Teologia de Mercersburg foi uma corrente teológica da Igreja Reformada Alemã, o equivalente reformado à tendência “High Church” do anglicanismo, com ênfases na restauração litúrgica e sacramental, bem como uma cristologia realista na Igreja.
HISTÓRIA
O nome remete a uma pequena cidade na Pensilvânia onde havia um seminário reformado alemão e o Marshall College. O movimento foi particularmente ativo entre 1836 e 1860, mas sua origem remonta à vinda da Alemanha do teólogo Frederick Rauch (1806-1841). Em 1839 foi organizada a Sociedade para a Promoção da União Cristã, tendo como vice-presidente Rauch.
Outros docentes do seminário, John Williamson Nevin (1803-1886), Philip Schaff (1819-1893) e Emanuel Vogel Gerhart (1817-1904) foram os líderes do movimento, o qual ganhou destaque com a publicação de The Anxious Bench (1843), de Nevin, que atacou os métodos os avivalistas. No ano seguinte, Schaff deu uma palestra sobre os princípios do protestantismo e criticou o mentalismo — a adesão intelectual a uma suposta ortodoxia — esposada pelos puritanos e em sua época pelos princetonianos.
A escola de Mercersburg buscou na patrística e nos reformadores reafirmar uma ortodoxia que fosse evangélica e católica. Propunham uma adesão ao catecismo de Heidelberg sem as interpretações puritanas ou do calvinismo avivalista edwardiano. Por esse motivo, consideravam a expiação como realizada pela pessoa de Cristo e não limitada à sua morte. Assim, os cristãos estão unidos ontologicamente não apenas com Jesus, mas um com os outros — visivelmente na Igreja.
Schaff, um meticuloso historiador da Igreja, instia em analizar o desenvolvimento doutrinário dentro de seus contextos históricos. Para tal, escreveu várias obras de ampla recepção, inclusive sobre a história dos credos e confissões cristãs.
Charles Hodge e a chamada Escola de Princeton fizeram frente à teologia de Mercersburg. O uso de tipologias (“cristianismo petrino”, “cristianismo joanino” e “cristianismo paulino”) dentro de um arcaboço hegeliano e a contextualização histórica das doutrinas cristãs fizeram que Hodge e os princetonianos desconfiassem da teologia de Mercersburg como se fosse mais uma vertente do racionalismo alemão. Também consideravam essa escola muito aberta às diversas denominações sem se firmaram em absolutas proposições doutrinárias. Por fim, o sensos comum realista e uma visão positivista da teologia pelos princetonianos chocava-se com a contextualização histórica do dogma pelos teólogos de Mercersburg.
TEOLOGIA
A teologia de Mercersburg é sobretudo cristológica e, especificamente, encarnacional. Um sumário dela é apresentado por G. W. Richards:
Na encarnação, o Filho de Deus assumiu a caída humana natureza, santificando-a assim em união real, orgânica e eterna com Ele próprio. A natureza humana, criada n’Ele, é o meio e a forma da revelação de Deus, de sua vontade e de todos os atos de Cristo, que, seguindo uns aos outros segundo a lei da ordem natural do ser, constituem as objetivas realidades ou fundamento da salvação cristã. A glorificada humanidade de Cristo continua a ser o único meio de comunicação graciosa de Deus para a humanidade, e de toda aproximação real do homem a Deus, e comunhão com Ele.
Richards (1940, 48).
O relacionamento salvítico com Cristo ocorre pela identidade da pessoa com a igreja de Cristo. Essa posição constratava tanto com os avivalistas quanto com o conversionismo individualista americano que ensinavam que a obra de salvação seria para o indivíduo e não para a Igreja.
A obra expiatória seria mais na plenitude da vida de Cristo. Essa soteriologia encarnacional reformada alemã de Mercerburg contrastava com os modelos puritanos, edwardianos, avivalistas e princetonianos de uma expiação centrada somente na morte de Cristo.
Em Cristo todos os homens são regenerados e unidos como membros de seu corpo, o organismo espiritual, que é a Igreja. A Igreja estende por todas as épocas e inclui todos os povos. Por isso, nenhuma fórmula doutrinária ou estrutura organizacional pode ser final. Assim, a Igreja deve modificar seus ensinamentos de acordo com seu conhecimento progressivo da verdade.
Consideravam a Igreja como uma instituição divina em oposição a uma meramente humana associação de crentes. Também enfatizavam a realidade universal (a catolicidade) da Igreja em oposição à orientação sectária e denominacional.
A vida em Cristo seria somente possível com integral comunhão da Palavra e o sacramento, administrados sob a autoridade da Igreja. Por isso, rejeitavam a premissa de “a Bíblia mais o julgamento privado” do individualismo evangélico e do realismo do senso comum da Escola de Princeton, os quais colocavam a razão individual ao patamar de avaliador da verdade. Para a escola de Mercersburgo a história da Igreja bem como os ensinamentos e sacramentos por ela administrados deveriam guiar a compreensão da fé ensinada pelas Escrituras. Esses critérios resultam da obra de Cristo presente da Igreja pelo Espírito Santo.
LEGADO
A teologia de Mercersburg fez do idealismo alemão e do hegelianismo um dinamismo realista que considerava a harmonia do crente com a Igreja e com Cristo. Essa oposição romântica ao individualismo gerou reações tanto dos avivalistas quanto do senso comum realista de Princeton. Embora nunca numericamente relevante, o legado de Mercersburg sobrevive no ecumenismo, na paleo-ortodoxia e na revalorização litúrgica.
No começo do século XX, a teologia de Mercesburg foi substituída em círculos reformados teuto-americanos pela neo-ortodoxia. Ainda assim, subsiste em um legado denominacional na Igreja Metodista Unida e na Igreja Unida de Cristo. Institucionalmente, a Merscersburg Society publica The New Mercersburg Review e realiza eventos regulares sobre essa teologia. Em 2012, Wipf e Stock começou a publicar a The Mercersburg Theology Study Series.
Em comum com o pentecostalismo, a teologia Reformada de Mercersburg possui uma interpretação da Ceia do Senhor em tensão entre o memorialismo e alguma forma de presença real.
Dada a importância dada à história da Igreja, a historiografia e a produção literalmente enciclopédica de Schaff também são legados ainda duradouros.
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