Infalibilidade

O conceito de infalibilidade descreve diversas doutrinas de autoridade, sendo tal conceito atribuído às Escrituras, à Igreja e ao papado.

A infalibilidade da Igreja e a infalibilidade do Papa, na tradição católica romana, são tratados em verbetes próprios. Segue aqui uma exposição sobre a doutrina da infalibilidade bíblica.

Infalibilidade das Escrituras

A infalibilidade bíblica é a doutrina de que as Escrituras ensina de modo fiel e verdadeiro as matérias de fé e prática. Pela infalibilidade das Escrituras, há a confiança que sua mensagem cumpra totalmente seu propósito de comunicar a revelação de Deus em Cristo de modo que seu receptor não falhe em compreender a salvação.

Vários são os textos bíblicos apresentados para sustentar a infalibilidade bíblica, como João 10:35; Salmos 119:160; Eclesiastes 12:10; Romanos 1:16; 9:1; 3 João 1:12.

O bibliólogo Donald Bloesch (1994) articula a doutrina da infalibilidade bíblica centrada no modo como as palavras são empregadas pelo Espírito de Deus nas Escrituras. A veracidade e confiabilidade das Escrituras encontram sua fundação na revelação histórica e na orientação do Espírito Santo. Portanto, a infalibilidade é derivada da verdade divina. A infalibilidade do texto bíblico é plenamente realizada quando vista em relação ao seu centro divino, a autorrevelação de Deus em Jesus Cristo. Apesar da descontinuidade entre a fala humana e a Palavra de Deus (ainda que a natureza humana seja falível na expressão textual); há a mensagem que em si permanece infalível, apontando os crentes para a encarnação perfeita da verdade em Jesus Cristo. Essa dualidade destaca o mistério impenetrável da Bíblia, simultaneamente divino e humano.

Em uma analogia, Bloesch explica que Escritura seria o instrumento ou meio de revelação inspirado. Seria como uma lâmpada, mas não a luz em si, capaz de eficazmente cumprir seu propósito de iluminar (infalibilidade). A infalibilidade bíblica seria incapacidade inerente das Escrituras de levar ao engano ou desvio. Seria a qualidade inabalável de guiar os crentes à verdade revelada por Deus. (Bloesch 1994).

A autoridade das Escrituras deriva-se de sua relação com a Palavra viva (Cristo Jesus). Sua autoridade não se derivaria em virtude de sua historicidade ou facticidade ou modelos de veracidade fundamentados em proposições ou correspondência. A verdade das Escrituras só é compreendida em relação a Cristo pela obra do Espírito Santo, não por qualquer hermenêutica racionalista.

A Bíblia exibe uma infalibilidade funcional em seu papel como regra suprema de fé, conduta e adoração. Essa infalibilidade não é autossuficiente, mas é transmitida pelo poder do Espírito, garantindo que os crentes tenham acesso à verdade infalível. Os Reformadores viam a Bíblia como a regra infalível para a fé e a prática, dependendo da iluminação do Espírito Santo para uma compreensão verdadeira.

A natureza dual da Bíblia revela tanto o esplendor divino quanto a fraqueza humana. Ela utiliza elementos humanamente falíveis devido a limitações culturais e históricas, mas permanece infalível ao transmitir a vontade e o propósito de Deus. A imperfeição das palavras humanas é transcendida pela verdade e poder da infalibilidade divina, afirmando que a Bíblia contém a Palavra perfeita de Deus em palavras humanas imperfeitas.

Perspectivas diversas e história da doutrina da infalibilidade

Diversas perspectivas teológicas contribuíram para o discurso sobre a doutrina da infalibilidade.

Para os reformadores, a Bíblia seria a regra infalível para a fé e prática. Seria a única fonte teológica a conter todas as coisas necessárias para a salvação, mas a sua verdade só poderia ser percebida pela iluminação do Espírito Santo. Em suma, os reformadores consideravam a infalibilidade da Palavra e do Espírito.

A Confissão de Westminster descreve a Escritura como uma “regra infalível para fé e vida” (2.5.9).

O teólogo dogmático reformado Herman Bavinck argumentava que a Bíblia contém um aspecto falível no sentido de que reflete as limitações culturais e históricas de seus escritores. Mas as Escrituras também são infalíveis, pois não engana naquilo que pretende ensinar: a vontade de Deus e propósito para o mundo. Traz a marca da fragilidade humana, também carrega a verdade e o poder da infalibilidade divina.

O teólogo dogmático holandês Berkouwer distingue entre a autoridade ontológica e funcional das Escrituras. Infalibilidade seria a autoridade funcional das Escrituras, enquanto a inspiração a autoridade ontológica.

O teólogo evangelical batista Bernard Ramm fez uma distinção entre graphe (Escritura), gramma (letra) e pneuma (Espírito). A graphe incorpora e transmite a verdade infalível porque une a letra e o Espírito. Seria o conteúdo divino das Escrituras. Infalibilidade das Escrituras não seria o texto, a letra, mas a graphe.

Rogers e McKim falam da Bíblia como infalível em sua função ou propósito. Ele infalivelmente cumpre seu propósito em trazer Cristo e a dádiva de salvação. A Bíblia como histórico e o documento literário seria vulnerável ao erro, pois sujeita-se às contigências da história. A verdade para a qual as Escrituras direciona é infalível, pois esta verdade – sendo o próprio Cristo vivo – é supra-histórica.

A doutrina da infalibilidade bíblica frequentemente é contrastada com outros modelos de autoridade das Escrituras, como a doutrina da inerrância bíblica. Contudo inerrância varia em sentidos. Uma acepção de inerrância seria a capacidade de não errar em seus propósitos de comunicar conteúdo de salvação, ou seja, um quase sinônimo de infalibilidade (Teixeira). Outro sentido de inerrância seria que a Bíblia não conteria erros de fato, nem de história, nem de ciência, do contrário invalidaria sua capacidade de comunicar a revelação divina (Gleiser). Ainda, em outra perspectiva, inerrância seria a Bíblia não errar naquilo que seus autores intencionavam comunicar, não em proposições isoladas (J.I. Packer). Numa distorção semântica chamada falácia do dicionário, alguns inerrantistas norteamericanos tentam argumentar que infalibilidade significaria ser incapaz de falhar, então impossível de se errar. Contudo, no sentido teológico, infalibilidade significa simplesmente incapaz de falhar, isto é, ser capaz de cumprir o seu propósito. Esses problemas levaram a biblistas e bibliologistas de língua inglesa revisitarem as doutrinas de infalibilidade.

Nos Estados Unidos a “batalha pela Bíblia”, principalmente nos anos 1970, levaram os defensores evangélicos da infalibilidade distinguir-se dos inerrantistas. George Eldon Ladd negou a infalibilidade do texto e preferiu falar da infalibilidade da mensagem das Escrituras. Bloesch seria um ardente defensor da infalibilidade e da rejeição da inerrância. Sendo uma questão localizada dentro de algumas vertentes protestantes norteamericana, em outros países de língua inglesa a preferência por modelos de autoridade bíblica baseada na infalibilidade predominaram, tal como entre os britânicos, como John Stott, F. F. Bruce, N. T. Wright, John Goldingay, Alister McGrath, ou australianos como Leon Morris e Mike Bird, preferindo tratar as Escrituras em modelos de veracidade e fidedignidade ao invés de inerrância.

BIBLIOGRAFIA

Bloesch, Donald G. Essentials of Evangelical Theology, Volume Two: Life, Ministry, and Hope. San Francisco: Harper & Row, 1979.

Bloesch, Donald. Holy Scripture: Revelation, Inspiration and Interpretation. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1994.

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Goldingay, John. Models for Scripture. Grand Rapids: Eerdmans; Carlisle: Paternoster, 1994.

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Rogers, Jack, and Donald K. McKim. The authority and interpretation of the Bible: An historical approach. Wipf and Stock Publishers, 1999.

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Yong, Amos; Anderson, Jonathan A. Renewing Christian Theology: Systematics for a Global Christianity: Systematics for a Global Christianity. Baylor University Press, 2014.

Amiraldismo

O amiraldismo designa as variantes teológicas do sistema reformado cujo enfoque está no fato de que Jesus Cristo sofreu a morte pela culpa de toda a humanidade. O amiraldismo é também conhecido como Escola de Saumur, universalismo hipotético, pós-redencionismo, semi-agostinianismo e — equivocadamente — calvinismo moderado ou calvinismo dos quatro pontos.

História

O teólogo escocês John Cameron (c. 1579–1625) desenvolveu, dentro da Academia Huguenote de Saumur, na França, um sistema teológico baseado em uma vocação universal. Por essa doutrina, a graça era entendida como disponível a toda a humanidade.

Embora a posição teológica do Sínodo de Dort tenha passado a ser referida com a designação “calvinista”, teólogos históricos do calvinismo já defendiam a doutrina da expiação universal, como, por exemplo, Heinrich Bullinger, Wolfgang Musculus, Zacharias Ursinus e Girolamo Zanchi.

O advogado que se tornou teólogo, Moïse Amyraut (1596–1664), foi diretamente influenciado por John Cameron. Amyraut, ao passar por Saumur, impressionou os membros da Academia com sua eloquência, que o convenceram a permanecer e estudar teologia.

Amyraut compilou escritos de Calvino sobre a extensão da expiação. Com base nesses escritos, mas sem a mediação de Beza, Amyraut articulou, em seu Brief Traitté de la prédestination et de ses principales dépendances (1634), a doutrina dessa escola. Para Amyraut, Deus disponibiliza os benefícios da obra redentora de Cristo a todos indistintamente. Assim, Deus deseja que todos os homens se salvem, contanto que creiam — razão pela qual essa doutrina é chamada de universalismo hipotético.

Quanto à doutrina da predestinação, Amyraut considerava que o Sínodo de Dort havia deturpado a doutrina de Calvino. A predestinação não seria uma questão da onisciência divina, mas indicaria a experiência da salvação pela graça de Deus.

Seu sucessor foi o não menos polêmico Claude Pajon (1626–1685), cuja tentativa de remediar a ausência virtual do Espírito Santo na soteriologia reformada gerou outras controvérsias.

A tese de Amyraut implicava em uma tolerância religiosa rara em seu tempo. Como a graça somente atua em quem exercita a fé, e a fé é dom de Deus, homem algum poderia impor suas visões religiosas a outrem. Um exemplo dessa influência foi William Penn, que esteve em Saumur e, mais tarde, fundou a colônia da Pensilvânia, um dos bastiões da tolerância política e religiosa na América do Norte.

Um sínodo da Igreja Reformada da França, realizado em Alençon em 1637, tentou, sem sucesso, condená-lo como herege. Popularizada entre reformados latinos, o amiraldismo encontrou logo oposição entre os reformados suíços e renanos, principalmente pelo trabalho de Francesco Turrettini (1623–1687). Apesar de nunca ter sido oficialmente condenado, o amiraldismo entrou em declínio após as críticas formuladas no Consenso Helvético de 1675. Raramente examinado em seus próprios termos e escritos, seus detratores passaram a considerá-lo um meio-termo entre o calvinismo dordtiano e o arminianismo.

No avivamento suíço do Réveil e em seu lado italiano (risveglio), houve uma reinterpretação das confissões reformadas com teores amiraldistas, embora não o referenciassem explicitamente. Na prática, a expiação passou a ser vista como universal. Um dos proponentes dessa doutrina, Paolo Geymonat, influenciou os crentes que imigraram para Chicago.

Marginalizado, o amiraldismo encontrou expoentes entre congregacionalistas e puritanos anglo-saxões, como John Davenport, John Preston e Richard Baxter. Para Baxter, a morte de Cristo foi um ato de redenção universal, penal e vicária, mas não substitutiva, pela qual foi introduzida uma nova lei e uma anistia para todos os que se arrependessem. O arrependimento e a fé, sendo obediência a essa lei, atuam como a justificação pessoal do crente. Como consequência, a doutrina de Baxter tornou-se o moderatismo neonomista entre os escoceses e diversos pensadores puritanos. Mais tarde, via Baxter, elementos do amiraldismo influenciariam os movimentos reformados avivados e evangelísticos, entre eles Andrew Fuller, os New School Presbyterians e, notoriamente, o Réveil entre os reformados continentais do século XIX, estimulando o evangelismo e a diaconia. O conceito de graça comum do kuyperianismo encontra fundamentos no amiraldismo. Em métodos evangelísticos e em seus sermões, Charles Spurgeon foi substancialmente amiraldista, embora se identificasse e desenvolvesse suas interpretações do calvinismo dordtiano. No geral, as modificações doutrinárias e a falta de crédito aos escritos amiraldianos levaram muitos a adotar alguma forma de sua doutrina sem se referir ao seu principal formulador.

Hoje, nos Estados Unidos, o amiraldismo não é muito conhecido, mas é popular entre o movimento das igrejas bíblicas (Bible Fundamental Churches), o movimento das igrejas de Cristo, a Evangelical Free Church of America, os batistas independentes e da Convenção Sulista. Lewis Chaffer, Norman Geisler e Oliver Crisp são alguns dos poucos teólogos recentes, de alcance público, que adotam algum aspecto desse sistema doutrinário. Contudo, em geral, esses autores raramente creditam as contribuições de Amyraut ou da Escola de Saumur.

A diversificação dos intérpretes reformados que concordavam com uma expiação ampla faz do amiraldismo um sistema teológico bem heterogêneo, ao qual o modelo dos cinco pontos calvinistas contra os remonstrantes (conhecido pelo acrônimo TULIP) não faz jus para representá-lo.

Doutrina

O amiraldismo faz parte da tradição agostiniana e da soteriologia forense da escolástica tardia. Situa-se na tradição reformada em uma aproximação com o igualmente sistema agostiniano luterano.

O amiraldismo entende que há uma eterna preordenação e presciência de Deus, por meio da qual todas as coisas acontecem: o bem com eficiência e o mal com permissividade. A dupla predestinação difere do calvinismo dordtiano pela doutrina da dupla eleição. Assim, Deus preordenou uma salvação ampla por meio do sacrifício de Cristo, oferecido a todos igualmente, com a condição da fé que reconhecesse essa obra de graça universal. Da parte da vontade e do desejo de Deus, a graça é universal, mas, no que diz respeito à condição, é particular, ou apenas para aqueles que não a rejeitam, o que a tornaria ineficaz.

A preordenação do resgate universal precede a eleição particular. Com base na benevolência de Deus para com suas criaturas, há uma graça objetiva oferecida a todos e uma graça subjetiva que floresce entre os eleitos. O amiraldismo distingue entre habilidade natural e habilidade moral, ou o poder da fé e a disposição para ter fé. Em consequência da depravação inerente, o ser humano possui a habilidade natural, mas não a habilidade moral. Portanto, é necessário um ato de Deus para iluminar a mente, envolvendo assim a vontade para a ação.

Como para Ulrico Zwingli, a graça de Deus alcança além dos limites da Igreja visível, visto que Deus, por sua providência geral, opera sobre todos (Malaquias 1:11, 14). Assim, sem conhecer formalmente o Jesus registrado no Novo Testamento, o sacrifício de Cristo é materialmente capaz de produzir uma fé sem conhecimento explícito entre pessoas que nunca ouviram sobre o Jesus Cristo bíblico. Dessa forma, essas pessoas seriam substancialmente cristãs sem assumir essa nomenclatura, pois depositaram sua fé naquilo que Deus demanda como verdade, conforme ensinada por Jesus Cristo (Romanos 1:20; 2:14-15; 1 Coríntios 2:11).

Em suma, enquanto as ênfases do calvinismo de Dort eram a soberania de Deus, e do arminianismo, a justiça de Deus, o amiraldismo enfatizava a misericórdia de Deus.

BIBLIOGRAFIA

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Stauffer, Richard. Moïse Amyraut: un précurseur français de l’œcuménisme. Vol. 22. Paris: Librairie protestante, 1962.

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