Carlos Mesters

Frei Carlos Mesters (nome de nascimento Jacobus Gerardus Hubertus Mesters) (1931) é um biblista e teólogo holandês-brasileiro, reponsável pelo desenvolvimento da Leitura Popular da Bíblia (LPB).

Mester veio ao Brasil como missionário em 1948, aos dezessete anos. Tornou-se frade carmelita e estudou em instituições católicas no Brasil, em Roma e Jerusalém. Voltou ao Brasil em 1968, lecionando e promovendo estudos acadêmicos da Bíblia. Mais tarde, dedicou-se à popularização das Escrituras, organizando círculos de leitura popular, dos quais emergiu o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos).

A hermenêutica de Mesters revolve em torno de cinco temas. A Bíblia é lida pela perspectiva do povo e mesmo dentro dela apresenta um povo leitor das Escrituras. Isso implica na legitimidade da leitura popular ou vivida, quer no cotidiano, quer na liturgia das leituras populares, em contraposição a uma exclusiva legitimidade de leitura acadêmica ou teológica. As Escrituras são um espelho da vida. Deus permite conhecer melhor a realidade e seus apelos mediante as Escrituras. Portanto, interpretar a Bíblia não é um fim em si mesmo, mas interpretação a vida por meio dela. A Bíblia é um livro escrito pelo povo mediante tradições e memórias populares e destinada para o povo. O povo lê a Bíblia com fé que Deus fala pelas Escrituras e sem essa fé não há luz para penetrar no sentido de suas páginas. A Bíblia move para um engajamento com os oprimidos. Consequentemente, a mensagem da Bíblia provoca a transformação da vida.

A cooperação dos três elementos Realidade (social) – Comunidade – Bíblia ajudam a fazer a interpretação correta.

BIBLIOGRAFIA

Rodrigues, Rafael. “Frei Carlos Mesters: uma Vida dedicada à Leitura Popular da Bíblia e aos pobres.”CEBI, 2020.

MESTERS, Carlos. Por trás das palavras. Um estudo sobre a porta de entrada no mundo da Bíblia. 8ª. edição, Petrópolis: Vozes, 1998.

MESTERS, Carlos. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. Petrópolis:  Vozes, 1983.

MESTERS, Carlos. Balanço de 20 anos. A Bíblia lida pelo povo na atual renovação da Igreja Católica no Brasil (1964-1984). São Leopoldo: CEBI, 1988.

MESTERS, Carlos. O Projeto Palavra-Vida e a leitura fiel da Bíblia de acordo com a tradição e o magistério da Igreja. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, nº 3, Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Imprensa Metodista, 1989, p.90-104.

Analogia scripturae

A analogia das Escrituras ou Analogia scripturae é um princípio interpretativo de que a Bíblia deve ser explicada mediante o contexto formado pelo conjunto canônico dos escritos da própria Bíblia.

Esse princípio não exclui o uso de referências léxicas, linguísticas, literárias, socioculturais, históricas e filosóficas externas às Escrituras. Antes, enfatiza a necessidade de considerar o caráter intertextual das Escrituras, visto sua abundante autorreferência.

Por vezes, a analogia das Escrituras é resumida pela máxima: “As Escrituras interpretam a si mesma.” (cf. 2 Pedro 1:19-20).

Dicta probantia

Dicta probantia ou método de leitura de provas é uma prática e técnica de interpretação bíblica que infere doutrinas a partir de versos isolados.

Enquanto a prática de citar isoladamente as Escrituras sempre existiu, como uma técnica interpretativa ganhou corpo durante a Reforma pela popularização das edições impressas com divisão de capítulos e versos da Bíblia.

Cada versículo é lido isoladamente como um artigo em uma legislação ou em um verbete de dicionário para provar um ponto de vista ou atender uma necessidade prévia.

A dicta probantia tornou-se popular na escolástica protestante e no confessionalismo a partir do final do século XVI até os meados do século XVIII. O avanço da hermenêutica como disciplina em parte foi pela crítica a essa técnica de leitura. O mal uso das citações longe de seu contexto é chamado de contextomia.

BIBLIOGRAFIA

Allen, Michael; Swain, Scott R. “In defense of proof-texting”. Journal of the Evangelical Theological Society (JETS). Vol. 54, n.3 set. 2011.

McGlone, Matthew S. “Quoted out of context: Contextomy and its consequences.” Journal of Communication 55.2 (2005): 330-346.

McGlone, Matthew S. “Contextomy: the art of quoting out of context.” Media, Culture & Society 27.4 (2005): 511-522.

Was Christum Treibet

Lucas Chranach, o velho. Pintura do altar de Wittenberg

A frase alemã was Christum treibet, “o que promove Cristo”, indica um princípio hermenêutico de Lutero.

A frase vem do prólogo de Lutero às Epístolas de Tiago e Judas, na sua edição alemã do Novo Testamento (1522):

E nisto todos os livros sagrados justos concordam, que todos pregam e praticam Cristo, e esse é o verdadeiro teste de censurar todos os livros, quer praticam Cristo ou não, pois toda a Escritura mostra Cristo, Romanos 3 e Paulo não quer saber nada mas Cristo 1 Cor. 2. O que Cristo não ensina não é apostólico, ainda que Pedro ou Paulo o ensinem. Novamente, o que Cristo prega é apostólico, mesmo que Judas, Anás, Pilatos e Herodes o tenham feito”.

As implicações desse princípio afetam no conceito de canonicidade, na interpretação bíblica e na homilética luteranas.

A tradição evangélica luterana nunca oficialmente fez um cânone das Escrituras. Nem seria necessário. Por esse princípio, tudo o que aponta para Cristo nas Escrituras hebraicas seriam canônicos e tudo que testificam o ministério de Cristo dentre os escritos apostólicos seria canônico. Em razão disso, Lutero questionou a canonicidade de Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse — os Antilegômenos de Lutero– ainda que os traduzisse e inserisse em seu Novo Testamento.

Quanto à interpretação, essa chave hermenêutica cristocêntrica poupou o luteranismo de muitas controvérsias teológicas. Isso porque passou ser uma hermenêutica centrada na totalidade da mensagem, não em detalhes. Consequentemente, o luteranismo mantém os mesmos documentos confessionais desde o século XVI: o livro de Concórdia.

Lutero entendia que a pregação deveria ser fundamentada nas Escrituras, apontando para Cristo e voltada para o povo. Pregar seria colocar as pessoas em contato com a mensagem de salvação em Jesus Cristo testemunhada pelas Escrituras.

BIBLIOGRAFIA

Jacobson, Diane. “What Lutherans Think About the Bible. Here We Stand — Between Fundamentalism and Secularism”. Book of Faith.

Lutero, Martinho. WA, DB VII 38.

Meurer, Siegfried. “Was Christum Treibet” : Martin Luther Und Seine Bibelübersetzung. Bibel Im Gespräch, 4. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1996.

Sensus Literalis 

Sensus Literalis é uma interpretação percebida diretamente do texto. Como conceito, mudou ao longo da história da hermenêutica, demandando compreendê-lo em oposição a outras abordagens de leitura.

O sensus literalis corresponde à peshat, “simples, direta” da exegese rabínica, em contraste com a interpretação darash, que seria a interpretação aplicada, moral ou homilética.

A distição paulina entre a “letra” e o “espírito” (2 Co 3:6; Rm 2:29; 7:6) influenciou os exegetas cristãos a distinguir entre a “letra” e o “espírito”, por vezes, em sentido antitético. Parte daí uma distinção entre os sentidos “literal” e “espiritual” das Escrituras, como fez Orígenes e a Escola de Alexandria valorizando mais a leitura espiritual e a Escola de Antioquia o sentido literal.

O uso abusivo de tipologia e alegorização para inferência doutrinária, por vezes disfarçado de um elitismo “espiritual”, levou a exegetas medievais contraporem o sensus literalis à “alegoria” (em um sentido amplo). Intérpretes judeus como Rashi ou cristãos como Nicolau de Lyra e os biblicistas de Paris arguiram a primazia do sensus literalis.

Na Reforma e no Renascimento o sensus literalis passou a significar o sentido extraído do texto por meios exegéticos. Isso não implicava na rejeição de sentidos figurados, a exemplo a tipologia, por autores como Lutero ou Calvino.

A escolástica protestante, o pietismo e o racionalismo levantou uma distinção entre sensus literae — o sentido da letra ou gramatical — e o sensus literalis, o qual seria o sentido exegético.

A consolidação dos métodos histórico-crítico e histórico-gramatical no século XIX sob um paradigma positivista. Isso implicava em reduzir o sentido literal a uma única leitura possível com a máxima Sensus literalis unus est, o “sentido literal é um”. Para tar conta das diferentes interpretações das mesmas passagens na exegese intra-bíblica, a distinção entre interpretação e aplicação veio a calhar. A busca pela reconstrução histórica e a atomização de passagens em enunciados ou palavras também foi característico desse sensus literalis. Nessas abordagens surgiu uma premissa de que o texto dado da Escritura oferece apenas um sentido genuíno, o sentido literal.

Desde essas abordagens historicizantes, o termo sensus literalis tem sido usado como sentido original, literalismo e sentido histórico. Crítica a essas acepções e abordagens foram feitas principalmente por Brevard Childs e Hans Frei, bem como pela crítica literária.

Sensus literalis e sensus originalis. Uma infeliz fusão do sensus literalis com a busca pelo significado original da situação da composição, da intenção do autor e da recepção das primeiras audiências. Desse modo, o texto bíblico não é interpretado pelo sentido que transmite, mas passa a ser “escavado” para alcançar um suposto estrato de originalidade. Em resposta a essa fusão, as hermenêuticas canônica e narrativa lidam com essa questão.

Não há relação necessário entre o sensus literalis e o literalismo. Ao contrário disso, o sensus literalis permite uma hermenêutica pós-crítica, pois reconhece a integridade do texto e sua mensagem comunicada em seus próprios termos. Ou seja, valoriza o contexto (o cotexto na terminologia de Ingedore Koch) interno. Desse modo, o sensus literalis consideraria o texto bíblico como uma representação legítima daquilo que é comunicado, com todas as nuances, variações de estilo, expressões dos gêneros e arranjos entre sentidos denotativos e conotativos.

Sensus literalis e sensus historicus. O sensus literalis não corresponde necessariamente à historicidade. Na Bíblia, eventos, experiências e conceitos são registrados de forma literária, sendo em grande parte em gêneros narrativos. Tanto passagens de ficcão (como parábolas) quanto relatos históricos (a queda de Jerusalém, por exemplo) são representados com textos de caráter literário. Há, portanto, uma independência entre os fatos históricos e a expressão textual bíblica, com o sensus literalis expressando esse entendimento da Bíblia lida como literatura.

Notando que o sensus literalis compreende uma amplitude de gêneros textuais, linguagens figuradas e denotativas, Childs argumenta que o sensus literalis deveria ser entendido como a interpretação de uma passagem em seu contexto canônico.

O renovado interesse de estudiosos da literatura como Erich Auerbach, Robert Alter e Northrop Frye pela Bíblia levou à apreciação do sensus literalis como sentido literário, compreendendo toda a diversidade e complexidade interna das Escrituras. Nessa acepção, o sensus literalis contrasta-se com o sentido produzido por investigações histórico-crítica, confessionais ou teológicas.

Reconhecendo os diversos gêneros textuais e a predominância de um arco narrativo, Hans Frei criticou a negligência de desconsiderar a narrativa na Bíblia na teologia e ciências bíblicas. Frei propunha um respeito pós-crítico pelo sensus literalis das Escrituras, o qual ofereceria uma direção humana e ortodoxa para a Igreja.

BIBLIOGRAFIA

Agostinho. De spiritu et littera.

Broadhurst, Jace R. What Is the Literal Sense? : Considering the Hermeneutic of John Lightfoot. Eugene, Or.: Pickwick Publications, 2012.

Childs, B. S. “The Sensus Literalis of Scripture: An Ancient and Modern Problem,” Beiträge zur alttestamentlichen Theologie: Festschrift für Walther Zimmerli zum 70. Geburtstag (ed. H. Donner, R. Hanhart and R. Smend) Göttingen: Vandenhoeck and Ruprecht, 1977, pp. 80-93.

Fabiny, Tibor. “The Literal Sense and the” Sensus Plenior” Revisited.” Hermathena 151 (1991): 9-23.

Loughlin, Gerard. “Following to the Letter: The Literal Use of Scripture.” Literature and Theology 9, no. 4 (1995): 370–82.

Noble, Paul R. “The ‘Sensus Literalis’: Jowett, Childs, and Barr.” The Journal of Theological Studies 44, no. 1 (1993): 1–23.

Scalise, Charles J. “The ‘Sensus Literalis’: A Hermeneutical Key to Biblical Exegesis.” Scottish Journal of Theology 42, no. 1 (1989): 45–65. https://doi.org/10.1017/S0036930600040527.