Paulo apresenta à igreja em Roma a doutrina que prega: que na justificação pela fé a confiança em Cristo Jesus seria suficiente para a salvação (10:9) do povo de Deus, a qual ocorre sem depender de adesão às normas ou de pertencimento a grupo religioso.
UM PANORAMA DA EPÍSTOLA AOS ROMANOS
A mais teologicamente complexa epístola de Paulo revela um desacordo entre cristãos judeus e gentios que ameaçavam a unidade da igreja. O imperador Cláudio expulsou os judeus de Roma (At 18:2) em alguma data entre 41 e 53 d.C. Com o retorno dos judeus, a Igreja em Roma passava agora contar com uma parte gentia mais estabelecida e um influxo migrante de cristãos judeus.
Essas diferenças teriam levado às tensões entre os dois grupos quanto às práticas cultuais e requisitos de salvação, tais como a observância da circuncisão e das restrições alimentares. A questão subjacente nessa tensão entre os dois grupos seria “o que é ser justo diante de Deus”?
A questão já havia sido tratada por Paulo na epístola aos Gálatas. Paulo, que na ocasião não tinha ainda estado em Roma, apresenta seu evangelho: ser justo diante de Deus não depende de adesão às normas rituais ou pertencimento a grupos. Isso porque a justiça para Deus foi obtida pela obra de Cristo.
Como é Deus quem proporciona essa justiça, Paulo defende a tolerância às diferença, especialmente aos “fracos” (15:1) que se apegavam às normas judaicas como segurança para salvação. Assim, deixando o cumprimento dessas normas à liberdade de consciência, cristãos judeus e gentios viveriam unidos pela fidelidade/confiança (pistis) comum em Jesus. Essa reconciliação proporcionada em Cristo Jesus implica em considerar uns aos outros fraternalmente.
A epístola serve de carta de apresentação de Paulo e de sua mensagem. Sendo a Igreja na cidade central do império, era importante o apoio dela para sua missão. Escrita durante sua estada em Corinto (c.57-58 d.C.), Paulo se hospedava na casa de Gaio (Rm 16:23) e empregou o trabalho de um redator ou amanuense, Tércio (Rm 16:22). De lá a carta seria levada pela diaconisa Febe (Rm 16:1).
A epístola aos Romanos constitui o mais detalhado tratamento da relação entre Israel e a Igreja no Novo Testamento. Também revela o caráter proeminente das mulheres na Igreja em Roma.
ESBOÇO ESTRUTURADO
- Introdução (1:1-17).
- Israel e os gentios compartilham a esperança de salvação (1:18-8:37)
- Condenação comum de Israel e dos gentios (1:18-3:19)
- Justificação em Cristo serve tanto a Israel quanto aos gentios (3:20-5:21)
- Santificação (6:1-7:25)
- Glorificação (8:1-37).
- O povo de Israel na obra de Jesus Cristo (9:1-11:32).
- Doxologia (11:33-36) – transição
- Efeitos da justiça de Deus na vida cotidiana dos crentes (12:1-15:13).
- A vida em Cristo é o sacrifício requerido (12)
- O amor recíproco (13)
- A coexistência tolerante (14)
- Conclusão
- Planos de viagem (15:14-29)
- Conclusão (15:30-33)
- Pós-escrito com recomendações, saudações, advertência contra falsos mestres (16:1-23)
- Encerramento (16:25-27).
TEMAS EM ROMANOS
Vários exegetas salientam um ou outro tema da Epístola.
Em sua leitura de Romanos, Barth enfatiza a soberania de Deus e sua graça. Para Barth, Romanos exemplifica a centralidade de Jesus Cristo na salvação, rejeitando as visões protestantes tradicionais da justificação pela fé focada no ser humano. Na epístola, a graça de Deus não é uma resposta ao mérito ou anseio humano, mas é fruto da graça, ou seja, dada livremente como um dom. A fé em Jesus Cristo é a confiança nessa obra de graça. No comentário de Barth sobre Romanos destaca a natureza radical da graça de Deus e desafia os leitores a reconsiderar suas suposições sobre a salvação e a natureza de Deus.
Expiação: Joel B. Green identifica quatro imagens primárias da expiação no livro de Romanos:
- Redenção (Romanos 3:24): Esta imagem enfatiza a ideia de que a humanidade é escravizada pelo pecado e precisa ser resgatada. A morte de Cristo na cruz é o pagamento que liberta a humanidade do pecado e do diabo.
- Justificação (Romanos 3:21-26): Esta imagem enfatiza a ideia do perdão legal. Pela fé em Cristo, a humanidade é declarada “inocente” diante de Deus, e a penalidade pelo pecado é paga integralmente.
- Reconciliação (Romanos 5:10-11): Esta imagem enfatiza a ideia de restaurar um relacionamento rompido. Através da morte de Cristo, a humanidade é reconciliada com Deus, e a inimizade entre Deus e a humanidade é removida.
- Participação (Romanos 6:1-14): Esta imagem enfatiza a ideia de participação na morte e ressurreição de Cristo. Através do batismo, os crentes participam da morte e ressurreição de Cristo, morrendo para o pecado e ressuscitando para uma nova vida em Cristo. Esta participação capacita os crentes a viver uma nova vida de obediência a Deus.
De acordo com E. Elizabeth Johnson, a epístola de Romanos enfatiza a fidelidade da aliança de Deus a Israel de várias maneiras:
- Eleição: Paulo afirma que Deus escolheu Israel como um povo especial e que os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis (Romanos 9:4-5, 11:29). A eleição de Israel por Deus não é baseada em seu mérito ou justiça, mas na própria escolha soberana de Deus.
- Fidelidade: Apesar da infidelidade de Israel, Deus permanece fiel às promessas da aliança feitas a Israel (Romanos 3:3-4). Essa fidelidade é demonstrada por meio do envolvimento contínuo de Deus na história de Israel e por meio do plano final de Deus para salvar Israel por meio de Cristo.
- Inclusão: Paulo enfatiza que a salvação é tanto para judeus quanto para gentios, e que a aliança de Deus com Israel inclui todos os que têm fé em Cristo (Romanos 3:29-30, 9:24-26). A inclusão dos gentios no plano de salvação de Deus não substitui Israel, mas cumpre a promessa de Deus de abençoar todas as nações por meio dos descendentes de Abraão.
- Escatologia: A visão escatológica de Paulo inclui a salvação de Israel como um todo (Romanos 11:26), quando “todo o Israel será salvo” por meio de Cristo. Esta salvação não é baseada na obediência de Israel à lei, mas na misericórdia e graça de Deus.
De acordo com Grieb, a justiça de Deus em Romanos pode ser entendida tanto como uma dádiva quanto como uma exigência. Por um lado, a justiça de Deus é um dom dado gratuitamente àqueles que têm fé em Jesus Cristo. Este presente não é algo que pode ser conquistado por meio de boas obras ou mérito pessoal, mas é concedido como um ato de graça.
Por outro lado, a justiça de Deus também é uma exigência que requer uma resposta daqueles que a receberam. Essa exigência envolve viver uma vida de obediência à vontade de Deus e participar da obra contínua do reino de Deus.
Grieb também observa que o conceito da justiça de Deus em Romanos está intimamente ligado à ideia de justiça. Na justiça de Deus, a justiça é mantida e cumprida. Isso significa que a justiça de Deus não é apenas um conceito teológico abstrato, mas tem implicações concretas em como vivemos nossas vidas e tratamos os outros, ou seja, retidão.
De acordo com Watson, a Lei em Romanos pode se referir a várias coisas diferentes, dependendo do contexto em que é usada. Em alguns casos, refere-se à Torá, ou a lei judaica, que inclui mandamentos e regulamentos para adoração e vida diária. Em outros casos, refere-se a um sentido mais geral da lei moral, acessível a todas as pessoas, independentemente de sua formação religiosa.
Watson argumenta que a Lei é um tema-chave em Romanos, servindo como um ponto de tensão entre judeus e gentios e entre as tentativas humanas de justiça e o dom da graça de Deus. Ele observa que o entendimento de Paulo sobre a lei é complexo e cheio de nuances, e que o apóstolo não se opõe simplesmente à lei como tal, mas sim critica as tentativas humanas de usar a lei como um meio de alcançar a justiça ou a salvação.
BIBLIOGRAFIA
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