Sacrifícios levíticos

O sistema sacrificial insere-se ao tema central do livro de Levítico: efetivar as circunstâncias necessárias para estabelecer e manter a presença de Deus entre os israelitas. Havia dois tipos de ofertas. As ofertas voluntárias eram destinadas a um contínuo culto da presença divina no meio do povo de Israel. Já as ofertas de purificação e reparação no sistema sacrificial levítico remediavam as impurezas rituais físicas que não podiam ser removidas apenas por abluções, bem como violações relativamente menores dos mandamentos divinos.

No sete primeiros capítulos do livro de Levítico, existem cinco tipos de sacrifícios descritos conforme o propósito de suas ofertas.

Cada tipo de sacrifício seguia um processo específico que se correlacionava com sua função distinta. Exceto a oferta de reparação que exigia reparação prévia não sacrificial, um parâmetro repete-se nos sacríficios levíticos: carne queimada ou consumida parcialmente; o sangue passado às pontas do altar. As ofertas não animais de grãos, bebidas e incenso, consequentemente eram sem sangue nem carne.

  1. Olah ou Oferta Queimada (Levítico 1): um sacrifício voluntário que podia ser oferecido em ação de graças, devoção ou expiação por pecado não intencional. Consistia em um animal, como um touro, ovelha ou cabra, que era completamente queimado no altar.
  2. Minḥah ou Oferta de cereais (Levítico 2): uma oferta voluntária de grãos cozidos ou crus, como trigo ou cevada, misturados com óleo e incenso. Era uma parte queimada totalmente e outra parte destinado aos sacerdotes.
  3. Shlmim ou Oferta pacífica (Levítico 3): oferta voluntária que expressava ação de graças ou um voto. Podia ser um touro, ovelha ou cabra e era parcialmente queimado no altar, sendo o resto comido pelos sacerdotes, o ofertante e sua família.
  4. ḥaṭṭat ou Oferta de purificação (Levítico 4:1 – 5:13): oferta obrigatória feita por pecados não intencionais cometidos por indivíduos ou pela comunidade. Podia ser um touro, bode ou cordeiro, e o sangue era aspergido no altar enquanto o animal era queimado fora do arraial.
  5. Asham ou Oferta pela reparação (Levítico 5:14 – 6:7): oferta obrigatória feita por pecados intencionais, como roubo ou fraude. Podia ser um carneiro, cordeiro ou bode, e o sangue era aspergido no altar enquanto o animal era oferecido como sacrifício. Parte era queimada e parte era consumida pelos sacerdotes. O ofensor era obrigado a reparar seus erros.

As ofertas queimada e de purificação são as únicas que constituem holocaustos — sacrifícios queimados totalmente.

Após 30 anos pesquisando Levítico, o biblista Jacob Milgrom renovou o estudo dos sacrifícios levíticos apontando duas coisas. Primeiro, as ofertas serviam ao sistema de pureza para preservar a santidade da vida e, assim, evitar qualquer coisa que simbolizasse a morte. Por fim, o sangue da Oferta de Purificação age como um detergente ritual, limpando o santuário dos erros e impurezas dos israelitas. Milgrom argumentava que a oferta de purificação nunca purificava seu ofertante, mas apenas purificava partes do santuário nas quais o sacerdote aplicava o sangue do sacrifício.

Nem todos os sacrifícios levíticos têm uma função expiatória. Os sacrifícios pacíficos (Lv 3, 7:11–21) não têm função expiatória. A distinção do sacrifício expiatório dava-se pelo acesso ao seu consumo pela classe não sacerdotal ou levítica. Por exemplo, a Páscoa é um tipo de sacrifício de ação de graças porque é comido pela congregação de Israel (cf. Êx 12 com Lv 7:12, 15).

Não há consenso quanto outros sacrifícios (por exemplo, em Gênesis ou no ciclo de Elias) possuírem as mesmas funções e formas que os sacrifícios levíticos. Similares funções ocorrem entre povos do Antigo Oriente Próximo, desde ofertas para “alimentar” os deuses até ofertas expiatórias.

Levítico reflete a doutrina da presença divina, e todo os sistema ritual está relacionado à purificação do povo para garantir a presença de Deus. É perceptível a ausência de oração. A oferta de alimentos (Lv 1-3) é congruente com a teologia do sustento e habitação de Deus. Esse tipo oferta ocorria no Antigo Oriente Próximo como a administração da habitação divina (cf. Nm 28:2, 24; Ezequiel 44:7).

No Novo Testamento, Levítico é interpretado tipologicamente com a obra de Jesus, com ele assumindo diversos papéis. Cristo é referido em 2 Coríntios 5:21 como “pecado”, remetendo à hamartia da Septuaginta para traduzir o hebraico ḥaṭṭat. Em Rm 3:25, Jesus é comparado com o Trono da Misericórdia, diante do qual eram feitas as ofertas.  Os capítulos 7–10 de Hebreus comparam Cristo com o sacerdócio levítico e caracterizam Jesus como o Sumo Sacerdote ideal que realiza o sacrifício final e perfeito, cumprindo e recapitulando Lev 1-7. Por fim, Cristo é representado como o Cordeiro Pascal (Jo 1:29; 1 Co 5:7; Ap 5:6).

ESBOÇO DE LEVÍTICO 1-7

  1. Lv 1:1 – 6:7: As ofertas (A Lei ou instruções para os ofertantes)
    a. (Lv 1) A oferta queimada – oferta voluntária
    b. (Lv 2) A oferta de cereais – dedicação/consagração
    c. (Lv 3) A oferta pacífica —reconciliação e comunhão
    d. (Lv 4:1 – 5:13) A oferta de purificação
    e. (Lv 5:14 – 6:7) A oferta de reparação — arrependimento
  2. Lv 6:8 – 7:38: A Lei para as ofertas (A Lei ou instruções para os sacerdotes)
    a. (LV 6:8-13) A oferta queimada
    b. (Lv 6:14-23) A oferta de cereais
    c. (Lv 6:24-30) A oferta para purificação
    d. (Lv 7:1-10) A oferta de reparação
    e. (Lv 7:11-36) A oferta pacífica
    f. (Lv 7:37-38) Inclusio

BIBLIOGRAFIA

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Gane, Roy E. “Sacrifice and the Old Testament.” In St Andrews Encyclopaedia of Theology, edited by Brendan N. Wolfe et al. University of St Andrews, 2022. https://www.saet.ac.uk/Christianity/SacrificeandtheOldTestament.

Jamieson, Robert Bruce. Purging God’s People and Place: Levitical Sacrifice as a Prolegomenon to Hebrews. 2014. Dissertação (Mestrado). The Southern Baptist Theological Seminary, Louisville, 2014.

Kurtz, Johann Heinrich. Offerings, Sacrifices and Worship in the Old Testament.
Peabody, MA: Hendrickson, 1998.

Langdon, Stephen. “A Ritual Of Atonement for a Babylonian King.” The Museum Journal VIII, no. 1 (March, 1917): 39-44.

Levine, Baruch A. Leviticus. JPS Torah Commentary. Philadelphia: Jewish Publication Society, 1989.

Marx, Alfred. ‘The Theology of the Sacrifice According to Leviticus 1-7’. In The Book of Leviticus: Composition and Reception, 103-120. Rolf Rendtorff and Robert A. Kugler (eds.). Atlanta: SBL, 2003.

Milgrom, Jacob. Leviticus: A Book of Ritual and Ethics. Continental Commentaries. Minneapolis: Fortress, 2004.

Milgrom, Jacob. Leviticus 1-16: A New Translation with Introduction and Commentary. Anchor Bible 3. New York: Doubleday, 1991.

Scullion, Scott. “Sacrificial norms, Greek and Semitic: holocausts and hides in a sacred law of Aixone.”  In: La norme en matière religieuse en Grèce ancienne: Actes du XIIe colloque international du CIERGA (Rennes, septembre 2007). Liège: Presses universitaires de Liège, 2009. http://books.openedition.org/pulg/563. DOI: https://doi.org/10.4000/books.pulg.563.

Ribbens, Benjamin J. Levitical Sacrifice and Heavenly Cult in Hebrews. Vol. 222. Beihefte Zur Zeitschrift Fur Die Neutestamentliche Wissenschaft. Berlin/Boston: De Gruyter, 2016.

Azazel

Azazel, em hebraico עֲזָאזֵל, em Lv 16:8, 10, 26 Azazel é um lugar desolado aonde um bode expiatório carregando os pecados era enviado. Durante o final do período do Segundo Templo, o termo aparece associado como um anjo caído responsável por disseminar conhecimento proibido à humanidade.

BIBLIOGRAFIA

Neto, Willibaldo Ruppenthal. “As interpretações de Azazel em Levítico 16.” Revista Ensaios Teológicos 2.1 (2016).

Corbã

O corbã, em hebraico קָרְבָּן, nas línguas semíticas indica ofertas para sacrifício a Deus com o propósito de prestar homenagem, ganhar favores ou obter perdão.

No período do Segundo Templo, corbã passou significar um voto ou uma oferta não redimível. No sistema sacrificial levítico, algumas ofertas poderiam serem redimidas em troca de outra oferenda. O Novo Testamento emprega o sentido de voto (Mc 7:11) e tesouro do templo.

Josefo usa outras palavras para oferta, mas usa corbã para o voto dos nazireus (Antiguidades dos Judeus 4:73; 4,4,4) e cita Teofrasto acerca de um voto entre os tírios (Contra Apião 1.167 ; 1,22,4).

Anátema

Anátema é um termo que denota maldição porque foi separado. Deriva do grego ἀνάθεμα, anáthema, que significa “uma oferenda” ou “qualquer coisa dedicada”.

No Antigo Testamento, a Septuaginta referia-se tanto aos objetos irremissíveis consagrados ao uso divino (Corbã) quanto aos destinados à destruição em nome do Senhor, como os inimigos e suas armas durante as guerras religiosas (herem). Portanto, tais objetos seriam maldidos para a apropriação pessoal. Cf. Lv 27:28.

No Novo Testamento o termo aparece seis vezes (1 Co 12:3; 16:22; Gl 1:8,9; Rm 9:3; At 23:14), indicando um desfavor divino.

Mais tarde, na história do cristianismo o termo ganhou conotação de amaldiçoamento formal.

Libação

Uma libação é um derramamento de um líquido ou de grãos como oferenda para sacrífico a uma divindade ou um brinde em honra a uma figura célebre ou aos mortos.

As libações tinham um caráter pacífico, tanto que o termo grego para libação, σπονδή (spondê), passou a significar tratado de paz.

Em Gn 35:14 Jacó fez uma libação sobre a coluna de pedra. Em Is 3:12 aparece o sofrimento do Servo como uma libação. Jesus associa o cálice com a libação de seu sange (Lc 22:20) e Paulo equipara seu sacrifício como uma libação em benefício dos filipenses (Fp 2:17).

Teoria do bode expiatório

A teoria do bode expiatório é uma perspectiva soteriológica sacrificial de como a morte de Cristo proporciona a reconciliação da humanidade com Deus, porém rechaçando noções de redenção mediante violência.

O mitologista e antropólogo filosófico francês René Girard (1923 –2015) propõe a teoria mimética de que todo o desenvolvimento da cultura humana – a religião, as instituições, a organização social – fundamenta-se em mecanismos de contenção da violência.

Girard transpôs suas análises para textos bíblicos e para a teologia cristã da expiação. No entanto, seria James Alison quem refinaria em termos teológicos a teoria do bode expiatório.

Girard e Alison propõem uma substituição vicária, mas não penal. A humanidade odiou os ensinos e vida de Cristo porque não o podia imitar. Foi sacrificado como uma vítima do ódio humano. A morte gera um arrependimento e possibilidade de restaurar a ordem originalmente proposta.

A teoria do bode expiatório exonera Deus de uma injusta substituição penal e transfere a culpa à humanidade. Em algo próximo às teorias de influência moral e exemplo moral, pela teoria do bode expiatório o assassínio violento de Cristo altera o curso da história humana.

BIBLIOGRAFIA

Alison, James. Raising Abel: The Recovery of the Eschatological Imagination. New York: Crossroad Publishers, 1996.

Alves, Leonardo. O violento e o sagrado em dois filmes de suspense. Ensaios e Notas, 2019.

Girard, René. Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990.

Kailey, Michelle (2008) “Redeeming the Atonement: Girardian Theory,” Denison Journal of Religion: Vol. 8 , Article 7.