Univocidade bíblica

A univocidade bíblica, pressuposto de que a Bíblia expressa um único paradigma teológico e eclesiástico, permeia a história da interpretação textual. Essa crença, presente em diversas comunidades de fé, serve a alguns intérpretes para a síntese de textos separados por séculos e concepções de mundo díspares, buscando extrair doutrinas e diretrizes administrativas como se fosse uma só vontade divina. Assume-se que a Bíblia contém uniformemente toda a informação necessária para a institucionalização e administração da comunidade, justificando a busca por uma coerência interna absoluta.

Essa busca pela univocidade se manifesta em tentativas de homogeneizar as teologias de culturas e povos historicamente distintos. Textos do Antigo Testamento, por exemplo, são frequentemente interpretados à luz do Novo Testamento, obscurecendo suas particularidades e nuances. As diversas vozes e perspectivas presentes no cânone bíblico são, assim, silenciadas em prol de uma leitura harmonizada, que visa legitimar uma determinada tradição ou estrutura de poder.

Em contrapartida à univocidade bíblica, a teologia bíblica busca compreender a teologia inerente a cada gênero textual, perícope, livro e corpus bíblico delimitado. Em contraste com a teologia sistemática, que organiza as doutrinas por tópicos, a teologia bíblica se preocupa em traçar o desenvolvimento do pensamento teológico dentro do próprio texto bíblico, respeitando a progressão histórica e os diferentes contextos literários.

Tanto as ciências bíblicas quanto a teologia sistemática acadêmica consideram o caráter multivocal dos textos bíblicos. Dada a diversidade de culturas, contextos, gêneros há textos bíblicos dialogam entre si, reinterpretando e recontextualizando temas e tradições. Um exemplo são os usos que Hebreus 8:8-12; 10:16-16; 2 Coríntios 3:3; Romanos 2:28-29 fazem de Jeremias 31:31, delocando a promessa original de restauração nacional presente em Jeremias para recontextualizá-la como uma promessa messiânica.

A hermenêutica pentecostal, principalmente no âmbito de culto, considera a multivalência interpretativa pela guia do Espírito Santo. Assim, ao invés de um pressuposto de univocidade atemporal, a hermenêutica pentecostal clássica pressupõe uma polifonia de perspectivas internas no texto bíblico:

A hermenêutica da renovação envolve um perspectivismo polifônico moldado pela multiplicidade de leituras “de baixo para cima” que estão abertas à iluminação do Espírito. (Yong, 2007, pp. 25-26)

A univocidade bíblica, embora facilite a construção de sistemas teológicos coerentes, é uma falácia hermenêutica que ignora a complexidade e a riqueza do texto sagrado. A Bíblia, como produto de diferentes épocas e contextos, apresenta tensões e contradições que não permitem qualquer leitura simplista. Reconhecer essa diversidade é essencial para uma interpretação mais plausível e honesta, que respeite a integridade de cada texto e sua mensagem.

BIBLIOGRAFIA

McClellan, Daniel O. “On the Univocality of the Bible.” Daniel O. McClellan (blog), August 18, 2009. https://danielomcclellan.wordpress.com/2009/08/18/on-the-univocality-of-the-bible/.

Yong, Amos. “Poured Out on All Flesh.” PentecoStudies 6, no. 1 (2007): 16-46.

VEJA TAMBÉM

Diálogo com Trifo

O Diálogo com Trifo ou Diálogo de Trifão é uma obra cristã apologética composta por Justino Mártir no século II.

Justino teria debatido com o um judeu, Trifo ou Trifão. Talvez seja uma personagem criada meramente para fins literários, mas há a possibilidade de seja o quase contemporâneo rabino Tarfão.

No Diálogo, Justino argumenta que o cristianismo é a nova lei para todos os homens, além de fundamentar nas Escrituras que Jesus é o Messias.

É a primeira grande obra da tipologia cristã, também um registro do embate entre o cristianismo e do nascente judaísmo rabínico. Nela, elabora sua doutrina do Logos, que, como Cristo, esteve presente em muitas epifanias do Antigo Testamento e garante a unidade da inspiração das escrituras. Por vezes, sua interpretação tipológica não faz jus ao texto citado. Acabou por influenciar o modo de recepção cristã do Antigo Testamento até o advento da exegese crítica.

Diálogo de Timóteo e Áquila

O Diálogo de Timóteo e Áquila é uma obra apologética cristã.

Em gênero textual de um diálogo, semelhante ao Diálogo de Trifão de Justino Mártir, registra um debate literário entre Timóteo, um cristão, e Áquila, um judeu. Foi escrito em grego na segunda metade do século VI, ou final do século V, sendo uma das últimas obras desse gênero de debate adversus Iudaeos da Antiguidade cristã. O debate é ambientado em Alexandria, durante o episcopado de Cirilo, entre 412 e 444.

Cânone

Este diálogo, atesta familiaridade com a Septuaginta, as versões gregas de Áquila, Teodotion e Símaco. Para fins de debate, estabelece (3.9-20) como dotados de autoridade (e pertencente ao cânone) os seguintes livros:

Livros Canônicos (Antigo Testamento):

  1. Gênese (ditado por Deus e escrito por Moisés)
  2. Êxodo (ditado por Deus e escrito por Moisés)
  3. Levítico (ditado por Deus e escrito por Moisés)
  4. Números (ditado por Deus e escrito por Moisés)
  5. Deuteronômio (diz que não foi ditado por Deus nem escrito por Moisés ou depositado na arca)
  6. Josué (Jesus filho de Num)
  7. Juízes com Rute
  8. 1 Crônicas e 2 Crônicas
  9. 1 Samuel (1 Reinos) e 2 Samuel (2 Reinos)
  10. 1 Reis (3 Reinos) e 2 Reis (4 Reinos)
  11. Salmos (Saltério de David)
  12. Provérbios de Salomão com
  13. Eclesiastes com Cantares de Salomão (Cânticos)
  14. Os Doze Profetas (Profetas Menores)
  15. Isaías
  16. Jeremias
  17. Ezequiel
  18. Daniel
  19. Esdras (com Neemias?)
  20. Judite
  21. Ester

Considerados apócrifos, mas provavelmente aceito para o diálogo.

  1. Tobias
  2. Sabedoria de Salomão
  3. Siraque

Novo Testamento

  1. O Evangelho (um único livro?)
  2. Atos dos Santos Apóstolos
  3. Epístolas dos Apóstolos (seriam as epístolas católicas?)
  4. Epístolas do Apóstolo Paulo (conta como 15 delas, sem mencionar os títulos)

O diálogo sugere que estes livros são considerados canônicos. No entanto, é importante notar que o diálogo não especifica quais livros específicos estão incluídos em categorias como “Epístolas dos Apóstolos” e “Epístolas do Apóstolo Paulo”. A lista também reconhece a existência de livros apócrifos, que não são considerados parte dos textos canônicos. A ordem dos livros do Antigo Testamento também é incomum. Apesar de não considerar a origem divina ou mosaica de Deuteronômio, considera-o canônico.

Faz também uma das primeiras referências a manuscritos escondidos no Deserto da Judeia.

O cristão disse: Mencionei este assunto porque também existem outros livros apócrifos, pois eles também estão incluídos na aliança de Deus, traduzidos pelos 72 tradutores hebreus, assim como por Áquila, Símaco e Teodocião, além de outras duas versões encontradas escondidas em jarros, uma em Jericó e outra em Nicópolis (que é Emaús), embora não saibamos quem as traduziu, pois foram descobertas nos dias da desolação da Judeia sob Vespasiano. Diálogo de Timóteo e Áquila, 3.8-3.10.

BIBLIOGRAFIA

Rigolio, Alberto. Christians in Conversation: A Guide to Late Antique Dialogues in Greek and Syriac. Oxford University Press, 2019.

Diálogo de Jasão e Papisco

O Diálogo de Jasão e Papisco é uma obra apologética cristã perdida.

O diálogo, em grego, descrevia o diálogo de um judeu convertido, Jasão, e um judeu alexandrino, Papisco. O texto é mencionado pela primeira vez, criticamente, no Relato Verdadeiro do escritor anticristão Celso (c. 178 dC).

Uma escólia fragmentada de Máximo, o Confessor, observa que
Clemente de Alexandria considerava Lucas como o autor deste diálogo.

A obra faz parte dos textos apologéticos em formato de diálogos, tal como o Diálogo de Trifão de Justino Mártir, Diálogo de Atanásio e Zaqueu e o Diálogo de Timóteo e Áquila.