Roland de Pury

Roland de Pury (1907-1979) foi um teólogo protestante suíço, cuja vida e obra enfocavam a fé cristã e a justiça social.

Sua trajetória teológica foi marcada por uma intensa busca por uma compreensão autêntica do Evangelho, livre das amarras das ortodoxias tradicionais e das ideologias seculares.

De Pury defendeu uma teologia da encarnação que enfatizava a presença real de Cristo no mundo e a necessidade de os cristãos se engajarem nas lutas por justiça e libertação. Criticava a separação entre fé e vida, entre o sagrado e o secular, argumentando que o Evangelho deveria permear todas as dimensões da existência humana.

Sua teologia social, inspirada no profetismo bíblico, o levou a se envolver ativamente em questões como a luta contra o racismo, a defesa dos direitos dos trabalhadores e a promoção da paz. Via a Igreja como uma comunidade de serviço ao mundo, chamada a ser sinal e instrumento do Reino de Deus.

Encarnação

A encarnação é uma doutrina central do cristianismo que afirma que Deus se tornou carne, assumindo a natureza humana na pessoa de Jesus Cristo. Este princípio fundamental sustenta que Jesus é totalmente divino e totalmente humano, uma união conhecida como união hipostática.

A doutrina da encarnação proclama que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (João 1:14). Esse ensinamento enfatiza que o Verbo eterno de Deus, a segunda pessoa da Trindade, tomou forma humana, habitando verdadeiramente entre os homens na pessoa de Jesus de Nazaré, e não de forma metafórica. A união hipostática descreve a união única das naturezas divina e humana em Jesus Cristo. Essa união, no entanto, não mistura nem diminui as duas naturezas; ambas permanecem distintas, mas inseparáveis. Cristo não é parcialmente Deus e parcialmente humano, mas plenamente ambos.

A encarnação tem múltiplos propósitos na teologia cristã. A encarnação é um meio de revelação: ao se tornar humano, Deus se revela de forma tangível e acessível. A vida, os ensinamentos, a morte e a ressurreição de Jesus oferecem a revelação suprema do caráter e dos propósitos de Deus. Ademais, a encarnação é essencial para a redenção humana, pois, ao se tornar humano, Cristo pôde identificar-se com a humanidade, vencer o pecado e a morte. A encarnação também promove a reconciliação, pois preenche a lacuna entre Deus e a humanidade causada pelo pecado, sendo o primeiro passo para restaurar o relacionamento rompido. Além disso, a vida de Jesus como ser humano oferece o exemplo perfeito de como viver em obediência a Deus.

Além de João 1:14, diversos outros trechos bíblicos fundamentam a doutrina da encarnação. Referente à kenosis, Filipenses 2:5-11 descreve o “esvaziamento” de Cristo, que assumiu a forma de servo e foi obediente até a morte. Colossenses 1:15-20 apresenta Cristo como a imagem do Deus invisível, em quem toda a plenitude de Deus habita. A encarnação permitiu que Cristo torna-se o representante da humanidade diante de Deus, como em Hebreus 2:14-18 ocorre a identificação de Cristo com a humanidade, tornando-se um sumo sacerdote misericordioso e fiel.

De acordo com a Bíblia (João 1:14, Colossenses 1:19-20, Hebreus 2:17-18, Filipenses 2:5-8, 1 João 3:8, Lucas 2:10-11, João 3:16, Lucas 2:13-14), o nascimento de Cristo faz parte da reconciliação da humanidade com Deus. Quando Deus assumiu forma humana em Jesus, Ele preencheu o abismo que separava a humanidade do divino. A encarnação é um ato de amor e humildade para restaurar nosso relacionamento com Ele.

Nenhum ato isolado de Cristo proporcionou a expiação. A obra de reconciliação envolve sua encarnação, ensinamentos, obras maravilhosas de serviço, vida exemplar, morte, vitória sobre a morte na ressurreição e ascensão.

O nascimento de Jesus marca um novo começo, um recomeço para a humanidade sobrecarregada pelo pecado. Por meio de Sua vida, morte e ressurreição, Jesus abriu o caminho para o perdão e a reconciliação, permitindo-nos experimentar paz e plenitude com Deus. O nascimento de Cristo inicia o caminho para a redenção e para um relacionamento restaurado com nosso Criador.

A heresia que nega algum dos aspectos da encarnação é chamada de docetismo.

BIBLIOGRAFIA

Atanásio. Sobre a encarnação do Verbo.

Feldmeier, Reinhard, and Hermann Spieckermann. God Becoming Human : Incarnation in the Christian Bible. Baylor University Press, 2021.

Long, Phillip J. “Gary A. Anderson, That I May Dwell Among Them: Incarnation and Atonement in the Tabernacle Narrative.” Reading Acts, Newstex, 2024.

McFarland, Ian A. The Word Made Flesh : A Theology of the Incarnation. Westminster John Knox Press, 2019.

Molnar, Paul D., and Farrow, Douglas; Hart, Trevor; Webster, John. “Atonement: Incarnation and Reconciliation Are One in Jesus Christ.” Thomas F. Torrance, Routledge, 2009, pp. 137–86, https://doi.org/10.4324/9781315551050-5.

Noble, Thomas. “Incarnation and Atonement.” T&T Clark Handbook of Thomas F. Torrance, Bloomsbury Publishing Plc, 2020, pp. 173–89, https://doi.org/10.5040/9780567670540.ch-012.

Rea, Michael C. “Part I: Incarnation, Sin, and Atonement.” Essays in Analytic Theology, Oxford University Press, 2021.

Rogers, Katherin A. “The Incarnation and Atonement.” Christianity and Western Theism, vol. 1, Routledge, 2024, pp. 60–74, https://doi.org/10.4324/9781003202080-4.

Sweeney, Douglas A., and Richard J. Mouw. “John Williamson Nevin and the Incarnation of God.” The Suffering and Victorious Christ, Baker Academic, 2013.

Simon, David Worthington. Reconciliation by Incarnation: The Reconciliation of God Amd Man by the Incarnation of the Divine Word. T. & T. Clark, 1898.

Teologia de Mercersburg

Teologia de Mercersburg foi uma corrente teológica da Igreja Reformada Alemã, o equivalente reformado à tendência “High Church” do anglicanismo, com ênfases na restauração litúrgica e sacramental, bem como uma cristologia realista na Igreja.

HISTÓRIA

O nome remete a uma pequena cidade na Pensilvânia onde havia um seminário reformado alemão e o Marshall College. O movimento foi particularmente ativo entre 1836 e 1860, mas sua origem remonta à vinda da Alemanha do teólogo Frederick Rauch (1806-1841). Em 1839 foi organizada a Sociedade para a Promoção da União Cristã, tendo como vice-presidente Rauch.

Outros docentes do seminário, John Williamson Nevin (1803-1886), Philip Schaff (1819-1893) e Emanuel Vogel Gerhart (1817-1904) foram os líderes do movimento, o qual ganhou destaque com a publicação de The Anxious Bench (1843), de Nevin, que atacou os métodos os avivalistas. No ano seguinte, Schaff deu uma palestra sobre os princípios do protestantismo e criticou o mentalismo — a adesão intelectual a uma suposta ortodoxia — esposada pelos puritanos e em sua época pelos princetonianos.

A escola de Mercersburg buscou na patrística e nos reformadores reafirmar uma ortodoxia que fosse evangélica e católica. Propunham uma adesão ao catecismo de Heidelberg sem as interpretações puritanas ou do calvinismo avivalista edwardiano. Por esse motivo, consideravam a expiação como realizada pela pessoa de Cristo e não limitada à sua morte. Assim, os cristãos estão unidos ontologicamente não apenas com Jesus, mas um com os outros — visivelmente na Igreja.

Schaff, um meticuloso historiador da Igreja, instia em analizar o desenvolvimento doutrinário dentro de seus contextos históricos. Para tal, escreveu várias obras de ampla recepção, inclusive sobre a história dos credos e confissões cristãs.

Charles Hodge e a chamada Escola de Princeton fizeram frente à teologia de Mercersburg. O uso de tipologias (“cristianismo petrino”, “cristianismo joanino” e “cristianismo paulino”) dentro de um arcaboço hegeliano e a contextualização histórica das doutrinas cristãs fizeram que Hodge e os princetonianos desconfiassem da teologia de Mercersburg como se fosse mais uma vertente do racionalismo alemão. Também consideravam essa escola muito aberta às diversas denominações sem se firmaram em absolutas proposições doutrinárias. Por fim, o sensos comum realista e uma visão positivista da teologia pelos princetonianos chocava-se com a contextualização histórica do dogma pelos teólogos de Mercersburg.

TEOLOGIA

A teologia de Mercersburg é sobretudo cristológica e, especificamente, encarnacional. Um sumário dela é apresentado por G. W. Richards:

Na encarnação, o Filho de Deus assumiu a caída humana natureza, santificando-a assim em união real, orgânica e eterna com Ele próprio. A natureza humana, criada n’Ele, é o meio e a forma da revelação de Deus, de sua vontade e de todos os atos de Cristo, que, seguindo uns aos outros segundo a lei da ordem natural do ser, constituem as objetivas realidades ou fundamento da salvação cristã. A glorificada humanidade de Cristo continua a ser o único meio de comunicação graciosa de Deus para a humanidade, e de toda aproximação real do homem a Deus, e comunhão com Ele.

Richards (1940, 48).

O relacionamento salvítico com Cristo ocorre pela identidade da pessoa com a igreja de Cristo. Essa posição constratava tanto com os avivalistas quanto com o conversionismo individualista americano que ensinavam que a obra de salvação seria para o indivíduo e não para a Igreja.

A obra expiatória seria mais na plenitude da vida de Cristo. Essa soteriologia encarnacional reformada alemã de Mercerburg contrastava com os modelos puritanos, edwardianos, avivalistas e princetonianos de uma expiação centrada somente na morte de Cristo.

Em Cristo todos os homens são regenerados e unidos como membros de seu corpo, o organismo espiritual, que é a Igreja. A Igreja estende por todas as épocas e inclui todos os povos. Por isso, nenhuma fórmula doutrinária ou estrutura organizacional pode ser final. Assim, a Igreja deve modificar seus ensinamentos de acordo com seu conhecimento progressivo da verdade.

Consideravam a Igreja como uma instituição divina em oposição a uma meramente humana associação de crentes. Também enfatizavam a realidade universal (a catolicidade) da Igreja em oposição à orientação sectária e denominacional.

A vida em Cristo seria somente possível com integral comunhão da Palavra e o sacramento, administrados sob a autoridade da Igreja. Por isso, rejeitavam a premissa de “a Bíblia mais o julgamento privado” do individualismo evangélico e do realismo do senso comum da Escola de Princeton, os quais colocavam a razão individual ao patamar de avaliador da verdade. Para a escola de Mercersburgo a história da Igreja bem como os ensinamentos e sacramentos por ela administrados deveriam guiar a compreensão da fé ensinada pelas Escrituras. Esses critérios resultam da obra de Cristo presente da Igreja pelo Espírito Santo.

LEGADO

A teologia de Mercersburg fez do idealismo alemão e do hegelianismo um dinamismo realista que considerava a harmonia do crente com a Igreja e com Cristo. Essa oposição romântica ao individualismo gerou reações tanto dos avivalistas quanto do senso comum realista de Princeton. Embora nunca numericamente relevante, o legado de Mercersburg sobrevive no ecumenismo, na paleo-ortodoxia e na revalorização litúrgica.

No começo do século XX, a teologia de Mercesburg foi substituída em círculos reformados teuto-americanos pela neo-ortodoxia. Ainda assim, subsiste em um legado denominacional na Igreja Metodista Unida e na Igreja Unida de Cristo. Institucionalmente, a Merscersburg Society publica The New Mercersburg Review e realiza eventos regulares sobre essa teologia. Em 2012, Wipf e Stock começou a publicar a The Mercersburg Theology Study Series.

Em comum com o pentecostalismo, a teologia Reformada de Mercersburg possui uma interpretação da Ceia do Senhor em tensão entre o memorialismo e alguma forma de presença real.

Dada a importância dada à história da Igreja, a historiografia e a produção literalmente enciclopédica de Schaff também são legados ainda duradouros.

BIBLIOGRAFIA

Gerhart, Emanuel Vogel. Institutes of the Christian Religion. Vol. 1. Funk & Wagnalls Company, 1894.

Nevin, John Williamson. The Mystical Presence: A Vindication of the Reformed or Calvinistic Doctrine of the Holy Eucharist. JB Lippincott, 1867.

Nevin, John Williamson. History and genius of the Heidelberg catechism. German Reformed Church, 1847.

Schaff, Philip. The Principle of Protestantism as Related to the Present State of the Church. “Publication Office” of the German Reformed Church, 1845.

Fontes secundárias

Barrett, Lee C. “The Distinctive World of Mercersburg Theology: Yearning for God or Relief From Sin?.” Theology today 71.4 (2015): 381-392.

Barrett, Lee C. “Hans Lassen Martensen and the Mercersburg Theology: The Reinforcement of Christocentric Speculation.” In Transatlantic Religion, pp. 168-190. Brill, 2021.

Borneman, Adam S. Church, Sacrament, and American Democracy: The Social and Political Dimensions of John Williamson Nevin’s Theology of Incarnation. Wipf and Stock Publishers, 2011.

Bradnick, David. “What Has Mercersburg to Do with Azusa?: A Pentecostal Consideration of Nevin and Schaff.” Pneuma 38, no. 4 (2016): 411-35.

DeBie, Linden J. Speculative Theology and Common-Sense Religion: Mercersburg and the Conservative Roots of American Religion. Vol. 92. Wipf and Stock Publishers, 2008.

DiPuccio, William. The Dynamic Realism of Mercersburg theology: The romantic pursuit of the ideal in the actual. Diss. Marquette University, 1994.

Evans, William B. A Companion to the Mercersburg Theology: Evangelical Catholicism in the Mid-nineteenth Century. Vol. 44. Wipf and Stock Publishers, 2019.

Littlejohn, W. Bradford. The Mercersburg Theology and the Quest for Reformed Catholicity. Wipf and Stock Publishers, 2009.

Maxwell, Jack M. Worship and Reformed Theology: The Liturgical Lessons of Mercersburg. Vol. 10. Wipf and Stock Publishers, 1976.

Nichols, James Hastings, ed. The Mercersburg Theology. Wipf and Stock Publishers, 2004.

Nichols, James Hastings. Romanticism in American Theology: Nevin and Schaff at Mercersburg. Wipf and Stock Publishers, 2007.

Richards, George W. “The Mercersburg Theology—Its Purpose and Principles.” Church history 20.3 (1951): 42-55.

Richards, George W. “A Forgotten Theology’. Church History, 9.1 (1940):37-50 . doi:10.2307/3160807 

Yrigoyen, Charles. “Emanuel V. Gerhart: Apologist for the Mercersburg Theology.” Journal of Presbyterian History (1962-1985) 57.4 (1979): 485-500.