Predestinação

A predestinação é um conceito teológico que investiga a relação entre a presciência de Deus e o destino humano. Explora a ideia de que certos eventos, particularmente aqueles relativos à salvação ou condenação, são predeterminados por um poder divino.

O termo bíblico grego προορίζω (proorizó) geralmente é traduzido como predestinação e aparece em Atos 4:28; Romanos 8:29-30; 1 Coríntios 2:7; e Efésios 1:5, 11.

Tanto em filosofia quanto em teologia, predestinação é distinta tanto do determinismo quanto do fatalismo e está sujeita à livre decisão da vontade moral humana, mas também insiste que a salvação é inteiramente devida ao decreto eterno de Deus.

Na teologia ortodoxa grega e oriental, há uma concepção sinergística de que Deus predestinou para a salvação corporativamente aqueles cuja fé e méritos futuros que de Ele de antemão conheceu.

No Ocidente, há seis grandes perspectivas sobre predestinação. O tema ganhou proeminência na teologia de Agostinho de Hipona (354-430 dC). Tentando equilibrar e criticar o fatalismo dos maniqueístas e o livre arbítrio dos pelagianos, segundo Agostinho, a presciência de Deus e a graça divina determinam a salvação dos indivíduos. Ele argumentou que a humanidade, devido ao pecado original herdado de Adão e Eva, é incapaz de escolher a salvação por conta própria. Em vez disso, Deus elege certos indivíduos para a salvação, concedendo-lhes a graça, enquanto outros são deixados à sua merecida condenação.

A primeira grande perspectiva é agostiniana, também elaborada pelo segundo Concílio de Orange (529), bem como pelo pensamento de Aquino e Lutero. Essa teoria atribui a salvação dos humanos à graça imerecida de Deus e, portanto, à predestinação, mas credita a reprovação divina ao pecado e à culpa humanos. Tomás de Aquino (1225-1274) detalhou sobre a predestinação ao incorporar a filosofia aristotélica ao pensamento cristão. Argumentou que a predestinação de Deus seria baseada na presciência divina e no livre arbítrio humano. Segundo Tomás de Aquino, o conhecimento de Deus abrange todos os futuros possíveis, incluindo as escolhas feitas pelos indivíduos. Assim, a predestinação não é contrária à liberdade humana, pois o conhecimento de Deus não é causativo, mas antecipatório.

A próxima grande perspectiva ocidental é a de João Calvino (1509-1564), que enfatizou a doutrina da predestinação em seu sistema teológico. Com base nas ideias de Agostinho, as ideias de Calvino levam ao conceito de dupla predestinação, principalmente a partir de Theodore Beza, o Sínodo de Dort e o jansenismo. A implicação da soberania divina é que Deus não apenas escolhe alguns para a salvação, mas também predestina outros para a condenação. Como essa acepção parte do pressuposto de que a humanidade é inerentemente corrupta devido à queda, e a salvação é apenas um resultado da escolha soberana de Deus, não do mérito humano.

Jacó Armínio (1560-1609) criticou a doutrina da predestinação de Calvino e Beza, defendendo uma compreensão mais inclusiva da salvação. Armínio entendia predestinação como presciência, não determinismo. Propôs o conceito de eleição condicional, afirmando que a presciência de Deus é baseada em seu conhecimento da resposta humana à graça divina. Argumentou que a salvação está disponível para todos, e os indivíduos têm a liberdade de aceitar ou rejeitar a oferta da graça de Deus. Foi adotada por Wesley e grande parte do evangelicalismo anglo-americano.

Miguel de Molinos (1628-1696) apresentou uma perspectiva compatibilista sobre a predestinação. O teólogo espanhol defendeu a ideia de contemplação passiva e abandono à vontade de Deus, rejeitando a noção de participação humana ativa na salvação. Molinos acreditava que os indivíduos deveriam se entregar completamente à providência divina, confiando que a vontade de Deus guiaria seu destino. Suas ideias de compatibilismo poderiam ser resumidas assim: Deus predestina todos os eventos, mas dá livre arbítrio para os seres humanos, cujos atos coincidem com o plano divino.

Outra perspectiva, a de Moise Amyraut e Richard Baxter entende a predestinação como uma eleição universal hipotética. Nessa perspectiva Deus predestinou (decretou) salvar todos a humanidade, mas efetuada individualmente sob a condição de que se cresse na obra salvífica de Cristo.

Discussões atuais sobre predestinação exploram um conceito arquetípico sobre o tema. A ideia de predestinação corporativa enfatiza a eleição e o destino de uma entidade coletiva, como a Igreja ou o povo eleito de Israel. Destaca o plano redentor de Deus para a comunidade como um todo, em vez de focar apenas na salvação individual.

BIBLIBOGRAFIA

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Amiraldismo

O amiraldismo designa as variantes teológicas do sistema reformado cujo enfoque está no fato de que Jesus Cristo sofreu a morte pela culpa de toda a humanidade. O amiraldismo é também conhecido como Escola de Saumur, universalismo hipotético, pós-redencionismo, semi-agostinianismo e — equivocadamente — calvinismo moderado ou calvinismo dos quatro pontos.

História

O teólogo escocês John Cameron (c. 1579–1625) desenvolveu, dentro da Academia Huguenote de Saumur, na França, um sistema teológico baseado em uma vocação universal. Por essa doutrina, a graça era entendida como disponível a toda a humanidade.

Embora a posição teológica do Sínodo de Dort tenha passado a ser referida com a designação “calvinista”, teólogos históricos do calvinismo já defendiam a doutrina da expiação universal, como, por exemplo, Heinrich Bullinger, Wolfgang Musculus, Zacharias Ursinus e Girolamo Zanchi.

O advogado que se tornou teólogo, Moïse Amyraut (1596–1664), foi diretamente influenciado por John Cameron. Amyraut, ao passar por Saumur, impressionou os membros da Academia com sua eloquência, que o convenceram a permanecer e estudar teologia.

Amyraut compilou escritos de Calvino sobre a extensão da expiação. Com base nesses escritos, mas sem a mediação de Beza, Amyraut articulou, em seu Brief Traitté de la prédestination et de ses principales dépendances (1634), a doutrina dessa escola. Para Amyraut, Deus disponibiliza os benefícios da obra redentora de Cristo a todos indistintamente. Assim, Deus deseja que todos os homens se salvem, contanto que creiam — razão pela qual essa doutrina é chamada de universalismo hipotético.

Quanto à doutrina da predestinação, Amyraut considerava que o Sínodo de Dort havia deturpado a doutrina de Calvino. A predestinação não seria uma questão da onisciência divina, mas indicaria a experiência da salvação pela graça de Deus.

Seu sucessor foi o não menos polêmico Claude Pajon (1626–1685), cuja tentativa de remediar a ausência virtual do Espírito Santo na soteriologia reformada gerou outras controvérsias.

A tese de Amyraut implicava em uma tolerância religiosa rara em seu tempo. Como a graça somente atua em quem exercita a fé, e a fé é dom de Deus, homem algum poderia impor suas visões religiosas a outrem. Um exemplo dessa influência foi William Penn, que esteve em Saumur e, mais tarde, fundou a colônia da Pensilvânia, um dos bastiões da tolerância política e religiosa na América do Norte.

Um sínodo da Igreja Reformada da França, realizado em Alençon em 1637, tentou, sem sucesso, condená-lo como herege. Popularizada entre reformados latinos, o amiraldismo encontrou logo oposição entre os reformados suíços e renanos, principalmente pelo trabalho de Francesco Turrettini (1623–1687). Apesar de nunca ter sido oficialmente condenado, o amiraldismo entrou em declínio após as críticas formuladas no Consenso Helvético de 1675. Raramente examinado em seus próprios termos e escritos, seus detratores passaram a considerá-lo um meio-termo entre o calvinismo dordtiano e o arminianismo.

No avivamento suíço do Réveil e em seu lado italiano (risveglio), houve uma reinterpretação das confissões reformadas com teores amiraldistas, embora não o referenciassem explicitamente. Na prática, a expiação passou a ser vista como universal. Um dos proponentes dessa doutrina, Paolo Geymonat, influenciou os crentes que imigraram para Chicago.

Marginalizado, o amiraldismo encontrou expoentes entre congregacionalistas e puritanos anglo-saxões, como John Davenport, John Preston e Richard Baxter. Para Baxter, a morte de Cristo foi um ato de redenção universal, penal e vicária, mas não substitutiva, pela qual foi introduzida uma nova lei e uma anistia para todos os que se arrependessem. O arrependimento e a fé, sendo obediência a essa lei, atuam como a justificação pessoal do crente. Como consequência, a doutrina de Baxter tornou-se o moderatismo neonomista entre os escoceses e diversos pensadores puritanos. Mais tarde, via Baxter, elementos do amiraldismo influenciariam os movimentos reformados avivados e evangelísticos, entre eles Andrew Fuller, os New School Presbyterians e, notoriamente, o Réveil entre os reformados continentais do século XIX, estimulando o evangelismo e a diaconia. O conceito de graça comum do kuyperianismo encontra fundamentos no amiraldismo. Em métodos evangelísticos e em seus sermões, Charles Spurgeon foi substancialmente amiraldista, embora se identificasse e desenvolvesse suas interpretações do calvinismo dordtiano. No geral, as modificações doutrinárias e a falta de crédito aos escritos amiraldianos levaram muitos a adotar alguma forma de sua doutrina sem se referir ao seu principal formulador.

Hoje, nos Estados Unidos, o amiraldismo não é muito conhecido, mas é popular entre o movimento das igrejas bíblicas (Bible Fundamental Churches), o movimento das igrejas de Cristo, a Evangelical Free Church of America, os batistas independentes e da Convenção Sulista. Lewis Chaffer, Norman Geisler e Oliver Crisp são alguns dos poucos teólogos recentes, de alcance público, que adotam algum aspecto desse sistema doutrinário. Contudo, em geral, esses autores raramente creditam as contribuições de Amyraut ou da Escola de Saumur.

A diversificação dos intérpretes reformados que concordavam com uma expiação ampla faz do amiraldismo um sistema teológico bem heterogêneo, ao qual o modelo dos cinco pontos calvinistas contra os remonstrantes (conhecido pelo acrônimo TULIP) não faz jus para representá-lo.

Doutrina

O amiraldismo faz parte da tradição agostiniana e da soteriologia forense da escolástica tardia. Situa-se na tradição reformada em uma aproximação com o igualmente sistema agostiniano luterano.

O amiraldismo entende que há uma eterna preordenação e presciência de Deus, por meio da qual todas as coisas acontecem: o bem com eficiência e o mal com permissividade. A dupla predestinação difere do calvinismo dordtiano pela doutrina da dupla eleição. Assim, Deus preordenou uma salvação ampla por meio do sacrifício de Cristo, oferecido a todos igualmente, com a condição da fé que reconhecesse essa obra de graça universal. Da parte da vontade e do desejo de Deus, a graça é universal, mas, no que diz respeito à condição, é particular, ou apenas para aqueles que não a rejeitam, o que a tornaria ineficaz.

A preordenação do resgate universal precede a eleição particular. Com base na benevolência de Deus para com suas criaturas, há uma graça objetiva oferecida a todos e uma graça subjetiva que floresce entre os eleitos. O amiraldismo distingue entre habilidade natural e habilidade moral, ou o poder da fé e a disposição para ter fé. Em consequência da depravação inerente, o ser humano possui a habilidade natural, mas não a habilidade moral. Portanto, é necessário um ato de Deus para iluminar a mente, envolvendo assim a vontade para a ação.

Como para Ulrico Zwingli, a graça de Deus alcança além dos limites da Igreja visível, visto que Deus, por sua providência geral, opera sobre todos (Malaquias 1:11, 14). Assim, sem conhecer formalmente o Jesus registrado no Novo Testamento, o sacrifício de Cristo é materialmente capaz de produzir uma fé sem conhecimento explícito entre pessoas que nunca ouviram sobre o Jesus Cristo bíblico. Dessa forma, essas pessoas seriam substancialmente cristãs sem assumir essa nomenclatura, pois depositaram sua fé naquilo que Deus demanda como verdade, conforme ensinada por Jesus Cristo (Romanos 1:20; 2:14-15; 1 Coríntios 2:11).

Em suma, enquanto as ênfases do calvinismo de Dort eram a soberania de Deus, e do arminianismo, a justiça de Deus, o amiraldismo enfatizava a misericórdia de Deus.

BIBLIOGRAFIA

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