Regras de Fé de Irineu

Irineu de Lyon (c. 130 – 202) foi um bispo da cidade de Lyon, mas de origem grega da Ásia Menor. Em seu livro Contra as Heresias registra váras regras de fé ou credos, atestando o que era crido pelas igrejas no final do século II.

O sistema teológico de Irineu foi formado pela sua tradição joanina e pela apologética. Sua apologética voltava-se principalmente para o debate com posições marginais consideradas heréticas. Em suma, asseverava a divindade e humanidade de Cristo e centrava sua obra de salvação em um ato de recapitulação. O Criador do cosmo é o mesmo Deus Pai. Cristo concentra o universo, ou seja, em si estão os seres humanos e toda a criação. Jesus Cristo recapitulou toda a história desastrosa das imperfeições desse mundo, mas sua repetição foi vitoriosa. Assim, possibilita a união final da criação com Deus, garantido a redenção.

Essa regra ou medida de fé foi transmitida pelos apóstolos aos bispos e seria a doutrina explícita ensinada nas Escrituras, aceita publicamente pelas igrejas de diversos lugares. Em contraste, não seria as doutrinas supostamente secretas ensinadas em círculos heréticos.

“Em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do céu, da terra, do mar e de tudo o que neles há; e em um Cristo Jesus, o Filho de Deus, que se encarnou para nossa salvação; e no Espírito Santo, que proclamou pelos profetas as dispensações de Deus, e os adventos, e o nascimento de uma virgem, e a paixão, e a ressurreição dos mortos, e a ascensão ao céu na carne do amado Cristo Jesus, nosso Senhor, e Sua [futura] manifestação do céu na glória do Pai para reconciliar todas as coisas em uma, e para levantar novamente toda a carne de toda a raça humana, a fim de que a Cristo Jesus, nosso Senhor e Deus, Salvador e Rei, de acordo com a vontade do Pai invisível, todo joelho se dobre, das coisas nos céus, e das coisas na terra, e das coisas debaixo da terra, e que toda língua confesse a Ele, e que Ele executará um juízo justo a todos; para que Ele possa lançar as malificiências espirituais, e os anjos que transgrediram e se tornaram apóstatas, juntamente com os ímpios, injustos, maldosos e profanos entre os homens, para o fogo eterno; mas pode, no exercício de Sua graça, conferir imortalidade aos justos e santos, e àqueles que guardaram Seus mandamentos e perseveraram em Seu amor, alguns desde o início [quando receberam o evangelho] e outros desde seu arrependimento, e pode abraçá-los com glória eterna.”(Ad Haer. 1.10).

E mais adiante em seu livro:

“Ao qual concordam muitas nações daqueles bárbaros que acreditam em Cristo, tendo a salvação escrita em seus corações pelo Espírito, sem papel ou tinta, e, preservando cuidadosamente a antiga tradição, acreditando em um Deus, o Criador do céu e da terra, e todas as coisas nele, por meio de Cristo Jesus, o Filho de Deus; que, por causa de Seu amor insuperável para com Sua criação, condescendeu em nascer de uma virgem, Ele mesmo unindo o homem por Si mesmo a Deus, e tendo padecido sob Pôncio Pilatos, e ressuscitado, e tendo sido recebido em esplendor, virá em glória, o Salvador dos que são salvos, e o Juiz dos que são julgados, e enviando para o fogo eterno aqueles que transformam a verdade e desprezam Seu Pai e Seu advento. Aqueles que, na ausência de documentos escritos, acreditaram nesta fé, são bárbaros, no que diz respeito à nossa língua; mas no que diz respeito à doutrina, maneira e teor de vida, eles são, por causa da fé, muito sábios; e eles agradam a Deus, ordenando sua conversa em toda retidão, castidade e sabedoria.” (Ad Haer. 3.4).

E por fim,

“Ele também julgará aqueles que dão origem a cismas, que são destituídos do amor de Deus e que olham para sua própria vantagem especial em vez da unidade da Igreja; e que por razões insignificantes, ou qualquer tipo de razão que lhes ocorre, cortam em pedaços e dividem o grande e glorioso corpo de Cristo, e tanto quanto neles reside, [positivamente] o destroem – homens que tagarelam sobre a paz enquanto eles dão origem à guerra e, na verdade, coam um mosquito, mas engolem um camelo. Pois nenhuma reforma de tão grande importância pode ser efetuada por eles, como compensará o dano decorrente de seu cisma. Ele também julgará todos aqueles que estão fora dos limites da verdade, isto é, que estão fora da Igreja; mas ele mesmo não será julgado por ninguém. Pois para tal homem todas as coisas são consistentes: ele tem uma fé plena em um só Deus Todo-Poderoso, de quem são todas as coisas; e no Filho de Deus, Jesus Cristo nosso Senhor, por quem são todas as coisas, e nas dispensações relacionadas com Ele, por meio das quais o Filho de Deus se tornou homem; e uma firme crença no Espírito de Deus, que nos fornece o conhecimento da verdade e estabeleceu as dispensações do Pai e do Filho, em virtude das quais Ele habita com cada geração de homens, de acordo com a vontade do Pai.” (Ad Haer 4.33).

Teoria da recapitulação

A teoria da recapitulação é uma das antigas perspectivas para explicar a obra de expiação ou reconciliação que Cristo proporcionou em benefício da criação.

O evento primário da expiação é a entrada de Deus na vida humana na encarnação (João 1:14. 18; 12:46; Rm 5:15-21; Hb 2:10). Um dos textos centrais para essa doutrina é Efésios 1:10:

E o plano é este: no devido tempo, ele reunirá [anakephalaiōsasthai, recapitulará] sob a autoridade de Cristo tudo que existe nos céus e na terra. NVT

Recapitulação tem vários sentidos, mesmo dentro dos escritos de Irineu de Leão (c. 130 – c. 200), seu principal proponente. Referente à doutrina da expiação, segundo Irineu, Cristo recapitulou a história cósmica como o novo representante da humanidade. Não por menos recapitulare (anakefalaiosis) significa “recolocar a cabeça”. Tal como Adão, Jesus foi o representante da humanidade nesse grande plano da criação. Diferente do imperfeito Adão, Cristo era perfeito; portanto, capaz de redimir toda a criação.

Recapitulação também é o sumário, o apanhado geral ou a culminação de tudo que veio antes. Fazia parte do plano de redenção desde o princípio recapitular todas coisas por Cristo a partir da encarnação. A criação e a redenção consumam-se em uma união plena.


“Por causa de seu amor incomensurável, Ele se tornou o que somos para permitinos a nos tornarmos o que Ele é.”

Irineu. Contra as Heresias, 5.


Quando o Logos tornou-se humano a natureza humana foi restaurada porque a vinda de Cristo alterou drasticamente toda a história e pessoa humana.

Numa das primeiras compreensivas exposições sobre a expiação, Atanásio (c. 297 – 373) (A encarnação do Verbo 2,9; 4,20) aborda a recapitulação dentre outras teorias.

Vale notar que nem Irineu ou Atanásio ficaram restritos a uma teoria. Na realidade, Irineu descreve a salvação de três modos: como a conquista do inimigo da humanidade; como nos tornando participantes da incorruptibilidade; e como somos participantes na adoção como filhos. Observe em particular a ligação entre incorrupção e adoção. Ambos Irineu e Atanásio empregam terminologia sacrificial ao falar da obra de Cristo, mencionam a derrota de Satanás por Cristo e a libertação da humanidade do poder escravizador de Satanás. Finalmente, vale atentar-se que eles não articulararam a doutrina da reconciliação de forma sistemática.

A doutrina da recapitulação seria base para posteriores reformulações. Por considerar toda a criação redimida por Cristo, essa doutrina tem escopo atemporal e progressivo. Ou seja, não restringe os efeitos da obra reconciliatória em determinadas economias (fases) da história de salvação. Também, é base para a doutrina da teose e da soteriologia ortodoxa oriental.

Uma variante comum na era patrística é chamada de “teoria física”. Fundamentada no conceito neoplatônico de que todos os seres humanos estão conectados por meio de sua natureza comum ou physis, o Logos encarnou-se e assim restaurou a natureza humana à perfeição. Desse modo, o ser humano viveria uma vida sem pecado e totalmente centrada em Deus, restaurada automaticamente a natureza humana. No entanto, esta perspectiva tem uma dificuldade quando contradita pela contínua pecaminosidade e pelo problema do mal ainda facilmente atestáveis.

As doutrinas posteriores no cristianismo centraram a expiação (reconciliação) mais na morte e ressurreição de Cristo. Contudo, aspectos da teoria governamental e na soteriologia transformativa refletem elementos da teoria da recapitulação.

BIBLIOGRAFIA

Atanásio. A encarnação do Verbo.

Irineu. Contra as heresias.

Boersma, Hans. “Justification within Recapitulation: Irenaeus in Ecumenical Dialogue.” International Journal of Systematic Theology: IJST 22, no. 2 (2020): 169-90. 

Hart, Trevor A. “Irenaeus, Recapitulation and Physical Redemption” in Hart, Trevor A.; Thimell, Daniel P. (eds.) Christ in our place: the humanity of God in Christ for the Reconciliation of the World. Essays presented to professor James Torrance. Exeter: Paternoster, 1989.

Steenberg, M. C. Irenaeus on Creation: The Cosmic Christ and the Saga of Redemption. Vol. V. 91. Supplements to Vigiliae Christianae. Leiden: Brill, 2008. 

Williams, David T. “Another Look at Recapitulation.” Pharos Journal of Theology, 101 (2020).