Teorias sobre a Trindade

A doutrina da Trindade é um conceito teológico no cristianismo que busca articular a natureza de Deus como sendo um só ser, mas que se manifesta ou existe como três “pessoas” ou “hipóstases”: o Pai, o Filho (Jesus Cristo) e o Espírito Santo. A formulação dessa doutrina se desenvolveu ao longo de séculos de debates teológicos, exegese bíblica e concílios. Diversas perspectivas tentam explicar (ou rejeitar) o conceito de Trindade. As principais teorias sobre a Trindade são as seguintes.

  1. VISÕES TRITEÍSTAS
  2. VISÕES SUBORDINACIONISTAS
  3. VISÕES MODALISTAS
  4. A TRIUNIDADE ORTODOXA
  5. OUTRAS ABORDAGENS
  6. BIBLIOGRAFIA

VISÕES TRITEÍSTAS

O Triteísmo ensina que a Divindade consiste essencialmente em três deuses separados. Embora seja correto dizer que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus, seria errado dizer que essas três pessoas constituem três divindades separadas. O triteísmo era típico da religião da Mesopotâmia, onde o deus supremo era Anu, o deus dos céus; seguido por Enlil, o deus do vento e da agricultura; e Enki (ou Ea), o deus da água e do conhecimento. Na religião hindu, o conceito Trimurti também é triteísta: Brahma o criador, Vishnu o preservador e Shiva o destruidor. O mormonismo sustenta algo semelhante, que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três seres separados, mas que são uno em propósito.

Uma analogia antiga era que a natureza divina seria dividida em três partes, análoga a um pedaço de barro cortado em três pedaços.

VISÕES SUBORDINACIONISTAS

O arianismo é uma posição defendida pelo presbítero alexandrino Ário (ca. 256-336). De acordo com o arianismo, o Filho de Deus seria uma criatura feita por Deus do nada há um tempo finito.

O eunomianismo, também conhecidos como anomoanos ou heterousianos, era uma versão extrema de arianismo que acreditava em uma total assimetria dentro da Trindade. Afirmando que somente o Pai possuía o atributo de não gerado (um ser sem origem) enquanto considerava o Filho e o Espírito Santo como seres criados, sendo funcionalmente subordinados. Enfatizavam uma definição precisa da essência de Deus.

O unitarismo sustenta que Deus é apenas uma pessoa divina (o Pai) e nega que Jesus Cristo seja Deus nesse sentido. Há algumas variantes de unitarismo. O unitarismo atual é, em grande, parte um movimento pós-Iluminismo, racionalista, que rejeita a divindade de Cristo e, frequentemente, o sobrenatural. Já o unitarismo histórico da era da Reforma (por exemplo, Fausto Sozzini) era teologicamente mais complexo, embora tenha chegado a conclusões semelhantes.

Frequentemente, o unitarismo é confundido com o socinianismo. Essa visão argumenta que o Pai é o único Deus verdadeiro. O Filho era um homem santo, que Deus criou por meio de uma concepção direta e sobrenatural, antes da qual ele não existia. Ele foi criado para proclamar uma nova lei para a humanidade. Tendo completado esta tarefa, ele ascendeu ao céu, onde se tornou participante da graça divina. O Espírito Santo é meramente uma energia ou poder divino.

As Testemunhas de Jeová ensinam que o Filho é uma criatura, criada antes do cosmos, e o agente por meio do qual Deus criou o cosmos. O Espírito Santo é simplesmente o poder de Deus, o Pai.

No mundo de língua inglesa, o termo unitarismo foi atribuído à cristologia humanitária, a qual sustenta que Jesus somente possuía uma natureza: a humana.

O subordinacionismo é uma doutrina em que o Filho (e às vezes também o Espírito Santo) está subordinado ao Pai. Era típico dos chamados semi-arianos. O Filho é realmente eterno, gerado da essência do Pai: ele não é uma criatura e não nasceu do nada; no entanto, ele é inferior e subordinado ao Pai. Somente o Pai é “Deus” com o artigo definido prefixado ao termo (ho theos). A omissão do artigo para referir-se ao Filho (theos) resulta de ter recebido sua natureza do Pai pela comunicação. O Filho seria semelhante, não igual, essencialmente ao Pai

O subordinacionismo funcional eterno, com outras terminologias concorrentes como subordinação eterna do Filho e relações internas de autoridade e submissão, propõe uma hierarquia dentro da trindade. Embora o Filho seja ontologicamente igual ao Pai, Cristo seria subordinado em função, obedecendo ao Pai na eternidade. É uma doutrina mantida entre os novos calvinistas.

O monarquianismo é uma doutrina que enfatiza Deus como um ser indivisível. Essa doutrina contrasta com o trinitarianismo, que define a Divindade como três hipóstases coeternas, consubstanciais, coimanentes e igualmente divinas. Existem dois tipos, o monarquismo dinâmico e o modalístico.

O adocionismo (ou monarquianismo dinâmico) sustenta que Deus é um ser, acima de tudo, totalmente indivisível e de uma natureza. Sustenta que o Filho não era coterno com o Pai. Assim, a Jesus Cristo foi essencialmente concedido a divindade (adotado) para os planos de Deus e para sua própria vida e obras perfeitas. Diferentes variações do dinamismo sustentam que Jesus foi “adotado” no momento de seu batismo ou de sua ascensão. É a versão subordinacionista do monarquianismo.

VISÕES MODALISTAS

O modalismo (ou monarquianismo modalístico) é a crença de que existe um Deus em substância e pessoa. Assim, seriam o Pai, o Filho e o Espírito Santo três funções ou modos sucessivos desse Deus, mas não pessoas distintas. Nos tempos do Antigo Testamento, Deus apareceu como o Pai. Na encarnação, Ele apareceu como o Filho. E depois da ascensão de Jesus, Ele se manifestou como o Espírito Santo. O modalismo ensina que esses modos são consecutivos, nunca simultâneos. 

O sabelianismo é outra maneira de expressar uma visão modalística de Deus. Sabélio, um sacerdote do século III, propôs uma analogia de que Deus é como um ator usando várias máscaras. Deus usa a máscara do Pai. Esta máscara não é para esconder, mas para revelar como na máscara do Filho e, finalmente, na máscara do Espírito Santo. Mas por trás dessas máscaras está apenas uma pessoa.

O patripassianismo: a consequência aparentemente lógica do modalismo de que, se não há distinção real entre o Pai e o Filho, então o Pai deve ter sofrido na cruz. É um termo usado pejorativamente na teologia ocidental atribuído a muitos teólogos orientais, mas não há um grupo distinto que abrace tal teologia

O unicismo é um conjunto de perspectivas antitrinitárias modernas que negam quaisquer distinções entre as pessoas da Divindade. Jesus é Deus, mas Ele também é o Pai e o Espírito Santo. Em uma ligeira variação do modalismo antigo, os pentecostais unicistas ensinam que Deus é capaz de se manifestar em todos os três “modos” simultaneamente, como no batismo de Jesus (Lucas 3:22).

A TRIUNIDADE ORTODOXA

A Trindade nicena-calcedoniana é um entendimento de que Deus tem uma substância (ousia), mas existe eterna e plenamente como três Pessoas distintas. Este último termo não é igual ao sentido cotidiano, mas como hypostases em grego, personae em latim, ou seja, modos de existência. Algumas questões da Trindade niceana permanecem abertas, como a questão do filioque ou a doutrina da processão do Espírito Santo. Embora a estrutura Niceno-Calcedoniana seja o padrão ortodoxo, os modelos descritos nela (psicológico, social, pericorético, etc.) são interpretações posteriores e constructos teológicos que tentam explicar a doutrina ortodoxa.

Na concepção da ortodoxia oriental, o Espírito procede do Pai somente (ek monou tou Patros), e o papel do Filho é manifestar eternamente o Espírito. Esta é uma diferença fundamental na compreensão da vida interior (Trindade imanente) de Deus.

 Na Antiguidade Tardia, as tradições Oriental (Capadócia) e Ocidental (Agostiniana) conceptualizaram a Trindade de maneiras distintas,

Os pais capadócios (Basílio Magno, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo) frequentemente começam com as Três Pessoas e depois explicam sua unidade. Sua analogia são frequentemente três homens (Pedro, Tiago, João) compartilhando a “natureza humana” universal. A unidade é uma de perichoresis (coinerência mútua) e essência comum.

Já a concepção latina de Agostinho começa com a única substância divina e depois busca entender as Três Pessoas. Sua analogia influente é a Trindade psicológica, onde os Três são comparados à memória, entendimento e vontade da mente (ou amante, amado e amor). Esta abordagem enfatiza a unidade e influenciou a teologia ocidental.

Alguns modelos distinguem entre Trindade econômica e Trindade imanente. Não são pontos de vista concorrentes, mas nuances nas quais um teólogo pode enfatizar.

A Trindade econômica enfatiza as diferentes funções das pessoas divinas. A economia aqui tem a ver com a história da salvação e discute o Pai, o Filho e o Espírito Santo no envio e na missão da salvação.

A Trindade imanente destaca a ação restante dentro de um agente. Assim, a Trindade imanente seria uma discussão dos aspectos eternos, essenciais e ontológicos da Trindade.

Ontologicamente, os modelos mais recentes tratam de duas propostas distintas, a Trindade psicológica e social. Um debate recente na filosofia da religião. Como dito, a visão “latina” (inspirada em Agostinho) prioriza a unidade de Deus, frequentemente vendo as pessoas como relações subsistentes dentro da única substância divina. A visão “social” (inspirada nos capadócios) prioriza as três pessoas como centros distintos de consciência e vontade, unidos em amor.

A Trindade psicológica é um modelo que ensina a unidade e diversidade da Divindade para a unidade e diversidade do ser humano. A unidade do Pai, Filho e Espírito Santo é como a unidade da mente (pensamentos), coração (emoções) e volição (vontade) de uma pessoa

A Trindade social é um modelo que consiste em três pessoas em um relacionamento amoroso, o que reflete um modelo de relacionamento humano. Deus é um ser inerentemente social. A unidade humana aproxima-se da conformidade à imagem da unidade de Deus através da doação de si, da empatia, da adoração de uns pelos outros. Tal amor é uma semelhança ética adequada a Deus, mas está em total contraste com a unidade do ser de Deus.

Outras abordagens salientam algum aspecto das doutrinas trinitárias.

A Trindade pericorética é uma variante do trinitarianismo social. Enfatiza o aspecto dinâmico, dançante (em grego Perichoresis) das pessoas da Trindade em perfeita igualdade e harmonia.

A Trindade como “Relação Absoluta”. Para Barth, a Doutrina da Trindade é a chave para entender a revelação: “Deus revela-Se como o Senhor”. Portanto, Revelador (Pai), Revelação (Filho) e Revelado (Espírito) são três “modos de ser” (Seinsweisen) no único Deus. Isto é frequentemente cautelosamente distinguido do modalismo porque Barth insiste que estes são modos de ser eternos, e não apenas máscaras sucessivas. É uma abordagem única do século XX, centrada na autorrevelação de Deus.

A Divindade comunitária é um modelo baseado na patrística e nos contextos culturais africanos. Proposto por Ogbonnaya, argumenta que Deus que é Um-e-Muitos, ou Três-em-Um, estava organicamente relacionado à comunidade africana e à compreensão familiar da igreja primitiva.

A Trinidade e o Deus Crucificado de Moltmann coloca a cruz no centro da teologia. Deus sofre com a humanidade na crucificação, revelando-se não como um ser distante, mas intimamente envolvido na dor do mundo. Esse “Deus crucificado” desafia a ideia de um Deus onipotente e impassível, enfatizando a solidariedade divina com a criação sofredora. A Trindade seria relacional e social, um modelo para as relações humanas e a justiça social. Este modelo conecta a esperança do reino de Deus, mediante a obra de Cristo e com o Espírito Santo impulsionando a renovação da criação.

A Trindade prática de LaCugna propõe a relacionalidade e a mutualidade dentro da Trindade, rejeitando modelos hierárquicos. LaCugna critica a linguagem dominante acerca da Trindade, muitas vezes patriarcal e excludente, defendendo uma compreensão mais inclusiva que reflita as experiências de mulheres e grupos marginalizados. A Trindade não é apenas um conceito abstrato, mas tem implicações práticas para a vida cristã e a ética, moldando nossa compreensão de comunidade, justiça e amor.

A Trindade da alteridade de Volf manifesta-se para compreender e acolher a “alteridade”. A Trindade, como comunidade de pessoas distintas em relação amorosa, oferece um modelo para superar divisões e construir reconciliação. Volf enfatiza a encarnação de Deus em Jesus Cristo como revelação do amor divino e chamado a abraçar nossa própria existência encarnada. A Trindade está intimamente associada à vida da Igreja, que deve refletir o amor e a unidade divinos em seu testemunho.

A Teoria da identidade relativa é empregada na filosofia analítica, por filósofos como Peter van Inwagen, para tentar dar sentido lógico à Trindade. A teoria sugere que “é Deus” e “é a mesma pessoa que” não são a mesma coisa. Assim, enquanto o Pai é Deus e o Filho é Deus, o Pai não é a mesma pessoa que o Filho. Isso permite que eles sejam numericamente o mesmo Deus, embora pessoalmente distintos, evitando a acusação de contradição lógica.

Para a teóloga católica, Elizabeth Johnson, em She Who Is (1992), argumenta que a linguagem trinitária tradicional (Pai, Filho, Senhor) não é neutra, mas santifica estruturas patriarcais de dominação masculina. Para contrapor isso, emprega a tradição bíblica para recuperar a imagética feminina negligenciada, especialmente a figura de Sofia/Sabedoria (Sophia) – uma personificação divina feminina presente no Antigo Testamento. Johnson propõe entender Jesus Cristo como a Sabedoria de Deus encarnada (Sophia-Sabedoria) e o Espírito Santo em termos sapienciais, reimaginando a Trindade não como uma hierarquia, mas como uma comunidade de iguais (Deus-Sophia, Sophia-Sabedoria e Espírito-Sábio) unida por relações mútuas de amor. Este modelo de Trindade como Aquela que É, ao basear a realidade última na igualdade e reciprocidade, subverte todas as hierarquias humanas, incluindo as de gênero, oferecendo uma base teológica para a libertação e a plena igualdade.

OUTRAS ABORDAGENS

O monoteísmo cristológico é uma articulação recente da divindade de Jesus como igual a Deus, o Pai. Encontra-se nos pensamentos de James D.G. Dunn, que argumenta que o Novo Testamento e os primeiros seguidores de Jesus o consideravam um representante de Deus. Outro estudioso foi Larry W. Hurtado, que reconstruiu as crenças dos primeiros cristãos, argumentando que criam em Jesus como um agente divino que recebe adoração cultual ao lado de Deus. Finalmente, foi argumentado por Richard J. Bauckham, a quem Jesus compartilha da identidade divina de Deus.

O Deus dipolar na teologia do processo é uma alternativa radical que rejeita totalmente o teísmo clássico. Para os pensadores do processo (por exemplo, Charles Hartshorne), Deus é dipolar (tem tanto uma natureza primordial quanto consequente). A Trindade pode ser reinterpretada como três “pessoas” ou aspectos do engajamento de Deus com o mundo, mas rejeita a noção de três pessoas co-eternas e imateriais. Deus está em um relacionamento dinâmico e evolutivo com o mundo.


BIBLIOGRAFIA

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Infalibilidade

O conceito de infalibilidade descreve diversas doutrinas de autoridade, sendo tal conceito atribuído às Escrituras, à Igreja e ao papado.

A infalibilidade da Igreja e a infalibilidade do Papa, na tradição católica romana, são tratados em verbetes próprios. Segue aqui uma exposição sobre a doutrina da infalibilidade bíblica.

Infalibilidade das Escrituras

A infalibilidade bíblica é a doutrina de que as Escrituras ensina de modo fiel e verdadeiro as matérias de fé e prática. Pela infalibilidade das Escrituras, há a confiança que sua mensagem cumpra totalmente seu propósito de comunicar a revelação de Deus em Cristo de modo que seu receptor não falhe em compreender a salvação.

Vários são os textos bíblicos apresentados para sustentar a infalibilidade bíblica, como João 10:35; Salmos 119:160; Eclesiastes 12:10; Romanos 1:16; 9:1; 3 João 1:12.

O bibliólogo Donald Bloesch (1994) articula a doutrina da infalibilidade bíblica centrada no modo como as palavras são empregadas pelo Espírito de Deus nas Escrituras. A veracidade e confiabilidade das Escrituras encontram sua fundação na revelação histórica e na orientação do Espírito Santo. Portanto, a infalibilidade é derivada da verdade divina. A infalibilidade do texto bíblico é plenamente realizada quando vista em relação ao seu centro divino, a autorrevelação de Deus em Jesus Cristo. Apesar da descontinuidade entre a fala humana e a Palavra de Deus (ainda que a natureza humana seja falível na expressão textual); há a mensagem que em si permanece infalível, apontando os crentes para a encarnação perfeita da verdade em Jesus Cristo. Essa dualidade destaca o mistério impenetrável da Bíblia, simultaneamente divino e humano.

Em uma analogia, Bloesch explica que Escritura seria o instrumento ou meio de revelação inspirado. Seria como uma lâmpada, mas não a luz em si, capaz de eficazmente cumprir seu propósito de iluminar (infalibilidade). A infalibilidade bíblica seria incapacidade inerente das Escrituras de levar ao engano ou desvio. Seria a qualidade inabalável de guiar os crentes à verdade revelada por Deus. (Bloesch 1994).

A autoridade das Escrituras deriva-se de sua relação com a Palavra viva (Cristo Jesus). Sua autoridade não se derivaria em virtude de sua historicidade ou facticidade ou modelos de veracidade fundamentados em proposições ou correspondência. A verdade das Escrituras só é compreendida em relação a Cristo pela obra do Espírito Santo, não por qualquer hermenêutica racionalista.

A Bíblia exibe uma infalibilidade funcional em seu papel como regra suprema de fé, conduta e adoração. Essa infalibilidade não é autossuficiente, mas é transmitida pelo poder do Espírito, garantindo que os crentes tenham acesso à verdade infalível. Os Reformadores viam a Bíblia como a regra infalível para a fé e a prática, dependendo da iluminação do Espírito Santo para uma compreensão verdadeira.

A natureza dual da Bíblia revela tanto o esplendor divino quanto a fraqueza humana. Ela utiliza elementos humanamente falíveis devido a limitações culturais e históricas, mas permanece infalível ao transmitir a vontade e o propósito de Deus. A imperfeição das palavras humanas é transcendida pela verdade e poder da infalibilidade divina, afirmando que a Bíblia contém a Palavra perfeita de Deus em palavras humanas imperfeitas.

Perspectivas diversas e história da doutrina da infalibilidade

Diversas perspectivas teológicas contribuíram para o discurso sobre a doutrina da infalibilidade.

Para os reformadores, a Bíblia seria a regra infalível para a fé e prática. Seria a única fonte teológica a conter todas as coisas necessárias para a salvação, mas a sua verdade só poderia ser percebida pela iluminação do Espírito Santo. Em suma, os reformadores consideravam a infalibilidade da Palavra e do Espírito.

A Confissão de Westminster descreve a Escritura como uma “regra infalível para fé e vida” (2.5.9).

O teólogo dogmático reformado Herman Bavinck argumentava que a Bíblia contém um aspecto falível no sentido de que reflete as limitações culturais e históricas de seus escritores. Mas as Escrituras também são infalíveis, pois não engana naquilo que pretende ensinar: a vontade de Deus e propósito para o mundo. Traz a marca da fragilidade humana, também carrega a verdade e o poder da infalibilidade divina.

O teólogo dogmático holandês Berkouwer distingue entre a autoridade ontológica e funcional das Escrituras. Infalibilidade seria a autoridade funcional das Escrituras, enquanto a inspiração a autoridade ontológica.

O teólogo evangelical batista Bernard Ramm fez uma distinção entre graphe (Escritura), gramma (letra) e pneuma (Espírito). A graphe incorpora e transmite a verdade infalível porque une a letra e o Espírito. Seria o conteúdo divino das Escrituras. Infalibilidade das Escrituras não seria o texto, a letra, mas a graphe.

Rogers e McKim falam da Bíblia como infalível em sua função ou propósito. Ele infalivelmente cumpre seu propósito em trazer Cristo e a dádiva de salvação. A Bíblia como histórico e o documento literário seria vulnerável ao erro, pois sujeita-se às contigências da história. A verdade para a qual as Escrituras direciona é infalível, pois esta verdade – sendo o próprio Cristo vivo – é supra-histórica.

A doutrina da infalibilidade bíblica frequentemente é contrastada com outros modelos de autoridade das Escrituras, como a doutrina da inerrância bíblica. Contudo inerrância varia em sentidos. Uma acepção de inerrância seria a capacidade de não errar em seus propósitos de comunicar conteúdo de salvação, ou seja, um quase sinônimo de infalibilidade (Teixeira). Outro sentido de inerrância seria que a Bíblia não conteria erros de fato, nem de história, nem de ciência, do contrário invalidaria sua capacidade de comunicar a revelação divina (Gleiser). Ainda, em outra perspectiva, inerrância seria a Bíblia não errar naquilo que seus autores intencionavam comunicar, não em proposições isoladas (J.I. Packer). Numa distorção semântica chamada falácia do dicionário, alguns inerrantistas norteamericanos tentam argumentar que infalibilidade significaria ser incapaz de falhar, então impossível de se errar. Contudo, no sentido teológico, infalibilidade significa simplesmente incapaz de falhar, isto é, ser capaz de cumprir o seu propósito. Esses problemas levaram a biblistas e bibliologistas de língua inglesa revisitarem as doutrinas de infalibilidade.

Nos Estados Unidos a “batalha pela Bíblia”, principalmente nos anos 1970, levaram os defensores evangélicos da infalibilidade distinguir-se dos inerrantistas. George Eldon Ladd negou a infalibilidade do texto e preferiu falar da infalibilidade da mensagem das Escrituras. Bloesch seria um ardente defensor da infalibilidade e da rejeição da inerrância. Sendo uma questão localizada dentro de algumas vertentes protestantes norteamericana, em outros países de língua inglesa a preferência por modelos de autoridade bíblica baseada na infalibilidade predominaram, tal como entre os britânicos, como John Stott, F. F. Bruce, N. T. Wright, John Goldingay, Alister McGrath, ou australianos como Leon Morris e Mike Bird, preferindo tratar as Escrituras em modelos de veracidade e fidedignidade ao invés de inerrância.

BIBLIOGRAFIA

Bloesch, Donald G. Essentials of Evangelical Theology, Volume Two: Life, Ministry, and Hope. San Francisco: Harper & Row, 1979.

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Demonologia

Demonologia, em termos teológicos, é o estudo de entidades, demônios ou espíritos malignos dentro do contexto da crença cristã. Examina sua natureza, origens, atividades e sua relação com Deus, a humanidade e o reino espiritual.

A demonologia investiga a compreensão teológica dos espíritos malignos ou demônios, conforme descritos na Bíblia e na tradição cristã. Explora sua existência, características e influência sobre os seres humanos e o mundo. Além disso, examina suas interações com Deus, anjos e seres humanos, bem como seu papel na batalha espiritual cósmica entre o bem e o mal.

Algumas tradições de teologia sistemática incluem a demonologia sob a área da angeologia. Outros, fazem o inverso, especialmente entre historiadores da religião.

O estudo da demonologia utiliza vários métodos para examinar textos bíblicos, tradições teológicas, relatos históricos e testemunhos pessoais. Aplica exegese bíblica, analisando passagens que descrevem encontros com demônios e suas atividades. Também se baseia em fontes teológicas e históricas, incluindo os escritos de teólogos, pais da igreja e místicos cristãos. Além disso, incorpora análise crítica e discernimento para distinguir entre fenômenos espirituais genuínos e incidentes enganosos.

Os tópicos principais encontrados em manuais de demonologia são:

  • Natureza dos Demônios: explora a natureza dos demônios. Examina sua origem, desde teorias como como anjos caídos ou como espíritos desencarnados, suas características e habilidades distintas. Inclui seus poderes sobrenaturais, influência nas vidas humanas e táticas enganosas.
  • Relatos das Escrituras: investiga relatos bíblicos de possessão demoníaca, exorcismo e guerra espiritual. Investiga narrativas e ensinamentos do Antigo e do Novo Testamento que envolvem encontros com demônios, como as descrições dos exorcismos de Jesus nos Evangelhos.
  • Guerra Espiritual: enfoca a batalha espiritual entre o bem e o mal, incluindo as atividades dos demônios em tentar, oprimir e enganar os seres humanos. A demonologia explora a resposta cristã à guerra espiritual, enfatizando a autoridade e o poder de Cristo e as armas da armadura espiritual descritas em Efésios 6:10-18.
  • Libertação e Exorcismo: aborda a prática de libertação e exorcismo, que envolve a expulsão de demônios de indivíduos ou lugares por meio de oração e autoridade espiritual. Explora os princípios, diretrizes e controvérsias que cercam essas práticas dentro da teologia e ministério cristãos.
  • Implicações teológicas: cruza com outras áreas da teologia, como angelologia, soteriologia e escatologia. Considera as implicações da atividade demoníaca na salvação humana, a obra redentora de Cristo e a derrota final do mal no cumprimento escatológico.
  • Discernimento e Disciplinas Espirituais: enfatiza a importância do discernimento e das disciplinas espirituais para reconhecer e resistir às influências demoníacas. Explora práticas como oração, jejum, estudo das escrituras e confiança no Espírito Santo para discernir e combater o engano espiritual.
  • Demonologia e psicologia: relação entre saúde mental e crença em demônios. Investigação e denunciação de manipulações (e mesmo fraudes) envolvendo conceitos acerca de demônios e suas manifestações.

A demonologia procura fornecer uma compreensão abrangente da natureza e influência dos demônios dentro da teologia e concepção de mundo cristã. Destina-se a equipar os crentes com conhecimento e discernimento para reconhecer e responder à atividade demoníaca à luz da autoridade e vitória de Jesus Cristo. Também enfatiza a importância do discernimento espiritual, da oração e da confiança na orientação e proteção de Deus ao navegar no reino espiritual.

Judaismo enoquita

O judaísmo enoquita é um conceito desenvolvido por pesquisadores para referir-se às crenças e práticas de algumas vertentes do judaísmo do Segundo Templo.

Uma tendência purista de judeus esposava um dualismo cósmico entre o bem e o mal, a onipotência de Deus, fatalismo, a identificação da impureza com o mal e um sectarismo.

A literatura enoquiana sumariza as crenças dessa vertente. Para esses grupos (considerando que não utilizavam o termo “enoquiano” como autodesignação) reverenciava a figura do patriarca Enoque. Criam que anjos caídos trouxeram o mal ao mundo.

Os enoquianos acreditavam que a restauração da ordem de Deus ainda era um evento futuro.

BIBLIOGRAFIA

Gabriele Boccaccini, Giovanni Ibba, eds. Enoch and the Mosaic Torah: The Evidence of Jubilees. Grand Rapids: Eerdmans, 2009

Cristologia

A cristologia é um ramo da teologia sistemática que se concentra no estudo de Jesus Cristo, examinando especificamente Sua natureza, personalidade e obra. Procura compreender a identidade e o significado de Jesus na fé cristã.

A cristologia explora a pessoa e a obra de Jesus Cristo, considerando Suas naturezas divina e humana, Seu papel na salvação, Seu relacionamento com Deus Pai e Seu impacto na humanidade. Examina as dimensões histórica, bíblica e teológica da existência e missão de Cristo.

O estudo da cristologia emprega vários métodos e abordagens. Envolve exegese bíblica, examinando as passagens do Antigo e do Novo Testamento que revelam a identidade e os ensinamentos de Cristo. Também se dedica à análise histórica, estudando o desenvolvimento das doutrinas cristológicas e a compreensão cristã primitiva de Jesus. Além disso, utiliza o raciocínio filosófico para explorar as implicações e a coerência de várias perspectivas cristológicas.

Tópicos principais:

  • Encarnação: A cristologia explora a doutrina da encarnação, que afirma que Jesus Cristo é totalmente Deus e totalmente humano. Investiga como o eterno Filho de Deus assumiu a carne humana, habitando entre a humanidade para realizar a salvação.
  • Pessoa e Naturezas de Cristo: Este tópico investiga a personalidade de Jesus e a relação entre Suas naturezas divina e humana. Examina a união hipostática, afirmando que em Jesus há uma só pessoa com duas naturezas distintas, divina e humana.
  • Títulos e Nomes de Cristo: A cristologia considera os vários títulos e nomes atribuídos a Jesus na Bíblia, como Messias, Filho de Deus, Filho do Homem e Salvador. Ele explora o significado e as implicações dessas designações para entender Sua identidade e papel.
  • Expiação: O estudo da obra de expiação de Cristo examina Sua incarnação, ministério, morte sacrificial na cruz, ressurreição e ascenção, tendo em vista seu significado para o perdão dos pecados e a reconciliação entre Deus e a humanidade. Explora diferentes teorias de expiação, como expiação substitutiva, Christus Victor e influência moral.
  • Ressurreição e Exaltação: investiga a ressurreição de Jesus e sua subsequente exaltação à direita de Deus. Explora as implicações da ressurreição de Cristo para a esperança da vida eterna e Seu papel contínuo como mediador e advogado dos crentes.
  • Segunda Vinda: O estudo da cristologia inclui a expectativa futura da segunda vinda de Cristo. Explora o significado escatológico do retorno de Cristo, o julgamento final e o estabelecimento de Seu reino eterno.