Tradição no evangelicalismo

A Tradição e as variantes do Evangelicalismo Anglo-Americano

Tradição é um tema debatido na teologia protestante. Durante a Reforma, reformadores radicais como Thomas Muentzer, Caspar Schwenkfeld ou Sebastian Franck opuseram-se totalmente à tradição, voltando-se somente para as Escrituras. Enquanto isso, reformadores magisteriais encaravam a tradição como algo positivo enquanto fonte para a leitura das Escrituras. Já no catolicismo pós-Trento, bem como na ortodoxia oriental e em algumas vertentes anglicanas, a tradição existe independente, paralela e harmoniosamente com as Escrituras. Contudo, reavaliações do próprio fenômeno da tradição confirmam que, queira ou não, há uma indissociável e inescapável influência da tradição na teologia e na interpretação bíblica

Este ensaio explora quatro variantes distintas do evangelicalismo anglo-americano, selecionado por seu impacto internacional. Com base em diversos estudos sobre o evangelicalismo, mas principalmente na revisão e expansão das obras de Olson (2007) e McDermott (2010), examinamos os pressupostos, ênfases, métodos e abordagens únicas em relação à ortodoxia dentro de cada variante em relação à tradição. Além disso, lançamos luz sobre suas políticas em relação à tradição no contexto do cristianismo evangélico.

I. Doutrinários

Os Doutrinários têm uma base irredutível no fundacionalismo herdado da modernidade iluminista. A tradição, sobretudo da Reforma, serve para avaliar positivisticamente a teologia. Buscam certeza por meio de verdades evidentes por si mesmas, razão e experiência sensorial, considerando a doutrina como a essência do cristianismo. São exemplificados por autores como J.I. Packer, Wayne Grudem, Norman Geisler e D.A. Carson.

Esta variante utiliza o Realismo do Senso Comum Escocês para tratar a Bíblia como uma coleção de proposições autocontidas. Possuem uma filosofia de linguagem referencial, ou seja, um certo realismo e confiança de que as palavras transmitem ideias sem problemas de acurácia. São herdeiros do positivismo da Escola de Prínceton.

Para os doutrinários, a ortodoxia consiste em crenças atemporais, sustentadas por leituras históricas seletivas, que validam doutrinas específicas.

II. Paleo-ortodoxos

A tradição para os paleo-ortodoxos é o consenso ecumênico. Figuras proeminentes na variante Paleo-ortodoxa, como Thomas Oden, Alister McGrath, John Goldingay enfatizam um diálogo harmonioso entre a Bíblia e a Grande Tradição. Consideram o consenso ecumênico do primeiro milênio do Cristianismo como uma lente interpretativa para a compreensão das Escrituras.

Os teólogos paleo-ortodoxos envolvem-se em tarefas teológicas críticas e construtivas dentro do quadro das decisões da igreja ecumênica sobre questões doutrinárias. Seu foco está na evolução histórica da doutrina, especialmente no primeiro milênio.

Influenciado pelos métodos das humanidades para estudar a história cristã e do pensamento cristão, adotam uma abordagem de hermenêutica filósofica e realismo crítico em suas epistemologias e ontologias.

A ortodoxia, de acordo com esta variante, é o resultado da atuação de Deus na história por meio do consenso da Igreja.

III. Melioristas

Os Melioristas consideram a tradição como mais uma faceta da realidade complexa e global. São epresentados por estudiosos como Roger Olson, Kevin Vanhoozer, James A. K. Smith, Amos Yong, N.T. Wright, Scot McKnight, Beverly Gaventa e Frank Macchia. Presumem que a Grande Tradição cometeu erros no passado, exigindo correções e reformas contínuas.

Envolvem-se em diálogo com uma ampla variedade de tradições, incluindo perspectivas globais, anabatistas, pentecostais, do mundo majoritário, teologias feministas e minoritárias, luteranas, reformadas, ortodoxas, católicas romanas, bem como o pensamento científico. Isso leva a adotar uma epistemologia crítica.

Os Melioristas adotam uma compreensão coerentista da doutrina, enfatizando o presente e considerando a tradição apenas como um elemento em uma visão holística da fé. A criação está ligados a Deus não primariamente por declarações proposicionais, mas por eventos factuais. Consideram a Escritura como um meio de comunicação da revelação, guiada pelo Espírito, e instrumental para instruir as pessoas a serem semelhantes a Cristo.

A ortodoxia é vista como o resultado de um diálogo coerente com as realidades bíblicas e contemporâneas, inclusive com as realidades percebidas.

IV. Restauracionistas

A tradição é aquela da comunidade restaurada. Os Restauracionistas, exemplificados pelos anabatistas (mennonitas, Dunkers), Plymouth Brethren, Movimento de Restauração (Disciples and Churches of Christ) e muitos pentecostais clássicos enfatizam fortemente o conhecimento experiencial, individual e coletivamente vivido dentro da Igreja.

Entre seus expoentes estão F. F. Bruce, Harold Bender, Max Lucado, Anthony Palma e Michael Brown.

Sustentam que a Bíblia pode ser diretamente apreendida sob a orientação do Espírito Santo enquanto a avaliação comunitária limita interpretações arbitrárias. Para os Restauracionistas, as Escrituras contém elementos tanto proposicionais como não-proposicionais, ensinando por meio de analogia com o presente. O discipulado é considerado a essência central do verdadeiro cristianismo.

A ênfase é na tradição restaurada da comunidade .Por vezes, a essa tradição é denominacional, embora muitos rejeitem tanto identidades denominacionais quanto a Grande Tradição.

As ontologia e epistemologia coexistem em tensão entre um discernimento crítico das experiências imediatas, senso comum e conhecimento situado.

A ortodoxia, nesta perspectiva, está entrelaçada com a ortopatia e a ortopraxia. Esses três existem como oriundos da experiência da Bíblia na comunidade de fé.

Considerações finais

Mesmo quem queira evadir-se de alguma tradição não consegue evitar estar situado em alguma forma dela. No caso do evangelicalismo anglo-americano, essas quatro variantes representam abordagens distintas em relação à fé, doutrina e tradição.

Enquanto os Doutrinários enfatizam verdades evidentes por si mesmas e sistemas racionais, os estudiosos Paleo-ortodoxos sustentam o consenso ecumênico antigo. Os Melioristas advogam a reforma contínua e o diálogo com diversas tradições, enquanto os Restauracionistas priorizam o conhecimento experiencial e a tradição comunitária.

A seleção do evangelicalismo de língua inglesa deve-se à sua representatividade como exemplo do pluralismo interno dessa vertente protestante. Ademais, essa tipologia ideal, expandida de McDermott (2010) e Olson (2007), reflete as vertentes exportadas pela teologia evangelical norteamericana através do mundo. Indubitavelmente, em outras regiões, subtradições protestantes, bem como esferas linguísticas há outras tipologias do pensamento evangélico.

Compreender essas variantes e suas políticas em relação à tradição é fundamental para compreender a diversidade e dinamismo dentro do cristianismo evangélico, tanto no âmbito doméstico quanto internacional.

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O mistério dos manuscritos valdenses

Os Valdenses praticavam sua religião em segredo, escondidos nas montanhas e grutas para cultuar a Deus de acordo com as Escrituras. Pregadores itinerantes, conhecidos como barbas, memorizavam partes da Bíblia no inverno e viajavam disfarçados de mercadores para edificar as famílias valdenses espalhadas pela Europa.

Em 1530, quando a Reforma Protestante começou a ganhar força na Europa, os Valdenses ficaram apreensivos. Anteriormente, haviam se aliado aos hussitas que desafiavam o poder papal, mas a repressão foi dura e a consequência desastrosa. Com medo de sofrerem novamente decidiram investigar a Reforma

Prudentemente, os barbas valdenses se reuniram em um sínodo em Méridol em 1530 e enviaram dois representantes, George Morel de Freissinières e Pierre Masson de Burgogne, inquirir sobre esse movimento protestante entre os suíços. Os dois entraram em contato com os reformadores Guillaume Farel, Oecolampadio e Bucer. Pierre Masson acabou preso e Morel escreveu um longo relato aos seus irmãos.

Depois de uma visita de Farel e Olivetan (que traduziria a Bíblia ao francês) aos Alpes, os valdenses se reuniram em um sínodo sob os castanhais de Chanforans (hoje em Angrogna, Itália). Por seis dias discutiram os temas da reforma, principalmente sobre assumir publicamente a fé reformada. Em 12 de setembro de 1532 concluíram o sínodo com uma declaração de fé que resumia as seguintes crenças:

  • Que o culto divino deva ser realizado em espírito e verdade.
  • Que todos os salvos do passado e presente foram eleitos por Deus antes da fundação do mundo.
  • Que os cristãos não deveriam jurar.
  • Que a confissão auricular não tem base nas Escrituras.
  • Que o cristão não deva fazer vinganças.
  • Que o cristão pode exercer o ofício de magistrado sobre outros cristãos
  • Que as Escrituras não ordena tempos para jejuns.
  • Que o matrimônio [dos ministros] não é proibido.
  • Que não é incompatível para os ministros terem bens para sustentar suas famílias.
  • Que os sacramentos das Escrituras são o batismo e a santa ceia.

E, principalmente, os valdenses unir-se-iam à Reforma. Em razão disso, depois do sínodo, Daniel de Valence e Jean de Molines, dois barbas que discordaram dos resultados foram consultar os valdenses que viviam no Reino da Boêmia.

Visando manter a união, os valdenses boêmios recomendaram que fizessem um novo sínodo. No verão de 1533 foi realizado outro sínodo, em Prali. Para desgosto de Daniel de Valence e Jean de Molines o sínodo de Prali confirmou as decisões de Chafforan e uniria o movimento valdense definitivamente com a Reforma.

Desapontados, Daniel de Valence e Jean de Molines recolheram os manuscritos valdenses. Saíram dos vales e nunca mais se ouviu falar deles.

BIBLIOGRAFIA

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O melhor para o Senhor: trajes para o culto

A tradição de vestir trajes distintos para o culto é comum a várias religiões, como também muitas religiões não prescreve vestimentas especiais para seus ajuntamentos ou rituais.

Embora não haja injunção no Novo Testamento para vestimentas distintas, tal como os trajes cúlticos do Templo, é provável que a tradição judaica, samaritana e caraíta de vestir um talit (manto) tenha sido logo abandonado quando da separação da igreja gentia do povo de Israel em geral.

Vale ressaltar que há indícios que desde suas origens judeus e cristãos da Arábia usavam trajes distintos para o culto. A sinagoga e a igreja de Dura-Europos, quase no limite do deserto da Arábia, registram os cultuantes vestindo trajes formais romanos, como as túnicas. Os trajes brancos constitui legado transmitido tanto para os ortodoxos etíopes atuais, quanto para muçulmanos que os vestem às sexta-feiras.

Na maior parte do mundo, porém, não havia vestimentas especiais para o culto exceto os paramentos para o clero. Entrentanto, no Renascimento europeu surgiram classes com meios para adquirir roupas para ocasiões especiais. Em restos mortais de leigos e clérigos durante a Peste Negra aparecem pessoas sepultadas com suas melhores roupas.

Na A Balada do cabreiro António, trecho de Dom Quixote (capítulo XI), há uma das primeiras menções de roupas reservadas para o domingo. As vestimentas domingueiras popularizam-se entre diversas classes sociais no século XVI.

Durante a Reforma, o uso de trajes litúrgicos foi questão controversa. No geral, anglicanos e luteranos continuaram a usarem vestimentas especiais. Os Reformados adotaram as togas talares (jurídicas) para seus pregadores. Os anabatistas e outros reformadores radicais abandonaram completamente vestimentas distintas, mas reservaram para o domingo seus trajes formais.

Durante a Revolução Industrial e o avanço colonial do século XIX, movimentos populares de avivamento evangélico prezaram por minimizar as diferenças entre os congregados. Assim, firmou-se o hábito de usar uniformes (como no Exército de Salvação e em muitas denominações africanas) ou ternos e vestidos formais nas denominações de Santidade e Pentecostais, bem como entre grupos afroamericanos. Além de fornecer dignidade, tais trajes também expressam ideais de modéstia.

Nos anos 1960 e 1970, movimentos de missões urbanas ou carismáticos, principalmente na Califórnia, popularizaram o uso de roupas cotidianas no culto. Tal tendência esparramou-se pelo mundo nas décadas seguintes.

BIBLIOGRAFIA

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