Interpretação histórico-redentora

O método histórico-redentivo é uma abordagem teológica que interpreta a Escritura considerando-a como uma narrativa unificada que revela a obra de redenção de Deus ao longo da história.

Essa perspectiva busca entender os textos bíblicos em seus contextos históricos e culturais, conectando-os ao tema central da redenção culminada em Cristo. Sidney Greidanus, um dos principais representantes dessa abordagem, defende que cada passagem bíblica deve ser interpretada como parte de um plano redentivo que aponta para Cristo. Greidanus propõe que essa conexão pode ser estabelecida por meio de elementos como tipologia, promessa e cumprimento, entre outros.

Greidanus, um especialista em homilética, critica a pregação exemplarista, que foca em lições morais a partir de personagens bíblicos, argumentando que essa prática não considera adequadamente a dimensão redentiva da Escritura. Para ele, os textos devem ser interpretados dentro de sua integridade histórica e conectados ao plano de redenção revelado nas Escrituras. Sua abordagem prioriza a unidade entre Antigo e Novo Testamentos, destacando como o tema da redenção permeia toda a narrativa bíblica.

Oscar Cullmann, em sua proposta da história da salvação, enfatiza a sequência de atos divinos ao longo do tempo, culminando na figura de Jesus Cristo. Para Cullmann, a história da salvação é vista como uma série de eventos históricos que demonstram a ação salvadora de Deus. Essa abordagem costuma ser apresentada em uma estrutura cronológica que sublinha os eventos históricos como manifestações da redenção.

O conceito de Heilsgeschichte, amplamente utilizado na teologia alemã, refere-se ao tema geral da obra redentiva de Deus ao longo da história. Embora compartilhe do enfoque na ação divina na história, não estabelece necessariamente uma conexão direta e sistemática entre os textos do Antigo Testamento e seu cumprimento no Novo Testamento. Greidanus, ao enfatizar a relação direta entre os Testamentos, oferece um método que busca integrar o significado histórico dos textos com a narrativa mais ampla da redenção.

Quadriga

A quadriga, ou método quádruplo de interpretação, é uma abordagem hermenêutica que surgiu na Antiguidade Tardia ocidental e foi popular Idade Média. Este método foi, em sua plenitude, desenvolvido por João Cassiano (cerca de 360-435 d.C.), que expandiu a teoria anterior do sentido triplo da Escritura, proposta por Orígenes. A quadriga consiste em quatro sentidos principais: literalalegóricotropológico e anagógico.

Os Quatro Sentidos da Quadriga

  1. Literal (ou Histórico): Este é o sentido mais básico e refere-se ao significado direto das palavras do texto. É a interpretação que considera os eventos e o contexto histórico e cultural em que as Escrituras foram escritas.
  2. Alegórico (ou Doutrinal): Este sentido busca entender os eventos bíblicos como prefigurações de verdades espirituais ou doutrinais. Por exemplo, a travessia do Mar Vermelho é vista como uma prefiguração do batismo cristão.
  3. Tropológico (ou Moral): Refere-se ao ensinamento moral que pode ser extraído das Escrituras. Este sentido é voltado para a aplicação prática da fé na vida cotidiana dos crentes, orientando-os sobre como viver de acordo com os princípios cristãos.
  4. Anagógico (ou Místico): O sentido anagógico aponta para as realidades futuras e esotéricas, ligando os textos bíblicos às esperanças escatológicas. Este sentido ajuda os fiéis a contemplar as promessas de Deus sobre a vida eterna e o Reino dos Céus.

A quadriga foi fundamental para a formação do pensamento teológico medieval, pois ofereceu uma estrutura abrangente para a interpretação das Escrituras. Os teólogos medievais utilizavam esta metodologia para explorar as múltiplas dimensões dos textos sagrados, permitindo que cada leitura revelasse aspectos diferentes. Uma famosa rima latina que resume os quatro sentidos é:

“Litera gesta docet; quid credas allegoria; moralis quid agas; quo tendas anagogia.”

Essa rima destaca como cada sentido contribui para a compreensão global das Escrituras: o literal ensina sobre ações passadas, o alegórico sobre crenças, o moral sobre comportamentos e o anagógico sobre esperanças futuras.

Declínio e Legado

Com o advento da Reforma no século XVI, o uso da quadriga começou a declinar em favor de métodos mais simplificados de interpretação bíblica. No entanto, os reformadores mantiveram algumas preocupações do método quádruplo, especialmente no que diz respeito à relevância direta do texto para a Igreja1. A quadriga continua a ser estudada e apreciada por aqueles que buscam uma compreensão mais profunda das Escrituras dentro da tradição cristã.

Ticônio

Ticônio ou Tychonius, foi um estudioso cristão ativo entre 370 e 390 d.C. Associado ao movimento donatista africano, era um erudito teológico bem versado em história e conhecimento secular. Genádio de Massélia, em sua obra “De viris illustribus”, descreve Ticônio como um teólogo e historiador erudito que escreveu livros defendendo o donatismo, citando sínodos antigos para apoiar seus argumentos.

Apesar de sua afiliação donatista, Ticônio nunca se alinhou totalmente nem com os donatistas nem com os católicos, mantendo uma posição única e um tanto isolada. Escreveu duas obras hoje perdidas sobre os donatistas: “De bello intestino” e “Expositiones diversarum causarum”.

Seu legado repousa principalmente em duas obras: “Liber regularum” (O Livro das Regras) e “In Apocalypsin”, um comentário sobre o Livro do Apocalipse. Essas obras refletem seu profundo envolvimento com a interpretação das escrituras e sua influência em teólogos posteriores, mais notavelmente Santo Agostinho de Hipona.

O Livro de Regras e Interpretação Bíblica
O “Liber regularum” é um guia para interpretar a Bíblia, delineando sete regras para entender seu simbolismo e alegoria complexos. Essas regras ajudaram os leitores a navegar pela “vasta floresta de profecias” encontradas nas Escrituras.

Regra 1 (Sobre o Senhor e seu corpo),
Regra 2 (Sobre as duas partes do corpo do Senhor) e
Regra 7 (Sobre o Diabo e seu corpo) destacam a ambiguidade de certas figuras e imagens bíblicas.
Por exemplo, “o Senhor” pode se referir a Cristo ou à Igreja, enquanto referências ao Diabo podem significar o próprio Satanás ou seus seguidores.

Regra 4 (De specie et genere) que afirma que declarações sobre coisas específicas podem conter verdades gerais.
Regra 5 (Sobre o tempo) na qual os números podem simbolizar conceitos em vez de quantidades, e as referências ao tempo podem alternar entre previsão e descrição.
Regra 6 (Sobre recapitulação) explora ainda mais os múltiplos significados de elementos bíblicos, números e narrativas.
Diferentemente das outras, a Regra 3 (Sobre promessas e lei) aborda uma questão teológica: a compatibilidade da graça de Deus e do livre-arbítrio humano. Ticônio se baseia nos escritos do apóstolo Paulo para argumentar que a presciência perfeita de Deus permite tanto a graça quanto o livre-arbítrio.

O método interpretativo de Ticônio enfatizou padrões históricos em vez de princípios filosóficos. Salientou a harmonia entre a liberdade humana e a soberania de Deus e se concentrou em como Deus interage com o tempo humano. Sua abordagem à profecia bíblica foi particularmente inovadora, reinterpretando versículos sobre a Segunda Vinda como se referindo ao advento da Igreja.

A influência de Ticônio em Agostinho
Agostinho reconheceu o “Livro de Regras” de Ticônio em sua própria obra sobre interpretação bíblica, “Doutrina Cristã”. Empregou os métodos de Ticonio na “Cidade de Deus” para oferecer leituras não apocalípticas de passagens em Mateus e Apocalipse. O próprio conceito de Cidade de Deus Agostinho deve a Ticônio.

A visão de Ticônio da Igreja como um corpo misto de santos e pecadores forneceu a Agostinho munição contra a eclesiologia perfeccionista dos donatistas.

Mais significativamente, a interpretação de Ticônio sobre Paulo e seus pensamentos sobre graça e livre-arbítrio ressoaram com as próprias lutas de Agostinho. Embora Agostinho discordasse das visões específicas de Ticônio, ele adotou a ideia de que a história da salvação se desenrola tanto linearmente (por meio da narrativa bíblica) quanto internamente (por meio do crescimento espiritual individual).

Este encontro com Ticônio na década de 390 levou Agostinho a uma nova compreensão do eu, de Paulo e da narrativa bíblica, culminando em suas obras “Confissões”, “Contra Fausto”, “Comentário Literal sobre Gênesis” e “Cidade de Deus”.

Sui ipsius interpres

A frase latina sui ipsius interpres é uma fórmula doutrinária a qual postula que “as Escrituras interpretam as próprias Escrituras”.

Tal princípio hermenêutico popularizou-se com a Reforma, levando à rejeição de autoridades interpretativas externas às Escrituras. Assim, como a Bíblia interpreta a própria Bíblia, acendeu um foco interpretativo no próprio texto ao invés de formulações doutrinárias, tradição ou magistério da igreja.

O avanço da hermenêutica e da linguística do texto revelou certa limitação desse princípio. O contexto — tudo dentro e fora do texto capaz de elucidar o texto — foi reconhecido como crucial para uma acertada interpretação.

Halacá

Halacá ou Halakhah são os ensinamentos rabínicos quanto à conduta. Halakhah, derivada da raiz hebraica que significa “ir” ou “caminhar”, refere-se ao sistema abrangente de leis judaicas que regula a observância religiosa e a vida cotidiana dos judeus. Esse conjunto de normas engloba diretrizes legais, rituais e éticas que evoluíram desde os tempos bíblicos. Comumente traduzida como “lei judaica”, Halakhah também pode ser entendida como “o caminho a ser seguido”, destacando sua função como um guia para o comportamento em diversas áreas da vida, incluindo aspectos espirituais e cotidianos.

As fontes de Halakhah são classificadas em três principais categorias. A Torah Escrita, constituída pelos cinco primeiros livros da Bíblia Hebraica, contém os mandamentos e leis fundamentais. A Torah Oral, composta por interpretações e ensinamentos desenvolvidos ao longo do tempo, é considerada uma revelação paralela à Torah Escrita no Monte Sinai e inclui interpretações rabínicas e decisões legais. A legislação rabínica, elaborada ao longo da história, aborda circunstâncias e necessidades sociais que surgiram após o período bíblico. Essas leis podem ser subdivididas em mitzvot d’oraita, derivadas diretamente da Torah, e mitzvot d’rabbanan, instituídas pelos rabinos para aprimorar ou esclarecer a observância das leis da Torah.

O desenvolvimento da Halakhah é um processo dinâmico no qual os rabinos interpretam e adaptam as leis em resposta a mudanças nas circunstâncias. Esse processo é guiado por princípios hermenêuticos estabelecidos na era talmúdica. O Talmude registra debates entre sábios sobre decisões legais, resultando em consensos que moldam a prática haláchica contemporânea.

Ao longo dos séculos, textos fundamentais codificaram a Halakhah. O Mishneh Torah, de Maimônides, apresenta uma compilação abrangente da lei judaica. O Shulchan Aruch organiza as decisões haláchicas em formatos acessíveis para estudo e prática. O Mishnah Berurah fornece comentários ao Shulchan Aruch, oferecendo maior clareza sobre a observância. A Halakhah, assim, permanece como uma estrutura essencial para orientar a vida e os valores da comunidade judaica.