíblica que vê a história do mundo como uma série de “dispensações” distintas ou períodos nos quais Deus trabalhou com a humanidade de maneiras diferentes.

É fundamentado em dois princípios básicos.

O primeiro princípio é que a história cosmológica é composta por uma série de ‘dispensações’, ou períodos temporais específicos dentro da economia divina.

Economia de salvação é como Deus administra seu plano redentivo, as maneiras pelas quais Deus interage com o ser humano. Para o dispensacionalismo as dispensações não consistem em diferentes meios para salvação.

O segundo princípio é que Deus tem planos separados para Israel e para a Igreja. Muitos dispensacionalistas enfatizam o significado duradouro da aliança de Deus com Israel, sendo contra as teologias supersessionistas, segundo as quais as promessas de Deus Abraão havia sido de alguma forma anuladas por Cristo.

Várias propostas dividiram a história de salvação como forma hermenêutica. Contudo, o tratamento de cada estágio como uma teologia particular teve antecedentes diversos. O ministro anglicano Thomas Brightman (1557–1607) interpretou as sete igrejas no livro do Apocalipse como referindo-se a sete eras da história da igreja. Outros antecessores do dispensacionalismo moderno incluem Robert Pont (1524–1606), Pierre Poiret (1646-1719), John Edwards (1639-1716), Isaac Watts (1674-1748).

O dispensacionalismo moderno se originou no século XIX com John Nelson Darby. O movimento ganhou popularidade nos Estados Unidos por meio dos ensinamentos de teólogos como D. L. Moody e C.I. Scofield. Tem sido associado a certas crenças teológicas, como um arrebatamento repentino na pré-tribulação da Igreja e um reinado pré- milenar de Cristo na terra.

O modelo mais conhecido das dispensações é proposto por Scofield:

  1. Inocência (Gn 1:28): desde a criação do mundo até a queda de Adão.
  2. Consciência ou responsabilidade moral (Gn 3:7): da queda até o final do dilúvio.
  3. Governo humano (Gn 8:15): do final do dilúvio até o chamado de Abraão.
  4. Promessa (Gn 12:1): do chamado de Abraão até a entrega da lei.
  5. Lei (Êx 19:1): da entrega da lei até o Pentecostes.
  6. Igreja (At 2:1): do Pentecostes até o arrebatamento.
  7. Reino (Ap 20:4): o reino milenar de Cristo.

Alternativas mais conhecidas são:

  • O hiperdispensacionalismo de E. W. Bullinger.
  • Dispensacionalismo simplificado (Israel, Graça, Nova Aliança).
  • Dispensacionalismo revisado de Charles C. Ryrie.
  • Dispensacionalismo progressivo de Craig A. Blaising.

Os críticos do dispensacionalismo argumentam que ele depende demais de uma interpretação que mistura sem critérios leituras alegóricas (sete igrejas de Apocalipse como sete eras), literais (Dois homens estarão na lavoura: um será arrebatado, mas o outro deixado. Mt 24:40), além de ignorar o contexto histórico e cultural da Bíblia (desconsiderar a linguagem simbólica presente em Daniel e Apocalipse nos termos de suas épocas para uma leitura que historiciza o futuro).

As alternativas concorrrentes ao dispensacionalismo como arcabouço de teologia bíblica e história de salvação incluem a Escola Histórico-Redentora, a Heilgeschicht, o Aliancismo, o Cocceianismo, a Visão Federal, dentre outros.

Tuomo Mannermaa

Tuomo Mannermaa (1937-2015) foi um teólogo luterano finlandês, conhecido por sua escola da “Nova Interpretação Finlandesa de Lutero”.

Foi um crítico da Concórdia de Leuenberg que aproximou teologicamente as tradições reformadas e luteranas europeias. Especialista em teologias católica romana e ortodoxa, participou de debates teológicos co essas tradições.

Segundo Mannermaa, a perspectiva de Lutero sobre a salvação seria mais próxima da Igreja Ortodoxa do que imaginado por seus intérpretes luteranos. Mannermaa notou que o ensino de Lutero sobre a justificação estava baseado na justiça que habita no crente, em vez da justiça de Jesus como imputada ao crente. Lutero insistia na realidade da justiça no cristão justificado. O crente seria movido por amor proporcionado pelo Espírito Santo. Assim, argumentava a justificação pela fé em termos de teose. Nisso, a distinção coram deo e coram mundo passa ser irrelevante, pois a justificação seria integral.

Dentre os adeptos da Nova Escola Filandesa estão Simo Peura, Risto Saarinen e Antti Raunio. A escola de Mannermaa também reexamina a teologia e soteriologia de Andreas Osiander com base na união com Cristo. Reafirmam a necessidade de aspectos forenses e efetivas (transformatórias) de justificação. Sua cristologia é centrada na unidade “real-ôntica” entre Cristo e os cristãos.

BIBLIOGRAFIA

Kärkkäinen, Veli-Matti. One with God: Salvation as deification and justification. Liturgical Press, 2004.

Macchia, Frank D. Justified in the Spirit: Creation, Redemption, and the Triune God. Eerdmans , 2010.

Saarinen, Risto. “Justification by Faith: The View of the Mannermaa School” In The Oxford handbook of Martin Luther’s theology. OUP Oxford, 2014.

VEJA TAMBÉM

Soteriologia transformativa

Luteranismo

Soteriologia transformativa

As soteriologias transformativas são modelos que explicam o papel dos ensinos e obra de Jesus Cristo para a salvação centrados em seus efeitos transformativos na humanidade.

No cristianismo oriental a salvação é compreendida como um processo de tornar-se participante da natureza divina (2 Pe 1:4) ou de redenção (resgate). Nesse processo, toda a obra de Cristo – encarnação, ensinos, morte, ressurreição e ascensão – afeta a salvação da humanidade.

Salvação é representada por vários conceitos no Novo Testamento como transformativa: justificação (Rm 3:24, 59; Lc 18:1-14), reconciliação (Rm 5:10; 2 Co 5.19), redenção (Rm 3:24; Lc 21:28; Ef. 1:7, 14; Cl 1:14) e santificação (Fp 3).

Esse pensamento foi notório na era patrística. Constituiu a base teológica de Justino Mártir, Orígenes, Irineu, Atanásio, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo, Cirilo de Alexandria e Hilário de Poitiers. É a concepção predominante na soteriologia das denominações orientais, sobretudo entre os ortodoxos gregos, no modelo de teose.

No ocidente, pelas influências de Tertuliano, Cipriano de Cartago e Agostinho, surgiram diversas outras soteriologias forenses (aquelas que visam declarar o ser humano pecador justo diante de Deus). Apesar disso, persistia noções transformativas de justificação. Mesmo esses teólogos não negligenciavam aspectos regenerativos. Agostinho, por exemplo, insistia na justificação como ação transformativa de Deus para tornar a pessoa justa, derramando amor direcionado ao próprio Deus e ao próximo com base em Rm 5:5 (Agostinho. O Espírito e a Letra, 5). Contudo, práticas devocionais populares baseadas em uma transação penitencial e uma soteriologia exclusivamente forense a partir de Anselmo, a justificação forense praticamente virou o consenso dominante no mundo ocidental.

Nessa linha se desenvolveram o catolicismo romano com uma soteriologia penal-sacramental, a soteriologia da satisfação de Anselmo, a justiça imputada de Lutero, da substituição vicária de Calvino, da sinergia de Armínio, a justificação governamental de Grócio, dentre outras.

Contudo, essas abordagem como uma totalidade apresentam pontos sujeitos à crítica. Por exemplo, Darby Kathleen Ray entende a expiação ou reconciliação (o termo é fundido em inglês como “atonement”) como o ato de restaurar um relacionamento rompido entre a humanidade e Deus. No entanto, ela critica a compreensão tradicional da expiação, que enfatiza a morte sacrificial de Jesus como pagamento pelo pecado humano, sendo distorcida e usada para justificar o comportamento abusivo. Em vez disso, Ray sugere uma visão alternativa da expiação que se concentra nos aspectos de cura e reconciliação da obra de Cristo. A vida e os ensinamentos de Jesus, em vez de sua morte, oferecem as contribuições mais significativas para a expiação e que o objetivo da expiação não é apaziguar um Deus irado, mas restaurar relacionamentos rompidos entre os indivíduos e Deus, os outros e a si mesmo.

Alternativamente, os anabatistas enfocaram nos efeitos da salvação ao invés do início de seu processo como os reformadores magistrais. Essa perspectiva transformativa foi reproduzida entre os pietistas e morávios. Por meio deles, essa soteriologia afetou o pensamento dos avivalistas, especialmente de John Wesley. Wesley combinou uma soteriologia forense magistral arminiana com a soteriologia transformativa. Em outros desdobramentos, a soteriologia de Keswick adotou uma ênfase transformativa ao tratar o pecado como algo a ser curado.

O pentecostalismo sempre foi plural em sua teologia, mas há vertentes que consideram uma soteriologia transformativa. O pentecostalismo clássico abraçou essa soteriologia transformativa na fórmula quádrupla de que Jesus Cristo salva, batiza com o Espírito Santo, cura e é o rei vindouro. Dependente totalmente da graça, essas ações transformam o indivíduo, agrega-o à Igreja, transforma o corpo e o mundo por milagres sanatórios enquanto espera o reino de justiça.

Um subgrupo pentecostal, influenciados pela soteriologia de Keswick, refinou esse conceito na doutrina da Obra Plena do Calvário. Por ela, a salvação concorre na ação do Triúno Deus completada objetivamente na morte, ressurreição e envio do Espírito Santo por Jesus Cristo. Em uma eleição corporativa o pecado na criação redimida é limpo. A justificação não ocorre separadamente da conversão e do novo nascimento, visto ser a salvação um processo regenerativo. Assim, por esse ato de graça para toda humanidade, os crentes são regenerados pela fé nessa obra plena e, revestidos de poder do Espírito Santo, caminham em santificação rumo à glória eterna.

Essas soteriologias recebem designações e modelos variados, como “modelo místico de redenção” (Ritschl), “fisicalismo” (Harnack), “substituição total” (Torrance) e “soteriologia redentiva” (Studebaker).

BIBLIOGRAFIA

Burns, J. Patout “The Economy of Salvation: Two Patristic Traditions,” Theological Studies, 37 (1976) 599–600. https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/004056397603700403

Finlan, Stephen. Options on atonement in Christian thought. Liturgical Press, 2007.

Harnack, Adolf von. History of Dogma. New York: Russell & Russell, 1898, especialmente 5.14–15.

Kraus, C. N. (1992) Interpreting the atonement in the Anabaptist-Mennonite tradition. Mennonite quarterly review, 66(3), 291–311.

Macchia, Frank D. Justified in the Spirit: Creation, Redemption, and the Triune God. Vol. 2. Wm. B. Eerdmans Publishing, 2010.

Olson, Roger E. Arminian theology: Myths and realities. Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 2006.

Ray, Darby Kathleen. Deceiving the Devil: Atonement, Abuse and Ransom. Cleveland: Pilgrim Press, 1998.

Scully, Ellen. Physicalist Soteriology in Hilary of Poitiers. Brill, 2015.

Streufert, Mary J., ed. Transformative Lutheran theologies: feminist, womanist, and mujerista perspectives. Fortress Press, 2010.

Studebaker, Steven M. The Spirit of Atonement: Pentecostal Contributions and Challenges to the Christian Traditions. T&T Clark, 2021.

Torrance, T.F. The Trinitarian Faith. London: T&T Clark, 1983.

Trementozzi, David. Salvation in the Flesh: Understanding How Embodiment Shapes Christian Faith. McMaster Theological Studies Series, volume 7. Eugene, Oregon: Pickwick Publications, 2018.

VEJA TAMBÉM

Justificação

Graça

Salvação

Soteriologia forense

Teose

Justificação

Justificação, em grego dikaíōsis aparece apenas em Rm 4:25 e Rm 5:18, é o ato transformativo de capacitar a vida em retidão ou justiça diante de Deus, palavras que traduzem os conceitos bíblicos de dikaiosynē ou tzedakah.

Há conotações que se perdem na tradução. O termo hebraico hatsdiq seria vertido para o grego dikaioun e, por fim, nas línguas latinas justificar. No hebraico, hatsdiq seria vindicar, apresentar como justo, ser declarado justo ou inocente, habitar em justiça. Já o sentido grego diakioun tem a conotação forense, ou seja, fazer justiça ou justiçar, o que pode ser inclusive uma sentença condenatória. Dada a raridade do termo dikaíōsis, não há precisão de seu alcance semântico, tampouco certeza das definições propostas. As ambiguidades do grego passaram para o latim que separa iustitia de misericordia. Para complicar, boa parte da recepção desse conceito em língua inglesa distingue entre righteousness (retidão, algo pessoal) e justice (justiça, algo social), distinção não compreendida pelo conceito de tzedakah.

SENTIDOS BÍBLICOS

Nos sentidos bíblicos, na justificação corrige-se um ato errôneo. No Antigo Testamento havia o anseio de sanar as injustiças dos ímpios (Sl 37), além de o próprio ser humano se justificar (Jó 32:2; Jó 33:32; Is 43:9), visto que Deus se apresenta como demandando justiça (Dt 32:4; Sl 11:7; Sl 146:6-8; Is 5:16), especialmente para o vulnerável (Sl 10:14-18; Sl 72:1-2; Pv 31:8-9). Em contrapartida, há uma preocupação de demonstrar que Deus age em justiça (Jó 32:2; Sl 51:4).

Em uma analogia de um julgamento, a justificação aparece nas Escrituras na prestação de contas de Israel com Deus dentro de uma aliança. Assim, a justificação passou a denotar e esperança de Deus restaurar a sorte de Israel depois das opressão, sendo inocentada como nação em um julgamento (cf. Sl 43:1; 135:14; Is 50:8; Lc 18:7), expurgado de suas transgressões. Nesse sentido, a justificação seria um ato declarativo.

Diante a impureza moral e ritual, a expectativa messiânica era de que o messias possibilitasse a justificação em um reino de justiça (Sl 97). Jesus não limitou essa justificação a uma nacionalidade. Antes, pregou a justificação de Deus aos pobres. O cobrador de impostos, e não o fariseu (hipocritamente autojustificado), voltou para casa justificado diante de Deus (Lc 18,14).

A morte de Jesus na cruz poderia ser vista como uma sentença condenatória por parte de Deus, mas sua ressurreição seria entendida pelos discípulos como a “vindicação” ou “justificação” de Deus da obra de Jesus (cf. Atos 3:14-15, 26; 1 Tim 3:16). O Novo Testamento retrata Jesus Cristo cumprindo essa expectativa messiânica pelo sangue de sua morte (Rm 3:24-25) e pela sua ressurreição. Esses eventos foram para justificação (Rm 4:25), possibilitando que a humanidade obtenha paz com Deus (Rm 5:1) e implantando o seu reino de justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Rm 14:17).

TEOLOGIA

A justificação é o tema central da teologia protestante, oriunda de uma preocupação presente nas teologias ocidentais desde o século XI acerca da obra de expiação.

Diversas teorias soteriológicas tentam explicar como Jesus Cristo foi oferecido pelo pecado (2 Co 5:21), para que a humanidade mediante a fé nele fosse justificada (Rm 3:26). Metáforas como resgate, regeneração, restauração, redenção, processo penal, participação da natureza divina integram a doutrina da justificação à doutrina da salvação.

Agostinho apresentou justificação como “ficar ou fazer justo” diante de Deus em contraste com o que ele representava o pensamento de Pelágio sobre a justificação como imitação da obra justa de Cristo.

A doutrina da justificação pela fé de Lutero enfatiza um aspecto forense da salvação do crente em contraste com as interpretações “papistas” e “escolásticas” da justiça infundida merecida por boas obras.

Lutero distinguiu didaticamente entre justiça coram deo (diante de Deus) e coram mundo (diante do mundo). A justiça coram deo seria uma justiça passiva, a justiça da fé, a justiça do Evangelho ou justiça de identidade, porque restaura a identidade do homem como filho de Deus. Não é baseado em obras. A justiça coram mundo também é chamada de justiça ativa, justiça civil, justiça da lei e justiça da razão, justiça de caráter e trata das atitudes e comportamentos de uma pessoa. O homem é capaz de fazer grandes coisas pelo próximo por meio de sua razão e força. No entanto, essas boas obras são imperfeitas, maculadas por desejos pecaminosos e motivações impuras. Assim, não pode merecer a salvação. No entanto, Deus cuida do bem-estar temporal deste mundo e espera que as obras do homem cuidem de suas criaturas. Enquanto somente Deus é responsável pela salvação somente pela graça através da fé somente não tira as responsabilidades do homem dentro do mundo.

Muitos teólogos e o protestantismo popular após Lutero confudiram essa distinção didática como se fossem processos distintos. Assim, atribuíam um caráter salvítico somente à justificação coram deo, temendo que a justiça coram mundo pudesse implicar obras meritórias. Assim, várias vertentes teológicas negligenciaram as consequências transformativas da justificação e as consequências das boas obras produzidas pelos justificados em Cristo: os que andam em novidade de vida em retidão por graça de Deus.

Stephen Chester demostrou como o Comentário de Gálatas de Lutero reúne justificação e participação por meio de uma estrutura orientada cristologicamente. A justificação não é apenas um status forense, mas também a criação da vida por Deus a partir da morte, pois o crente participa da vida de Deus em Cristo. Esse foco na participação na vida de Deus fornece uma congruência conceitual entre a doutrina da justificação de Lutero e a promessa da teose.

Várias vertentes evangélicas buscaram além dos aspectos forenses e dessa teologia popular. Abordagens weslayanas e algumas católicas enfatizam a união mística em Cristo. O pentecostalismo clássico sintetiza aspectos forenses com transformativos ao considerar a justificação como ato do Espírito Santo que vindica o crente e o capacita para obras de justiça. A hermenêutica da obediência da teologia anabatista lê os escritos paulinos (e o conceito de justificação) a partir dos evangelhos, principalmente do Sermão da Montanha. As perspectivas luteranas da nova escola finlandesa aproxima a teologia da cruz, o Christus Victor e conceitos de theosis com a doutrina de justificação.

O avanço das ciências bíblicas e o aumento da interação entre diversas tradições cristãs que compreendem a justificação com suas nuances demandou uma revisão teológica em setores do protestantismo de tradição anglo-saxônica. A chamada Nova Perspectiva sobre Paulo, por exemplo, é uma delas. Um dos seus expoentes, NT Wright, argumenta que a ‘justificação’ paulina está embasada em quatros conceitos. Há um tribunal da lei cósmica; um propósito progressivo de Deus (‘escatologia’); o fato da realização de Deus em Jesus Cristo e da participação humna nele; e, um propósito divino único, mediante Israel, para todo o mundo (‘aliança’).

Apesar dos diferentes ângulos, formulações e terminologias há um consenso teológico sobre a justificação. Como processo da graça, a justificação e a regeneração — ambas inseparáveis — estão envolvidas na ação de Deus em tornar as pessoas justas, derramando em seus corações amor por si mesmo e pelo próximo.

BIBLIOGRAFIA

Beilby, James K.; Eddy, Paul R. (eds.). Justification: Five Views. London: SPCK, London, 2012.

Carson, Donald A. Right with God: Justification in the Bible and the World. Wipf and Stock, 2002.

Chester, Stephen. “It Is No Longer I Who Live: Justification by Faith and Participation in Christ in Martin Luther’s Exegesis of Galatians.” New Testament Studies 55.3 (2009): 315-337.

Hägglund, Bengt. The Background of Luther’s Doctrine of Justification in Late Medieval Theology. Augsburg Fortress, 1971.

Kärkkäinen, Veli‐Matti. “Salvation as Justification and Theosis: The Contribution of the New Finnish Luther Interpretation to Our Ecumenical Future 1.” Dialog 45.1 (2006): 74-82.

Macchia, Frank D. Justified in the Spirit: Creation, Redemption, and the Triune God. Eerdmans Publishing, 2010.

Mattes, Mark C. The Role of Justification in Contemporary Theology. Lutheran Quarterly Books. Grand Rapids: Eerdmans, 2004.

McGrath, Alister E. Iustitia Dei: a history of the Christian doctrine of justification. Cambridge University Press, 2005.

Spence, Alan J. Justification: A Guide for the Perplexed. London: T & T Clark, 2012.

Wright, N.T. Justification: God’s Plan and Paul’s Vision. London: SPCK, 2008.

Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação. 1999.

Anselmo

Anselmo da Cantuária (1033-1109) foi filósofo, teólogo e arcebispo medieval.

Anselmo nasceu perto de Aosta, na fronteira da Borgonha com a Lombardia. Aos 23 anos iniciou uma viagem de três anos aparentemente sem rumo até se estabelecer na Normandia em 1059. Entrou para abadia beneditina de Bec, sob direção de Lanfranc, um brilhante professor de dialética.

Mais tarde, Anselmo foi eleito abade de Bec e a transformou em um centro intelectual. Escreveu suas obras Monologion (1075–1076), Proslogion (1077–1078) e seus quatro diálogos filosóficos: De grammatico (c. 1059–1060), De veritate, De libertate arbitrii e De casu diaboli (1080–1086).

Em 1093, Anselmo foi nomeado arcebispo da Cantuária, a sé principal da Inglaterra. Quando Anselmo viajou a Roma em 1097 sem sua permissão, o rei William não permitiu seu retorno à Inglaterra. Depois da morte do rei em 1100, seu sucessor, Henrique I, autorizou o retorno de Anselmo. Mas seria novamente exilado de 1103 a 1107.

Suas obras como arcebispo da Cantuária incluem a Epistola de Incarnatione Verbi (1094), Cur Deus Homo (1095–1098), De conceptu virginali (1099), De processione Spiritus Sancti (1102), a Epistola de sacrifício azymi et fermentati (1106– 1107), De sacramentis ecclesiae (1106–17) e De concordia (1107–8). Anselmo morreu em 21 de abril de 1109.

O pensamento de Anselmo provocou uma grande mudança teológica no ocidente. Na busca da comprensão de Deus como um ser, rompeu com a tradição apofática ao propor examinar a essência divina como um ser.

Seu método é primordialmente lógico-dedutivo. A lógica de Anselmo segue a recepção latina de Aristóteles mediada por Porfírio e Boécio. Subscrevia ao realismo na questão dos universais, argumentando que os gêneros e as espécies não desapareceriam se afastados todas as suas instâncias.

Promoveu assim, o argumento ontológico para a razoabilidade da existência de Deus. Com base nos atributos divinos inferidos a priori e dedutivamente, revisitou a teoria do resgate da expiação. Propôs a doutrina da satisfação para o ato expiatório, pois considerava ímpia a noção de resgate como uma transação comercial paga a Satanás. Assim,argumentava que era necessário que Deus se tornasse humano para satisfazer a justiça divina, maculada pelo pecado original.

A soteriologia forense e a noção de justiça de Anselmo foram concebidas em uma matriz cultural do direito franco-germânico medieval. Por esse motivo, Hasting Rashdall (1919) vê a soteriologia de Anselmo como a atuação de um advogado lombardo em uma corte feudal.

O argumento ontológico de Anselmo foi criticado pelo monge Gaunilo (século XI) com o exercício de pensamento da ilha perfeita. Se alguém imagina uma ilha perfeita, há de existir uma mais perfeita ilha, porém não correponde necessariamente a ilha existente e a imaginada. Nessa linha, Lutero, os reformadores radicais e, mais recentemente, Barth e a teologia não realista rejeitaram muito da teologia dos atributos, especialmente atributos a priori ou não revelados em Jesus Cristo, como categorias lógicas arbitrárias.

O legado de Anselmo é notável na teoria da expiação vicária ou substituição penal desenvolvida por Lutero e Calvino.

BIBLIOGRAFIA

Anselmo. Proslogion.

Anselmo. Cur Deus homo

McGrath, Alister E. Iustitia Dei: a history of the Christian doctrine of justification. Cambridge University Press, 2005.

Rashdall, Hasting. The Idea of Atonement in Christian Theology. Londres: Macmillan, 1919.

Williams, Thomas, “Saint Anselm”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2020 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2020/entries/anselm/&gt;.

Primitivismo

“O cristianismo histórico primitivo deve ser sempre essencialmente normativo, e se tipos posteriores de religião divergem tanto do tipo primitivo que passam a considerar o que é encontrado no Novo Testamento mais uma vergonha do que uma inspiração a questão é se eles ainda podem ser reconhecidos como cristão.” — James Denney. The Christian Doctrine of Reconciliation, pp. 26-27.

O primitivismo é uma doutrina, atitude e ideal encontrado entre alguns grupos cristãos que veem na Igreja do Novo Testamento um parâmetro para ser seguido. Assim, doutrinas, regras de convívio, práticas de culto, organização de seus crentes, rejeição de “novidades” formam um conjunto de traços valorizados pelas comunidades primitivistas como replicando a primitiva igreja dos apóstolos.

O historiador Grant Wacker nota no primitivismo um anseio por pureza em doutrina, nas origens e no cumprimento de um mandado divino — tudo intocado pelas limitações e corrupções da existência ordinária.

Frequentemente o primitivismo demanda uma teologia da história para explicar sua própria existência. Nessa teologia há três tipos de narrativas. A primeira é a da fundação independente quando alguém ou um grupo honesto e cândido redescobre a eclesiologia dos cristãos primitivos, sem intermediários denominacionais ou de ruditos, pela leitura pura da Bíblia. A segunda narrativa é a da sucessão marginal, pelo qual o grupo reivindica uma “história alternativa” de sucessão de grupos (montanistas, donatistas, paulicianos, valdenses e anabatistas são alguns favoritos), cuja ligação entre si e suas histórias são mal atestadas por serem grupos subalternos e perseguidos. Por fim, há a teologia restauracionista, no qual considera que em alguma fase histórica o cristianismo desviou-se totalmente e extinguindo-se, carecendo uma renovada dispensação ou revelação que restaurassem doutrinas, práticas ou eclesiologia do cristianismo autênticas do Novo Testamento.

Ordens medicantes medievais, o movimento joaquimita, os anabatistas (e a Reforma em geral por sua busca ad fontes de voltar aos princípios do cristianismo), os pietistas radicais (morávios, dunkers, metodistas primitivos), os batistas primitivos, o movimento de restauração (Igrejas de Cristo e Discípulos de Cristo), o movimento dos Irmãos (de Plymouth ou Casa de Oração), muitos grupos pentecostais e cristianismo indígenas esposam alguma forma de primitivismo.

A exclusão social e sua atração por classes populares fazem com que adeptos do primitivismo vivam em tensão com instituições da sociedade dominantes. Assim, muitos grupos rejeitam algumas profissões e educação avançada que os ponha em contato próximo com o mundo secular. Casamentos tendem a ser endogâmicos. O isolamento denominacional leva a não compartilhar o púlpito com ministros não filiados. Nesse ambiente, muitos desenvolvem uma mentalidade exclusivista de ser o melhor e o único representante fiel do cristianismo do Novo Testamento com base em seletos pontos de identidade do grupo.

Muitas críticas há em relação ao primitivismo. A imaginação idealizada sobre os primeiros cristãos leva a desconsiderar os problemas da Igreja primitiva. Faccionalismo, heresias e controvérsias são registrados no Novo Testamento. Adicionalmente, grupos primitivistas fazem uma leitura arbitrária das Escrituras para selecionar quais traços serem critérios de validade e comunhão. A atualização e contextualização de práticas e doutrinas do século I para os tempos atuais também é seletiva. Por fim, a doutrina de Cristo e dos apóstolos preemptoriamente rejeita a comunhão de salvação com Deus com base em associação com um grupo, atitude comum em vários grupos insulares em nome de um primitivismo.

Com suas doutrinas, história e práticas próprias, o primitivismo deve ser reconhecido como uma legítima expressão da cristandade. Sua atitude anti-estabelecimento possibilita o exercício ativo do ministério e missão por segmentos diversos da população. O desejo honesto de moldar-se conforme os parâmetros bíblicos de vida em Igreja é um alerta contra a adição e supressão de elementos do cristianismo para se conformar detrimentalmente às exigências políticas e culturais dominantes nas sociedades locais.

BIBLIOGRAFIA
Cameron, Euan. “Primitivism, Patristics and Polemic in Protestant Visions of Early Christianity.” Em Van Liere, Katherine, Simon Ditchfield, and Howard Louthan, eds. Sacred history: uses of the Christian past in the Renaissance world. Oxford University Press on Demand, 2012.

Hughes, Richard Thomas, ed. The American quest for the primitive church. University of Illinois Press, 1988.

Fideo-simbolismo

O fideo-simbolismo foi um movimento teológico originário dentre evangélicos francófonos do século XIX que insistia na fé – na relação com Deus – e diminuía a importância da doutrina. No fideo-simbolismo conhecimento de Deus é algo além da capacidade das fórmulas e expressões humanas apreenderem.

Meio às querelas teológicas entre evangélicos “ortodoxos” e “liberais”, dois professores da Faculdade de Teologia Protestante de Paris: Eugène Ménégoz, da Igreja Luterana, e Auguste Sabatier, da Igreja Reformada elaboraram o fideo-simbolismo como uma terceira via.

Ménégoz argumentava o fideísmo, de que a salvação era uma questão de fé e não de credo. Desse modo, os credos resultavam da experiência e do pensamento circunscritos a um período histórico, permanecendo sempre abertos a críticas e revisões. Proposições doutrinárias não afetam a essência ou o cerne da fé cristã.

Auguste Sabatier propôs simbolismo crítico influenciado por Kant, conciliando fé, ciência, história, psicologia, um cristianismo ativo e liberdade de pensamento. Argumentava que o conhecimento teológico é de natureza simbólica, pois Deus permanece além de nossas idéias, nossas imagens e nossas proposiçõs. Por essa razão, a mente humana é receptiva a questões espirituais e inexprimíveis. Doutrina e dogmas são relativos à evolução da experiência religiosa básica nutrida pela Bíblia e fundamentada em Cristo.

Os crentes deveriam ser unidos pela fé, na relação do ser humano com Deus. Rejeitava a uma religião fundada em uma autoridade (quer a do clero, quer de dogmas — mesmo considerar o texto bíblico como fonte de autoriadde) em benefício de uma religião intelectualizada resultante na experiência espiritual.

Como movimento, ganhou adesão das classes média e alta protestantes francesas. Sendo um movimento mais intelectual, foi substituído por outras correntes de pensamento ao longo do século XX.

Pneumatologia

Pneumatologia é o ramo da teologia sistemática que se concentra no estudo do Espírito Santo.

Alguns dos tópicos estudados em pneumatologia incluem:

  • A pessoalidade e o caráter do Espírito Santo.
  • O papel do Espírito Santo na criação e na redenção.
  • Os dons e o fruto do Espírito Santo.
  • A relação entre o Espírito Santo e o Pai e o Filho.
  • A obra do Espírito Santo na Igreja e no mundo.


Diferentes tradições e sistemas teológicos possuem ênfases pneumatológicas distintas. Enquanto a pneumatologia tende a ser secundária no protestantismo magistral, é saliente na teologia ortodoxa e pentecostal. A pneumatologia ortodoxa oriental enfatiza o papel do Espírito Santo na Igreja, particularmente nos sacramentos e na vida dos crentes. A pneumatologia pentecostal enfatiza a importância do Espírito Santo nas experiências pessoais de dons e manifestações espirituais, como falar em línguas e profetizar.

Espírito Santo

O Espírito Santo a revelação — ainda que elusiva — da presença de Deus no mundo e entre os seguidores de Deus. Nas Escrituras Hebraicas o Espírito Santo aparece como agente na criação (Gn 1:2; Sl 33:6; Ez 37:1-10); atua como fonte de inspiração e poder entre várias pessoas em Israel; e permanece como presença de Deus entre o povo ( Ez 11:14-21). No Novo Testamento é o Espírito de Deus que reveste de poder a Jesus como o Messias (Mt 3:13-17; Mt 12:28) e capacita a igreja para sua missão (Atos 2).

Na concepção cristã o Espírito Santo é uma Pessoa, no sentido de que possui vontade, inteligência e manifestação distintas. Assim, não se trata uma força ou energia, mas uma Pessoa (em grego hipóstase, não confundir Pessoa com indivíduo ou com o sentido popular dessa palavra em português) da Divindade Triúna,

O judaísmo rabínico identificou o Espírito Santo (hebraico Ruach ha-Kodesh) com a personificação da Glória de Deus (hebraico Shekinah) manifestada em 1 Sm 10:5-6, Is 6:1, Jr 14:21, Ez  8:4, Lc  2:9, Jo 17:22. Igualmente, tradições tardias identificaram a Sabedoria de Deus (em grego Sophia) (Pv  1:20–33; 8:1—9:12; 3:19; cf. Mt 11:19) com o Espírito Santo.

O Espírito Santo é criador (Gn 1:2; Jó 26:12-13; 33:4; S 104:27-31). Concede poder e inspira (Gn 41:38-39, Êx 28:3; 35:31; Dt 34:9, Jz  14:6, 19; 15:14-15; Is 61:1; Ez  2:1-2; Mq 3:8; Zc 7:12) e revela (1 Co 2:10). É onipresente (Sl 139:7-10). Assim, sendo igual e consubstancial com o Pai e o Filho, o Espírito Santo exerce poder, riquezas, sabedoria, força, honra, glória, e digno de receber ações de graças (cf. com os atributos ao Cordeiro de Deus em Ap 5:12).

Nomes, títulos e ação

Nas Escrituras o Espírito Santo não possui um nome próprio, por essa razão é referido por várias designações. Esses nomes remetem às ações, atributos, manifestações e propósitos do Espírito Santo.

  • Espírito Santo: Sl 51:11; Lc 11:13; Ef 1:13; 4:30. O vento, fôlego ou sopro – em latim Spiritus e em grego Pneumos – dão uma ideia que remete aos ventos que entre os povos do deserto significava a vida ou a morte: traziam a água ou destruíam tudo nas tempestades de areia quente como o vento simum (cf. Is 40:7, Sl 103-15-18, Jr 4:11, Os 6:3). Com um vento abriu o Mar Vermelho (Êx 14:21). Como fôlego, Deus dá o sopro da vida (Gn 2:7, Ez 37:9-10).
  • Os Sete Espíritos de Deus: Em Ap 1:4 o Espírito Santo é referido como os Sete Espírito de Deus, cujas designações aparecem em Is 11:2 “E repousará sobre ele o Espírito do Senhor, e o Espírito de sabedoria e de inteligência, e o Espírito de conselho e de fortaleza, e o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor”.
  • Paracleto ou Paráclito: traduzido como Consolador (Jo 14:15-26; 15:26; 16:7) ou Advogado (1 Jo 2:1).
  • A inspiração do Todo-Poderoso: Jó 33:4.
  • A virtude do Altíssimo: Lc 1:35.
  • Espírito da glória de Deus: 1 Pe 4:14.
  • Espírito da graça: Zc 12:10; Hb 10:29.
  • Espírito da verdade: Jo 14:17; 15:26.
  • Espírito de adoção: Rm 8:15.
  • Espírito de ardor: Is 4:4.
  • Espírito de Cristo: Rm 8:9; 1 Pe 1:11.
  • Espírito de Deus: Gn 1:2; 1 Co 2:11; Jó 33:4.
  • Espírito de juízo, de justiça: Is 4:4; 28:6.
  • Espírito de profecia: Ap 19:10.
  • Espírito de sabedoria e de revelação: Is 11:2; Ef 1:17.
  • Espírito de santidade: Rm 1:4.
  • Espírito de vida: Rm 8:2; Ap 11:11.
  • Espírito do Filho: Gl 4:6.
  • Espírito do Pai: Mt 10:20.
  • Espírito do Senhor: Is 61:1, Is 11:2; At 5: 9.
  • Espírito Eterno: Hb 9:14.
  • Espírito voluntário: Sl 51:12.
  • O Bom Espírito: Ne 9:20; Sl 143:10.
  • O Espírito: Mt 4:1; Jo 3: 6; 1 Tm 4: 1.