Ex perspectiva Dei et hominis

A distinção entre “ex perspectiva Dei” e “ex perspectiva hominis” representa um binômio fundamental na teologia e na filosofia da religião, abordando questões relacionadas à soberania divina, à providência e à liberdade humana. A primeira expressão refere-se à visão de Deus, absoluta e eterna, enquanto a segunda diz respeito à experiência humana, finita e contingente.

No contexto da teologia sistemática, “ex perspectiva Dei” assume a prerrogativa de um conhecimento absoluto e atemporal, fundamentado na onisciência e onipotência divinas. A tradição agostiniana e reformada enfatiza que Deus não apenas conhece todas as coisas, mas também decreta soberanamente tudo o que ocorre. Essa perspectiva se baseia na noção de eternidade divina, na qual passado, presente e futuro são simultaneamente acessíveis a Deus. Consequentemente, a providência divina não apenas antecipa, mas também ordena os eventos históricos e individuais de maneira infalível.

Por outro lado, “ex perspectiva hominis” parte da experiência subjetiva da realidade, marcada pela contingência, limitação cognitiva e subjetividade moral. O ser humano percebe a si mesmo como agente moral livre, dotado de responsabilidade e capacidade de escolha. Esta perspectiva encontra respaldo na teologia arminiana e na filosofia existencialista cristã, que valorizam a autodeterminação humana e a responsabilidade moral como elementos essenciais da relação com Deus. Dessa forma, a liberdade humana não é uma mera ilusão, mas uma dimensão real da experiência e da relação do homem com o divino.

O desafio teológico reside na conciliação dessas duas perspectivas sem incorrer em um determinismo absoluto ou em um indeterminismo radical. A tradição compatibilista busca uma síntese entre a soberania divina e a liberdade humana, propondo que a vontade humana, embora real, opera dentro dos desígnios divinos sem que isso implique uma coerção absoluta. Essa visão encontra eco na filosofia tomista, que distingue entre causalidade primeira (Deus como causa suprema) e causalidade segunda (o homem como agente real, mas subordinado à ordem divina).

A aplicação dessa dicotomia é vasta e toca em temas fundamentais como o problema do mal, a relação entre graça e mérito, e a interpretação da história sob uma perspectiva teológica. A teologia bíblica, por exemplo, frequentemente oscila entre essas duas perspectivas, como visto nos livros sapienciais e nos escritos paulinos, onde se encontram afirmações tanto sobre a soberania de Deus quanto sobre a responsabilidade moral humana.

O modelo compatibilista reconhece a validade de ambas as perspectivas e propõe um diálogo fecundo entre elas. A compreensão teológica da relação entre Deus e o homem não se reduz a um determinismo divino excludente, nem a um livre-arbítrio absoluto, mas se situa em um horizonte dialético, onde a providência divina e a liberdade humana coexistem de maneira misteriosa e complementar. Assim, “ex perspectiva Dei” e “ex perspectiva hominis” não são visões excludentes, mas dois aspectos de uma mesma realidade teológica, cuja conciliação permanece como um dos desafios centrais do pensamento cristão.

BIBLIOGRAFIA

Agostinho. De libero arbitrio.

Agostinho. De gratia Christi et de peccato originali.

Agostinho. De praedestinatione sanctorum.

Pecado Original

A doutrina do pecado original, na teologia cristã agostiniana, afirma que a transgressão de Adão e Eva no Éden deixou uma marca indelével herdada na humanidade. Todos herdam uma natureza pecaminosa, inclinada ao mal, e a culpa da desobediência original, sendo essa natureza transmitida por ato sexual (seminalismo de Agostinho) ou por consequência legal (Grócio).

O pecado original, presente desde o nascimento, corrompe a vontade humana e impede a busca natural pelo bem. A concupiscência, o desejo desordenado, é uma manifestação dessa natureza decaída. O pecado original separa a humanidade de Deus e torna necessária a graça divina para a salvação. Essa doutrina influenciou o batismo infantil e gerou debates sobre graça e livre-arbítrio. No entanto, críticas apontam para a inconsistência da culpa herdada com a responsabilidade individual.

Agostinianismo

Agostinianismo ou agostinismo é um sistema teológico iniciado pelo bispo e filósofo norte-africano Agostinho de Hipona (354– 430 d.C.). Depois foi desenvolvido por outros pensadores, afetando profundamente as doutrinas do cristianismo ocidental e a interpretação da Bíblia no Ocidente.

Entre as obras mais importantes de Agostinho estão A Cidade de Deus, Sobre a Doutrina Cristã, Sobre a Trindade, Manual sobre fé, esperança e caridade, Contra os Acadêmicos e suas famosas Confissões.

Dentre as influências recebidas por Agostinho incluem o neoplatonismo, o estoicismo, a retórica e cultura jurídica romana. Seu embate com o maniqueísmo e com os adeptos de Pelágio refinaram seu pensamento. Os anos finais e decadentes do Império Romano do Ocidente também refletem em sua filosofia de história.

DOUTRINA

Doutrina central do agostinianismo é que a natureza do ser humano foi corrompida pela culpa do pecado original, mas quando se crê em Cristo mediante o Evangelho, o ser humano torna-se partícipe de sua Igreja, a qual porta a revelação divina através da história, e pela luz do Espírito Santo (o vínculo do amor de Deus) compreende essa revelação. 

Sumário extendido:

  • Deus ordenou desde a eternidade todas as coisas que deveriam acontecer com vistas à manifestação de sua glória;
  • Deus criou o homem puro e santo, com liberdade de escolha;
  • Neste plano, Adão foi testado, desobedeceu, perdeu sua liberdade e tornou-se escravo do pecado;
  • Toda a humanidade caiu com Adão e é justamente condenada nele à morte eterna, o que é chamado de pecado original;
  • O pecado original causou uma desordem do Eu de tal forma que a razão, a vontade e o desejo não são mais corretamente subordinados um ao outro, tampouco a Deus.
  • Deus, em sua presciência, enviou Cristo para a redenção e oferecer a vida eterna;
  • Cristo, nascido de Maria virgem, não possuía pecado. (Agostinho era adepto do seminalismo e acreditava que as mulheres eram somente um vaso, com o ser humano formando-se a partir do sêmen paterno. Portanto, Cristo não portaria ao pecado original);
  • Mas Deus, em sua misericórdia soberana, elegeu parte dessa massa corrupta para a vida eterna, sem qualquer consideração de mérito, ao que chama graça;
  • Pela graça os eleitos são convertidos, justificados, santificados e aperfeiçoados;
  • Os eleitos formam uma Igreja invisível conhecida somente por Deus;
  • A Igreja visível tem um papel importante na comunicação da graça, especialmente por meio dos sacramentos;
  • Somente pela iluminação divina seria possível compreender as coisas de Deus;
  • O Espírito Santo tem papel indispensável na compreensão das coisas de Deus bem como mover para praticar obras de justiça;
  • O Espírito Santo é o vínculo de amor entre Deus Pai e o Deus Filho. Por ser amor, o Espírito Santo dá a graça de alinhar a razão, a vontade e o desejo para o amor a Deus e ao próximo. Desse modo, todo bem vem de Deus.
  • Enquanto o conselho de Deus é inescrutável, porém justo, o resto da humanidade fica no estado de condenação.
  • Assim, no castigo eterno dos ímpios revela-se a glória de sua justiça.
  • A teodiceia agostiniana busca reconciliar a existência do mal com Deus onipotente e onibenevolente, localizando-se o mal na ausência de Deus.

LEGADO

O agostinianismo praticamente não impactou o cristianismo oriental. Adicionalmente, passou por críticas de vários outros teólogos da tradição cristã ocidental.

O agostinianismo extrapola os confins da teologia e tem ramificações na filosofia. Outros pensadores nessa tradição incluem Boécio, Gregório Magno, Anselmo de Cantuária, Boaventura, Lutero, Calvino, René Descartes, Cornélio Jansênio e Pascal.

Dentre os subsistemas e sistemas teológicos derivados ou baseados no agostinianismo se destacam o sistema penal-sacramental católico romano, a soteriologia forense, o luteranismo, os sistemas reformados e o jansenismo.

BIBLIOGRAFIA

Geerlof, Derek M. “Augustine and Pentecostals: Building a Hermeneutical Bridge between Past and Present Experience in the Psalms.” Pneuma 37.2 (2015): 262-280.

Teologia da cruz

Uma tendência teológica luterana que considera que Deus foi primordialmente revelado em sua fraqueza, derrota na cruz e impotência, ao invés de se revelar em sua glória e poder.

Chamada em latim Theologia Crucis, alemão Kreuzestheologie e estaurologia, foi um aspecto da teologia de Martinho Lutero fundada no agostinianismo que ganhou um renovado interesse — não sem polêmicas — no final do século XX.

Por contrastar-se com a “teologia da glória” — aquela fundamentada em atributos divinos de poder, majestade e soberania — a teologia da cruz enfatiza as ações de humilhação divina compartilhadas pela humanidade.