A teoria governamental é uma perspectiva para explicar o motivo da morte de Jesus Cristo e seus efeitos na salvação. Essa soteriologia forense foi proposta pelo teólogo e jurista holandês Hugo de Groot (1583 – 1645) (Grotius, Grócio). Na teoria governamental o sacrifício de Jesus ocorreu para que o Pai perdoasse enquanto ainda mantinha seu governo justo sobre o universo.
DOUTRINA DA SUBSTITUIÇÃO DA PENA
Deus como mantenedor da lei na criação é livre para alterá-la ou abrogá-la, mas tem escolhido lidar com sua criação de modo consistente. Como a lei divina determina “a alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18:20) toda a humanidade estaria fadada à condenação. Simplesmente um perdão leniente não poderia satisfatizer essa lei. A morte de Cristo seria um exemplo público da seriedade do pecado e até onde Deus iria para defender a ordem moral do universo. O foco da morte de Cristo seria a defesa da lei divina, sendo a morte de Cristo uma substituição para a penalidade do pecado.
A teoria governamental é vicária, Cristo morreu em favor dos pecadores (Rm 5:8), mas não substitutiva, ou seja, não em lugar dos pecadores. Uma vez paga a penalidade do pecado, Cristo ofereceu o perdão a quem n’Ele cresse. Desse modo, Deus mantém sua lei ao mesmo tempo que, através da morte de Cristo, perdoa os pecados daqueles que se arrependem e têm fé na morte vicária de Cristo.
Os textos centrais dessa teoria são encontrados em Salmo 2, 5; Isaías 42:21.
HISTÓRIA DA RECEPÇÃO DA DOUTRINA GOVERNAMENTAL
Grócio formulou essa doutrina em resposta ao socianismo. Partindo de sua base arminiana, Grócio buscava explicar a necessidade de satisfazer Deus, não como uma honra ferida nos termos de Anselmo, mas em relação à lei divina. Apesar de sua popularidade como teólogo entre os remonstrantes holandeses, essa teoria governamental nunca ganhou muitos adeptos entre os arminianos, que em geral adotam a substituição vicária formulada por John Wesley.
Variações da teoria governamental da expiação foram adotadas tanto em correntes calvinistas e arminianas de língua inglesa. Na Inglaterra, Richard Baxter (1615-1691) e Samuel Clarke (1675-1729) adotaram alguns aspectos dela. Nos Estados Unidos a New Divinity School ou os edwardianos — seguidores do calvinista Jonathan Edwards (1703-1758) — também adotaram versões dela.
Uma formulação dessa doutrina pode ser resumida em um sermão de Edwards:
“Todos os pecados daqueles que verdadeiramente vêm a Deus por misericórdia, estejam eles como queiram, são satisfeitos, se Deus for verdadeiro que nos diz… de modo que Cristo tendo satisfeito totalmente por todos os pecados, ou tendo realizado uma satisfação que é suficiente para todos, agora não é inconsistente com a glória dos atributos divinos perdoar os maiores pecados daqueles que de maneira correta vêm a ele por isso.—Deus pode agora perdoar os maiores pecadores sem qualquer prejuízo à honra de sua santidade. A santidade de Deus não permitirá que ele dê a menor tolerância ao pecado, mas o inclina a dar testemunhos adequados de seu ódio a ele. Mas, tendo Cristo satisfeito [a Deus] pelo pecado, Deus pode agora amar o pecador e não dar nenhuma tolerância ao pecado, por maior pecador que ele possa ter sido. Deus pode, por meio de Cristo, perdoar o maior pecador sem prejuízo da honra de sua majestade. A honra da majestade divina de fato requer satisfação; mas os sofrimentos de Cristo reparam totalmente a ofensa”.
Edwards, Sermon XXV.
Dentre correntes arminianas, suas variantes aparece nas teologias de Charles Grandison Finney (1792-1875), em William Booth e no Exército da Salvação, bem como para o metodista John Miley (1813-1895).
Para Miley a expiação de Cristo é uma satisfação pelos pecados por substituição dos pecadores no sofrimento, mas não uma satisfação na substituição de penalidade. A expiação de Cristo é universal, mas o perdão dos pecados seria condicional à fé.
Uma crítica a essa perspectiva é que não explica o motivo de escolher um justo para demonstrar a vontade de Deus de defender a lei. Por que não colocar para morrer o pior de todos os pecadores? Por que Cristo e não Barrabás?
Há proximidades teológicas discerníveis com a teoria moral de Abelardo. Contudo, é frequentemente confundida com a teoria da substituição penal.
Tanto Grócio quanto Abelardo acreditavam que a expiação era necessária para o perdão dos pecados. Os pecadores precisavam se reconciliar com Deus e que a morte de Jesus Cristo desempenhou um papel crucial nesse processo. Ambas teoria são focadas na misericórdia e amor de Deus. Deus foi misericordioso em fornecer um meio para os pecadores serem perdoados por meio da expiação, satisfazendo condições morais de manter a justiça e a misericórdia.
Há, contudo, diferenças. A teoria governamental continua a tendência anselmiana da necessidade de satisfação. Já a perspectiva de influência moral a demonstração da misericórdia divina inspira o arrependimento, a fé e produz justiça.
Já a visão penal substitutiva sustenta que Cristo recebeu o castigo que a humanidade merecia por seus pecados, satisfazendo a justiça de Deus e reconciliando os pecadores com Deus. Nessa visão, a morte de Cristo foi um sacrifício substitutivo que pagou a pena pelos pecados da humanidade, e aqueles que crêem no sacrifício de Cristo são perdoados e declarados justos diante de Deus.
A visão governamental, por outro lado, sustenta que a morte de Cristo não foi um pagamento pelo pecado, mas sim uma demonstração da justiça de Deus e um meio de sustentar a ordem moral do universo. Nessa visão, a morte de Cristo serve como uma advertência aos pecadores e um meio de demonstrar a misericórdia de Deus. Cristo não morreu recebendo a pena dos pecadores, mas para os pecadores. Assim, aqueles que crêem no sacrifício de Cristo são perdoados e reconciliados com Deus com base em sua fé e arrependimento.
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