A Bíblia, como escritura sagrada para cristãos, ocupa um lugar central na fé e na prática. No entanto, a questão da autoridade bíblica – ou seja, a natureza e o alcance de sua influência – é um tema complexo e multifacetado, com diversas perspectivas teológicas e abordagens interpretativas.
Assim como Cristo é plenamente divino e humano, a Escritura também reflete essa dualidade. A Bíblia, em sua composição, transmissão e recepção ocorre inserida em um contexto cultural. Portanto, incorpora elementos históricos e literários de seu tempo, sem comprometer sua autoridade divina. Há também destaca a diversidade teológica presente nos textos bíblicos, de modo que essa pluralidade não é uma fraqueza, mas uma riqueza que aponta para Cristo como o centro unificador da revelação.
Historicamente, a autoridade da Bíblia tem sido fundamentada na crença em sua inspiração divina. Dois trechos bíblicos, 2 Timóteo 3:16 e 2 Pedro 1:20-21, são frequentemente citados como base para essa doutrina. O primeiro presume que “toda a Escritura inspirada por Deus”, enquanto o segundo destaca o papel do Espírito Santo na inspiração dos profetas. No entanto, a interpretação desses textos e a compreensão da própria inspiração variam entre diferentes tradições teológicas.
No século XIX, teólogos como Louis Gaussen e Benjamin B. Warfield, em resposta ao racionalismo, defenderam a doutrina da inspiração verbal plenária, que afirma a inspiração de cada palavra da Bíblia. Gaussen argumentava que os autores humanos eram meros instrumentos de Deus, enquanto Warfield, adotando uma perspectiva mais matizada, reconhecia o papel da personalidade e do contexto histórico dos autores.
Abordagens mais recentes à autoridade bíblica buscam integrar as dimensões divinas e humanas da Escritura. Nessas abordagens, a autoridade da Escritura não é um atributo estático, mas uma realidade dinâmica inserida no processo contínuo da revelação e da economia da salvação.
Telford Work, em Living and Active, enfatiza uma compreensão trinitária da Bíblia, argumentando que esta não apenas comunica, mas participa da economia de salvação. Work propõe que a Escritura reflete o caráter de Deus e desempenha um papel ativo na história redentora, atuando como mediadora do propósito divino. Work desloca o foco para a função da Bíblia na vida e na missão da Igreja. Essa visão destaca a interação entre a Escritura e a comunidade de fé, onde a autoridade bíblica é vivenciada como um elemento constitutivo da identidade e prática cristã.
Timothy Ward, em Words of Life, reforça a ideia de que a autoridade bíblica está intrinsecamente ligada à sua relação com o Deus trino. Sublinha que a Escritura é viva e ativa, permitindo um encontro direto entre Deus e o leitor. A autoridade da Bíblia está enraizada em sua capacidade de moldar a vida cristã e sustentar o relacionamento de aliança entre Deus e seu povo. Sua abordagem destaca a dimensão prática da autoridade bíblica, especialmente no contexto da pregação e do discipulado.
John Goldingay adota uma abordagem relacional e contextual da autoridade bíblica, considerando-a derivada de sua conexão com Deus e o evangelho. Sua autoridade parte de uma compreensão flexível que respeita a diversidade dos gêneros literários presentes. Portanto, reconhecer tanto a coerência teológica quanto a diversidade do texto, permite que a autoridade das Escrituras esteja vinculada à sua capacidade de testemunhar a revelação divina em um contexto histórico específico.
O teólogo evangélico e bibliólogo Donald Bloesch apresenta uma visão que equilibra os aspectos divinos e humanos da Bíblia. A Escritura é um produto da inspiração divina e da composição humana, possuíndo suas limitações históricas e literárias sem negar sua veracidade teológica. Bloesch prefere falar em “verdade” ou “veracidade” da Escritura, em vez de inerrância, e propõe uma hermenêutica realista que combina fidelidade ao texto com uma leitura crítica e contextual. Para Bloesch, a autoridade da Bíblia reside em sua capacidade de comunicar a revelação divina de maneira que transforma vidas e sustenta a fé.
Essas perspectivas convergem em enfatizar que a autoridade bíblica está profundamente enraizada na relação entre Deus e seu povo. A Escritura é vista não apenas como um registro da revelação, mas como um meio pelo qual Deus continua a agir e a comunicar sua vontade. A autoridade da Bíblia reflete relevância para a vida cristã, sua conexão com a tradição eclesiástica e sua inserção na história redentora. Assim, a autoridade da Bíblia é compreendida como dinâmica e viva, refletindo o caráter do Deus trino e convidando os fiéis a participar de sua missão de reconciliação e renovação do mundo.
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