Supralapsarianismo e infralapsarianismo

O supralapsarianismo e o infralapsarianismo representam uma distinção interna e historicamente debatida dentro da visão da eleição pretemporal, particular e incondicional (calvinismo clássico). Ambas as posições concordam nos princípios centrais dessa doutrina, mas divergem na ordem lógica dos decretos eternos de Deus, especificamente em relação à Queda (o lapsus).

A questão central que procuram responder é: na ordem lógica dos decretos de Deus, o decreto de eleger e reprovar veio antes (supra) ou depois (infra) do decreto de permitir a Queda?

O infralapsarianismo (“depois da queda”) é a visão mais comum e historicamente dominante no calvinismo (adotada pelo Sínodo de Dort, por muitos puritanos e teólogos de Princeton).

Ordem lógica dos decretos

  1. Decreto de criar o mundo e a humanidade.
  2. Decreto de permitir a Queda da humanidade no pecado. (Neste ponto, Deus logicamente vê a humanidade como criada e caída).
  3. Decreto de eleger alguns pecadores caídos para a salvação em cristo (deixando os demais em sua justa condenação).
  4. Decreto de prover a salvação para os eleitos através da expiação de cristo.
  5. Decreto de aplicar a salvação aos eleitos pelo espírito santo.

O infralapsarianismo enfatiza a justiça da reprovação (o ato de não eleger). A escolha de Deus de salvar alguns é vista como um ato de pura misericórdia para com pecadores já culpados. Sua escolha de preterir (deixar de lado) os não eleitos é um ato de justiça, pois Ele os deixa no estado de pecado e condenação que incorreram justamente por causa da Queda.

O objeto da eleição/reprovação é a humanidade caída (massa corrupta ou massa damnata).

Já o supralapsarianismo (“antes da queda”) é uma visão menos comum e mais radical, que coloca a escolha soberana de Deus no absoluto primado. Foi defendida por teólogos como Theodore Beza e Franciscus Gomarus.

A ordem lógica dos decretos

  1. Decreto de eleger alguns indivíduos para a salvação e reprovar outros. (Este é o propósito primeiro e supremo).
  2. Decreto de criar o mundo e esses indivíduos (tanto eleitos quanto reprovados).
  3. Decreto de permitir a Queda como o meio pelo qual a distinção entre eleitos e reprovados se manifesta.
  4. Decreto de prover a salvação para os eleitos por meio de cristo.
  5. Decreto de aplicar a salvação aos eleitos pelo espírito.

O supralapsarianismo enfatiza a soberania absoluta de Deus. A eleição e a reprovação são o propósito último de todas as coisas, incluindo a criação e a queda. A Queda não é uma condição à qual Deus reage, mas um meio que Ele ordena para manifestar Sua glória, tanto em misericórdia quanto em justiça.

O objeto da eleição/reprovação são os indivíduos não criados e não caídos (considerados meramente como possibilidades na mente de Deus). O ato de reprovação é visto de forma mais ativa (predamnation), sendo um decreto positivo para a glória de Deus.

BIBLIOGRAFIA

Muller, Richard A. Christ and the Decree: Christology and Predestination in Reformed Theology from Calvin to Perkins. Reprint, Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2008.

Eleição

A eleição, no contexto bíblico e teológico, refere-se ao ato soberano de Deus escolher ou selecionar indivíduos ou grupos para um propósito ou destino específico.

O vocabulário primário no Antigo Testamento concentra-se no verbo hebraico בָּחַר (baḥar), “escolher, eleger”. Isso implica uma seleção cuidadosa e intencional, sendo Israel o principal objeto dessa escolha, destinada a ser uma “propriedade peculiar” (segulla סְגֻלָּה) e uma bênção para as nações (Dt 7:6; Ex 19:5). Essa eleição corporativa era frequentemente condicionada à fidelidade de Israel à Aliança, como observado pela Crítica Histórica.

No Novo Testamento, o conceito é articulado primariamente em torno do grupo de palavras gregas formadas por ἐκλεˊγομαι (eklegomai), “escolher, selecionar dentre,” e o substantivo ἐκλογηˊ (ekloge), “eleição.” O tema alcança seu clímax em Jesus Cristo, o ἐκλεκτοˊς (eklektos), ou “Eleito,” em quem as promessas são cumpridas (Lc 9:35), e estende-se à Igreja, o novo povo eleito “em Cristo” (Ef 1:4-5), para fins missionais. A teologia bíblica enfatiza a eleição como um conceito dinâmico e proposital que avança o plano redentor de Deus.

A eleição não aparece na Bíblia unívoca, mas como um desenvolvimento temático que compreende a escolha de indivíduos, coletividades nacionais e culmina em Cristo e na Igreja. O conceito mais antigo e dominante no Antigo Testamento é a eleição corporativa de Israel (Dt 7:6-8), entendida como uma escolha para um propósito (ser um “reino de sacerdotes” e uma bênção para as nações) e muitas vezes ligada à fidelidade à Aliança (condicionalidade).

No Novo Testamento, essa eleição ganha foco em Jesus Cristo, o “Eleito” (Is 42:1; Mt 12:18), em quem as promessas são cumpridas. A Igreja é vista como o novo povo eleito de Deus em Cristo (Ef 1:4-5), e a eleição é reinterpretada como um mecanismo missional para a salvação do mundo. Exegetas ressaltam essa diversidade de conceitos, evitando a harmonizá-los em uma única sistematização, enquanto a teologia bíblica traça o tema como uma história de redenção centrada em Cristo.

As tradições teológicas se dividem primariamente sobre a base (condicional ou incondicional) e o escopo (individual ou corporativo) da eleição. Na maioria dos sistemas teológicos — como arminianismo-wesleyanismo, catolicismo romano e a ortodoxia oriental, a eleição condicional baseia-se na presciência de Deus sobre a resposta de fé (méritos e perseverança para o catolicismo) do indivíduo, que é habilitada pela graça preveniente (arminianismo). Essa visão protege o livre-arbítrio humano e a universalidade do desejo salvífico de Deus. A ortodoxia oriental e o catolicismo enfatizam a sinergia (cooperação) entre a graça divina e a resposta humana. O luteranismo geralmente adere a uma predestinação simples (eleição para a salvação incondicional, mas rejeição resultante da incredulidade humana), assegurando a eleição pelos meios da graça (Palavra e sacramentos). Os movimentos pietista, anabatista e restauracionista emolduram a eleição em termos de uma experiência de conversão pessoal, discipulado ou resposta voluntária ao Evangelho.

Já na tradição reformada o tema se desdobrou. Em geral, na tradição reformada parte do entendimento da eleição soberana e dupla predestinação, no qual Deus decreta a salvação fundado unicamente em Seu soberano beneplácito. As principais visões divergem principalmente na temporalidade da escolha, se ela é particular (indivíduo) ou corporativa (grupo), e se ela é incondicional ou condicional (dependente de algo no ser humano).

A eleição particular e incondicional do calvinismo clássico defende a eleição como um decreto pretemporal de Deus. Seria particular porque Deus escolhe indivíduos específicos para a salvação. Seria estritamente incondicional, baseada inteiramente na soberana vontade e bom prazer de Deus, e não em qualquer mérito, boas obras, ou mesmo fé prevista na pessoa escolhida. Dentro dessa vertente, duas perspectivas divergem quanto à ordem do decreto da eleição. Os supralapsarianos defendem a eleição desde antes da fundação do mundo. Já os infralapsarianos defendem a eleição ou reprovação desde a queda.

Uma visão ligeiramente modificada do calvinismo clássico, por vezes vista em alguns sistemas federais, mantém a natureza particular da eleição e a rejeição de que ela seja condicional ao mérito humano. Essa eleição particular mas não condicional concorda que a escolha não se baseia nas obras do indivíduo, mas pode introduzir entendimentos nuançados da aliança ou dos meios da escolha, mantendo-se, contudo, como uma forma de eleição individual.

Dentro da soteriologia forense do sistema reformado, a crença na eleição corporativa e condicional aparece no arminianismo clássico (e o provisionismo, uma articulação moderna dessa visão). Esse posicionamento entende a eleição como primariamente corporativa, focada no corpo da igreja como um todo. A escolha de Deus é condicional à Sua presciência da fé e perseverança do indivíduo. Deus elege a “classe de pessoas” que Ele sabe que exercerão fé em cristo. Os indivíduos se tornam “eleitos” ao cumprir a condição da fé. Essa perspectiva visa salvaguardar o livre arbítrio e a responsabilidade humana em responder à oferta universal de salvação por Deus.

A eleição cristocêntrica, adotada por Karl Barth, a eleição cristocêntrica localiza a doutrina não em um decreto oculto, mas na própria pessoa de Jesus Cristo. Jesus Cristo seria tanto o Deus eleitor (o sujeito da eleição, o ato de Deus ser por a humanidade) quanto o humano eleito (o objeto da eleição, escolhido para representar a humanidade). A rejeição e o julgamento foram suportados e exauridos por Cristo na cruz. Por Cristo ser o representante de toda a humanidade, Barth conclui que todas as pessoas são eleitas nele, tornando a eleição universal em seu escopo objetivo. A incredulidade é vista como um fracasso em reconhecer essa realidade objetiva, que já foi superada em Cristo.

Já o molinismo, uma meta-estrutura (uma teoria do conhecimento divino), postula o conhecimento médio de Deus, ou seja, o que as criaturas fariam livremente em qualquer circunstância. Não é uma visão de eleição em si, mas pode ser usada para apoiar diferentes visões de eleição particular ou condicional.

Na eleição universal incondicional — visões como as de Hosea Ballou, George McDonald e William Barclay — o propósito eletivo de Deus resultará, em última instância, na salvação coletiva e individual.

Por fim, há posições nuançadas e divergências radicais. A nova teologia da aliança e a visão federal enfatizam a comunidade visível da aliança, o que pode leva a combinar uma visão mais corporativa, mas geralmente ainda afirmam um núcleo de eleição particular e incondicional. Por outro lado, o teísmo aberto rejeita a presciência exaustiva de Deus sobre as ações livres futuras, minando a base temporal de todas as visões clássicas de eleição. Para o teísmo aberto, a eleição é um processo dinâmico e temporal no qual Deus responde às decisões humanas em tempo real. Por fim, o socinianismo e o unitarianismo possuem um entendimento que não envolvem um Deus soberano transcendente escolhendo pecadores por meio da obra de Cristo, mas sim um entendimento racionalista e moralista de como os indivíduos alcançam o favor de um Deus unitário.

BIBLIOGRAFIA

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Muller, Richard A. Christ and the Decree: Christology and Predestination in Reformed Theology from Calvin to Perkins. Reprint, Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2008.

Georges Casalis

Georges Casalis (1917-1987) foi um teólogo protestante francês, notável por seu engajamento com as teologias da libertação e por sua crítica às estruturas de poder. Casalis refletia sobre a relação entre fé e ação política. Articulava uma teologia que dialogasse com as lutas por justiça social.

Casalis defendia uma leitura crítica da Bíblia, que ressaltava o compromisso de Deus com os oprimidos e a necessidade de a Igreja se engajar na transformação do mundo. Criticava a teologia tradicional por sua passividade diante das injustiças, defendendo uma teologia da práxis que colocava a ação transformadora no centro da fé cristã.

Sua obra aborda temas como a luta de classes, o racismo, a violência e a esperança, buscando articular uma teologia que inspirasse a ação em favor dos marginalizados. Casalis também se envolveu ativamente em movimentos sociais e políticos, defendendo os direitos humanos e a democracia.

Catherine Mowry LaCugna

Catherine Mowry LaCugna (1952-1997) foi uma teóloga católica americana.

A contribuição acadêmica de LaCugna se concentrou na teologia trinitária, com uma abordagem feminista e contextualizada. LaCugna obteve seu doutorado em Teologia pela Universidade de Notre Dame em 1979, onde estudou com Zachary Hayes. Lecionou no departamento de teologia da Universidade de Notre Dame de 1981 até 1997.

O trabalho de LaCugna sobre a doutrina da Trindade é central em sua produção. Ela criticou abordagens que considerava abstratas e especulativas, argumentando que se distanciavam da experiência da salvação. Defendeu um retorno à “Trindade econômica”, a revelação de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo na história da salvação. Seu pensamento teológico se centrava na ideia de que a teologia deve ser feita “para nós” (pro nobis), a serviço da vida cristã e da transformação do mundo. A doutrina da Trindade, portanto, é vista como uma descrição de como Deus se relaciona com a humanidade e convida à participação na vida divina.

LaCugna é uma das pioneiras da teologia feminista. Argumentou que a teologia dominante foi moldada por perspectivas patriarcais, e que era preciso desenvolver novas abordagens que levassem em conta as experiências das mulheres. Enfatizou a importância da contextualização da teologia, a necessidade de considerar os contextos culturais e sociais nos quais a teologia é feita. Para LaCugna, teologia e espiritualidade estão ligadas. Ela defendeu uma espiritualidade trinitária, um convite à comunhão com Deus e com o próximo.

Sua obra mais conhecida é “God for Us: The Trinity and Christian Life” (1991). Neste livro, LaCugna apresenta sua reinterpretação da doutrina da Trindade, enfatizando seu caráter relacional e sua relevância para a vida cristã. “Freeing Theology: The Essentials of Theology in Feminist Perspective” (1993) é uma coleção de ensaios de teólogas feministas, na qual LaCugna contribuiu com um ensaio sobre a Trindade. Também publicou em periódicos acadêmicos, incluindo Theological Studies e Modern Theology. Alguns de seus ensaios e palestras foram publicados postumamente.

Inspiração

Inspiração descreve a atuação do Espírito de Deus sobre sua criação para vários propósitos. Teologicamente, podemos falar de inspiração em um sentido amplo e em inspiração particular, no caso das Escrituras.

Inspiração geral

A inspiração do Espírito Santo é retratada como fonte de vida, conhecimento especializado, sabedoria e força.

Em Gênesis 2:7 Deus formou o homem do pó da terra e inspirou-lhe o fôlego da vida; assim fez o homem alma vivente. Cf. Jó 33:4.

O Espírito de Deus inspirou Moisés a profetizar, julgar, escrever, liderar e realizar milagres. (Isaías 63:11-14).

O Espírito do Senhor inspirou Bezalel, filho de Uri, da tribo de Judá, para executar várias habilidades artesanais para o santuário (Êxodo 31:1-11 e 35:30-36:7), além de inspirar Ooliabe e outros indivíduos habilidosos.

Os juízes de Israel foram inspirados pelo Espírito para suas missões, como aconteceu com Otniel (Jz 3:10), Gideão (6:34), Jefté (11:29) e Sansão (13:25; 14:6, 19; 15:14).

Quando o profeta Samuel ungiu Davi para ser rei, “daquele dia em diante o Espírito do Senhor se apoderou de Davi” (1 Samuel 16:13); e o Espírito o guiou no projeto do Templo (1 Crônicas 28:12).

Então Eliú, filho de Baraquel, o buzita, respondeu: Eu sou jovem, e vós idosos; até agora senti medo e temor de expressar a minha opinião.
Eu pensava: Que a idade fale mais alto e os muitos anos de vida ensinem a sabedoria.
Todavia, o homem tem um espírito, e o sopro do Todo-poderoso lhe dá entendimento.
Não são os velhos que são os sábios, nem os anciãos são os que entendem o que é correto.
Por isso, atrevo-me a dizer: Ouvi-me; eu também expressarei a minha opinião.

Jó 32:6-10

Em Jó 32:78 e 33:4, Eliú afirma que a compreensão genuína e o sopro de vida vêm da inspiração do Espírito de Deus. Os versículos acima sublinham a origem divina da sabedoria, enfatizando que o discernimento humano é uma dádiva do Todo-Poderoso.

Doutrina da Inspiração das Escrituras

A inspiração das Escrituras é a doutrina que descreve a relação entre texto e ação do Espírito Santo. A doutrina da inspiração da Bíblia significa que o texto destina-se para comunicar um propósito divino.

São diferentes os meios e processos para a composição bíblica. Em algumas ocasiões, Deus pôs palavras na boca dos profetas (Jeremias 1:9, Ezequiel 3:17), além de às vezes Deus dizer o que o profeta deve dizer (Isaías 38:4-6). Ainda o autor registrou o que lhe foi ditado (Apocalipse 2:1) ou aquilo que viu (Apocalipse 1:10-11). Algumas escrituras resultam da adoração a Deus, como os Salmos, enquanto outras resulta de uma investigação (Lucas 1:1-4). Escribas ou amanuenses também compilaram tradições orais em circulação (Provérbios 25:1), os discursos dos profetas (Jeremias 36) ou as mensagens dos apóstolos (Romanos 16:22). Parte do texto é oriunda de registros oficiais, como genealogias e crônicas das cortes (1 Cr 9:1; 2 Cr 20:34; 16:11; 33:18; 27:7; 35:27; 20:34; Ed 4:15). Há ainda obras compostas para fins literários, como Cantares ou para explicar festividades, como o de Ester. Ainda sob aspectos literários, na composição dos livros também ocorreu intertexualidade com outras obras aparentemente conhecidas por suas audiências (Nm 21:14; Js 10:12-13; 2 Sm 1:18-27; Jd 14). Boa parte dos livros bíblicos foram escritos como correspondências, como as epístolas paulinas. Dada a heterogeneidade do processo de composição bíblica, a relação entre os aspectos divinos e humanos das Escrituras é tratado pela doutrina da inspiração.

Como doutrina acerca das Escrituras, a inspiração é fundamentada principalmente em duas passagens. Em 2 Timóteo 3:16 diz: “Toda a Escritura inspirada por Deus é útil para ensinar, repreender, corrigir e treinar na justiça.” A frase “inspirada por Deus” traduzida assim na Almeida Revista e Corrigida, é uma só palavra grega “theopneustos”, a qual possui os significados “divinamente vivificante”, “soprada por Deus” ou “soprada divinamente”. Ou seja, vale atentar-se para suas traduções possíveis tanto no passivo “inspirada” quanto nas formas ativas “inspiradora” ou “inspirante”.

O termo grego koiné theopneustos é um hapax legômenon no texto bíblico. Ocorre apenas uma vez na Bíblia, em 2 Timóteo 3:16. No entanto, theopneustos aparece no Oráculo Sibilino, no Testamento de Abraão, em Vettius Valens, no Pseudo-Plutarco (Placita Philosophorum) e no Pseudo-Focilides. Nessas obras, praticamente contemporâneas ao Novo Testamento, theopneustos conota a doação de vida por meios divinos, como em Gênesis 2:7. O termo cognato theopnous aparece em Numênio, no Corpus Hermeticum, em uma inscrição na Grande Esfinge de Gizé e em uma inscrição em um ninfeu em Laodiceia.

Outra passagem é 2 Pedro 1:20-21, que diz: “Acima de tudo, você deve entender que nenhuma profecia da Escritura surgiu pela própria interpretação das coisas do profeta. Pois a profecia nunca teve sua origem na vontade humana, mas os profetas, embora humanos, falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo”. Este versículo indica que o papel do Espírito Santo em inspirar os profetas a falarem a palavra de Deus. Analogamente, mesmo outros textos além das profecias seriam inspiradas ou movidas pelo Espírito Santo para transmitir a mensagem divina.

Outras passagens utilizadas para conceptualizar a inspiração divina das Escrituras incluem o Salmo 119:105 , Mateus 5:17-18; João 10:34-35; e Hebreus 4:12.

História

Conforme demonstram Metzger (1987 p. 257) e Bruce (1988, p. 268), inicialmente o conceito de inspiração não serviu como critério para a canonicidade do Novo Testamento. A crença de que cada crente e cada congregação possuía inspiração do Espírito Santo era corrente; contudo, não conferia caráter canônico (normativo) para esses discursos inspirados. O reconhecimento de inspiração atribuído um documento ocorria após o reconhecimento de sua canonicidade. A inspiração funcionou mais como um corolário, uma consequência da canonicidade, do que um pré-requisito. Metzger cita casos em que a inspiração foi atribuída a escritos não canônicos no discurso cristão primitivo. Notavelmente, o autor da Epístola de Diogeneto reivindicou inspiração, assim como um escrito de Eusébio, que atribuiu inspiração a um sermão do Imperador Constantino. Além disso, Jerônimo, Agostinho de Hipona, e ao Espírito Santo explicando os mistérios das Escrituras a Gregório, o Grande, destacam que a noção de inspiração se estendia além dos textos canônicos. Metzger sublinha os diversos contextos em que a inspiração foi reconhecida no espectro mais amplo da vida da Igreja, enfatizando que não era um critério distinto para a canonicidade.

A doutrina de inspiração protestante remonta de Matias Flácio Ilírico. Flácio contribuiu para a definição da doutrina protestante da Escritura através de suas obras polêmicas e seus escritos teológicos. Enfatizou a importância da clareza e acessibilidade da Bíblia, argumentando que a Escritura se interpreta a si mesma.

Roberto Belarmino, cardeal jesuíta e um dos principais teólogos católicos da Contrarreforma, articulou uma resposta sofisticada. A inspiração que movia os autores bíblicos continuava no magistério da Igreja.

Em caráter apologético, o teólogo da Escola de Princeton, B.B. Warfield argumentou que a inspiração bíblica demandava que o termo theopneustos deveria ser sempre e exclusivamente entendido no passivo como “inspirada por Deus”. Apesar disso, Warfield, usando raciocínio indutivo, afirmava que a inspiração não desempenhava nenhum papel necessário na teologia do Novo Testamento. Argumentava que mesmo na ausência do conceito de inspiração, o Cristianismo permaneceria verdadeiro e as suas doutrinas essenciais seriam comunicadas de forma confiável através dos relatos confiáveis dos ensinamentos de Jesus e das ações dos apóstolos enquantos agentes autorizados no estabelecimento da Igreja. Contudo, a bibliologia de Warfield baseava-se numa epistemologia fundacionalista. Assim, argumentou que desistir da inspiração resultaria no abandono das evidências que apoiam a confiança nas Escrituras. Warfield argumentou que a inspiração das Escrituras era um elemento fundamental da fé cristã, cuja rejeição minaria logicamente a confiança em todas as outras doutrinas cristãs distintas. Warfield argumentou que a desconfiança na doutrina da inspiração se estenderia a duvidar da confiabilidade das Escrituras em qualquer doutrina da fé, em interconexão desses componentes teológicos.

Oscar Cullman criticou a doutrina protestante de inspiração como docética.

Modelos de inspiração bíblica

A inspiração da Bíblia é um conceito central na teologia cristã, referindo-se à crença de que as Escrituras são de alguma forma influenciadas por Deus. No entanto, a natureza e o grau dessa influência divina têm sido objeto de debate ao longo da história, resultando em diversos modelos de inspiração. Para interpretar versos como como 2 Timóteo 3:16 e 2 Pedro 1:20, as seguintes teorias foram propostas:

Modelo Mecânico Deus teria ditado palavra por palavra da Bíblia aos autores humanos, que atuaram como instrumentos passivos. Essa perspectiva enfatiza a precisão divina do texto, mas é criticada por desconsiderar os estilos literários e contextos culturais dos escritores.

Modelo de Iluminação O Espírito Santo iluminou os autores, intensificando sua percepção religiosa e direcionando seus pensamentos sem determinar exatamente as palavras usadas. Valorizando a participação humana no processo, este modelo é acusado de aproximar a inspiração bíblica da criatividade humana.

Modelo de Encontro Entende a Bíblia como um meio pelo qual Deus se revela aos leitores, em vez de ser a Palavra de Deus em si. Prioriza o aspecto relacional e a experiência espiritual da leitura.

Modelo Pleno-Verbal Afirma que cada palavra dos manuscritos originais foi inspirada por Deus, respeitando o estilo dos autores humanos, mas assegurando a precisão e autoridade divina. A inspiração seria por meio de palavras (daí o “verbal”), não por proposições, ideias ou eventos.

Inspiração Dinâmica Propõe que Deus inspirou os pensamentos e ideias dos autores, enquanto a formulação final do texto reflete a linguagem e o estilo humanos. Este modelo busca equilibrar a interação divina e humana.

Inspiração Mística Considera a Bíblia um símbolo ou reflexo das verdades divinas, sem exigir precisão histórica ou literal. Valoriza a dimensão espiritual e contemplativa, mas não sustenta uma doutrina tradicional de autoridade.

Inspiração Natural Rejeita qualquer intervenção sobrenatural, argumentando que os autores eram simplesmente indivíduos com grande instrospecção moral e espiritual. Essa perspectiva é amplamente rejeitada pela teologia cristã.

Medição Teológica que Deus guiou os autores humanos sem suprimir sua liberdade ou criatividade, resultando em um processo inspirado e humano ao mesmo tempo.

Visão Encarnacional Compara a natureza da Bíblia à de Cristo, afirmando que ambas possuem uma união perfeita entre o divino e o humano. Essa visão destaca o caráter único das Escrituras como simultaneamente inspiradas por Deus e expressas por autores humanos.

Teorias de Conteúdo pela inspiração divina atua no nível das ideias ou proposições centrais do texto, sem necessariamente abranger os detalhes específicos de cada palavra. Algumas versões sugerem uma orientação detalhada de Deus em declarações específicas, enquanto outras limitam a inspiração às ideias principais, deixando espaço para a expressão humana.

Teoria da Inspiração Social ou Eclesial considera a complexidade do processo de formação dos livros bíblicos, que envolveu autores, redatores, transmissão oral e contextos sociais, como liturgias e tradições comunitárias. Essa perspectiva propõe que Deus influencia grupos sociais ao longo do tempo para garantir o resultado desejado, reconhecendo a dimensão coletiva da produção das Escrituras. A teoria da inspiração canônica de Kern Robert Trembath talvez seria melhor compreendida como parte dessa teoria da inspiração social ou eclesial.

Extensão da inspiração bíblica

  • Inspiração parcial ou limitada: algumas partes seriam inspiradas, outras não. O próprio texto bíblico fala de Deus inspirando profetas, mas também tem discursos do povo em direção a Deus, como nas orações e Salmos. Visão dos racionalistas do século XVIII e em tempos recentes por Kugel.
  • Inspiração gradual: Há um gradiente de inspiração e autoridade. Entre cristãos essa perspectiva postula que aos poucos, à medida em que a história de salvação foi se desvelando, teríamos textos mais autoritativos. É a posição do movimento Concordant e de C.S. Lewis. De outro lado, no judaísmo há uma posição de fato que considera a Torá como dotada de maior autoridade, depois os Profetas e por último os Escritos.
  • Inspiração plenária: sustenta que toda a Bíblia é igualmente inspirada por Deus, incluindo suas ideias, conceitos e temas, bem como suas palavras. Enfatiza a integridade e suficiência do texto bíblico. Barth, Bloesch.

Foco da Inspiração

  1. Inspiração do Texto, foco no produto. 2 Tim 3:15-17. A inspiração seria encontrada no texto resultante, atualizada na sua recepção pela leitura. Prefererida por Barth, Bloesch, William Lane Craig.
  2. Inspiração dos Autores, foco no processo. 2 Pe 1:20-21. A inspiração seria atuante no momento de fixação do texto. Preferida por Gaussen e B.B. Warfield (embora Warfield enfatizasse a inspiração do texto, sua doutrina descreve a inspiração autoral).
  3. Inspiração dos Eventos, foco no processo. Salmo 119:105. Atos de salvação e revelação de Deus na história. Prefererida por Oscar Cullmann, Wolhart Pannenberg, G. E. Wright.

Níveis de inspiração das Escrituras

Entre aqueles que defenderam uma visão de inspiração verbal plenária, as perspectivas sobre quais níveis de texto que receberam a inspiração são as seguintes:

  • Texto Canônico Total: A posição de que toda a Bíblia, como produto acabado, é inspirada por Deus. Perspectiva de Childs, Cullmann.
  • Expressão (narrativa, história e estilo): A posição de que a forma como uma passagem é expressa, incluindo sua narrativa, história e estilo, é inspirada por Deus. Esta posição enfatiza as qualidades literárias da Bíblia e reconhece que Deus usa a linguagem humana e as convenções literárias para comunicar a sua mensagem. Os defensores desta visão incluem C.S. Lewis, J.R.R. Tolkien e John Goldingay.
  • Proposição ou Ideias: A posição de que as proposições ou ideias por trás de um argumento ou narrativa, conhecida como Ipissima vox, são inspiradas por Deus. Esta posição enfatiza os ensinamentos teológicos e morais da Bíblia e reconhece que a mensagem de Deus é comunicada através das ideias apresentadas no texto. Os proponentes desta visão incluem Karl Barth, Reinhold Niebuhr, Rudolf Bultmann, Kevin Vanhoozer, Daniel Wallace, Grant Osborne.
  • Palavras Individuais: A posição de que as palavras individuais, conhecidas como Ipissima verba, são inspiradas por Deus. Esta posição enfatiza a importância das palavras específicas usadas no texto e reconhece que cada palavra foi escolhida por Deus para comunicar a sua mensagem. Os proponentes desta visão incluem B.B. Warfield, Charles Hodge e J.I. Packer.
  • Sílabas: A posição de que até as sílabas do texto são inspiradas por Deus. Esta visão é sustentada por alguns escritores judeus, como Fílon e Josefo.
  • Letras: A posição de que até as letras do texto são inspiradas por Deus. Esta opinião é defendida por alguns místicos judeus que se dedicam à Gematria, um método de interpretação da Bíblia Hebraica baseado em valores numéricos atribuídos às letras. Também aparece em Gregório de Nazianzo e Polano.

Inspiração e revelação

Os conceitos de revelação e inspiração estão intimamente relacionados, mas são teologicamente distintos.

A revelação, definida de forma ampla, refere-se ao processo pelo qual Deus se dá a conhecer à humanidade. Abrange a auto-revelação de Deus, a comunicação de sua vontade e a manifestação de sua natureza divina. No contexto da Bíblia, a revelação é vista como o envolvimento ativo de Deus na história humana, revelando verdades sobre si mesmo, seus propósitos e seu relacionamento com a humanidade.

O conceito de inspiração refere-se especificamente à influência ou orientação divina sobre indivíduos que foram inspirados pelo Espírito Santo para profetizar, escrever, liderar ou realizar diversas tarefas de acordo com a vontade de Deus. Isto inclui exemplos do Antigo Testamento, como Moisés, Bezalel, os juízes de Israel, David e Eliú, bem como referências aos escritos do Novo Testamento e à doutrina da inspiração bíblica.

A revelação, por outro lado, é retratada como a auto-revelação de Deus e a comunicação das verdades divinas à humanidade, muitas vezes através de encontros diretos, visões ou intervenções divinas nos assuntos humanos. Os exemplos citados incluem casos em que indivíduos ou grupos experimentaram a revelação de Deus, como Abraão, Moisés, os profetas e o povo de Israel como um todo.

Embora ambos os conceitos envolvam a interação entre os domínios divino e humano, a revelação centra-se no conteúdo e na transmissão das verdades divinas, enquanto a inspiração enfatiza os meios e o processo pelos quais essas verdades são transmitidas através da ação humana. Ambos conceitos formam a base para a compreensão da natureza e da autoridade das Escrituras como a Palavra de Deus revelada à humanidade.

BIBLIOGRAFIA

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