Bode emissário

O bode emissário, também conhecido como bode expiatório, é uma figura central no ritual do Dia da Purificação ou da Expiação (Yom Kippur) descrito em Levítico 16. O termo hebraico para bode emissário é עֲזָאזֵל (‘azazel), cujo significado exato é debatido, podendo referir-se a um local remoto, a um demônio do deserto ou, mais provavelmente, a um bode específico destinado a esse ritual.

No Dia da Purificação, o sacerdote realizava um ritual complexo para purificar os pecados do santuário e do povo de Israel. Dois bodes eram escolhidos: um era sacrificado como oferta pelo pecado, e o outro era designado como o bode emissário. Após a confissão dos pecados do povo sobre a cabeça do bode emissário, este era levado para o deserto e solto, simbolizando a transferência dos pecados para longe da comunidade.

O ritual do bode emissário expressava a crença de que a poluição ritual podia ser transferida para um substituto, que carregaria essa contaminação. Esse ritual também enfatizava a necessidade de purificação e reconciliação entre Deus e o povo.

O bode emissário é um símbolo poderoso de expiação e purificação. Embora o significado exato do termo ‘aza’zel seja incerto, o ritual em si é claro em sua intenção: afastar os pecados do povo, permitindo que a comunidade se reconcilie com Deus.

Expiação

Expiacão, em termos teológicos, refere-se ao ato de reparar ou restaurar as condições afetadas por uma transgressão, culpa ou pecado. O objetivo da expiação é a reconciliação, o perdão e a restauração da comunhão com o divino. A expiação pode assumir formas e significados específicos, como no cristianismo, onde a encarnação, ensinos, obras, morte, ressurreição e ascenção de Jesus Cristo integram a obra expiatória pelos pecados da humanidade.

A palavra grega ἱλάσκομαι (hiláskomai) e seus cognatos (ἱλασμός, ἱλαστήριον) refletem temas expiatórios. Em geral, o verbo hiláskomai expressa a ideia de apaziguar, propiciar ou tornar favorável alguém, frequentemente uma divindade. Essa ação pode ser realizada através de sacrifícios, orações ou outras formas de devoção. O termo carrega consigo a noção de remover obstáculos que impedem um relacionamento harmonioso com o divino, como a culpa, o pecado ou a impureza.

No Antigo Testamento grego (Septuaginta), hiláskomai é usado para traduzir o verbo hebraico “kaphar”, normalmente traduzido como “expiar”. Nesse contexto, a expiação está relacionada à remoção da culpa e do pecado através de ritos e sacrifícios, restaurando assim a comunhão com Deus. O Dia da Expiação (Yom Kippur) era um momento crucial no calendário religioso judaico, no qual o sumo sacerdote entrava no Santo dos Santos para aspergir o sangue do sacrifício sobre a Trono da Misericórdia ou Propiciatório (ἱλαστήριον – hilastérion), a tampa da Arca da Aliança, simbolizando a purificação do povo, do santuário e a reconciliação com Deus.

No Novo Testamento, o conceito de expiação adquire novas nuances com a figura de Jesus Cristo. Em Romanos 3:25, Paulo descreve Jesus como o ἱλαστήριον (hilastérion), aquele que Deus “propôs” para expiação dos pecados. Essa passagem tem sido interpretada de diferentes maneiras, mas a ideia central é que Jesus, através de sua morte sacrificial, removeu os obstáculos que separavam a humanidade de Deus, possibilitando a reconciliação e o perdão. A iniciativa divina é enfatizada, pois é Deus quem oferece Jesus como o meio de expiação.

O uso de hiláskomai e seus cognatos no Novo Testamento levanta questões importantes sobre a natureza da expiação e sua relação com a justiça e a misericórdia divinas. Alguns estudiosos argumentam que a expiação em Cristo representa uma mudança radical em relação à visão sacrificial do Antigo Testamento, enquanto outros enfatizam a continuidade entre os dois Testamentos. Independentemente da interpretação específica, a expiação em Cristo é central para a teologia cristã, expressando a profundidade do amor de Deus e a restauração da comunhão entre Deus e a humanidade.

BIBLIOGRAFIA

Campbell, John McLeod. The Nature of the Atonement and Its Relation to the Remission of Sins and Eternal Life. London: Macmillan, 1869.

Greenberg, James A. A New Look at Atonement in Leviticus: The Meaning and Purpose of Kipper Revisited. University Park: Penn State University Press, 2019.

Gorringe, Timothy. God’s Just Vengeance. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

Ray, Darby Kathleen. Deceiving the Devil: Atonement, Abuse and Ransom. Cleveland: Pilgrim Press, 1998.

Weaver, J. Denny. The Non-violent Atonement. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2001.

Temas expiatórios

A questão por que “Cristo morreu pelos nossos pecados” (1 Coríntios 15:3) é tratada com uma variedade de temas, metáforas, motifs encontrada na Bíblia, como os seguintes:

  • Culto: Hebreus 9:11-14.
  • Aliança (Pacto ou Concerto): Mateus 26:28; Marcos 14:24; Lucas 22:20.
  • Vitória: Colossenses 2:15; Hebreus 2:14-15
  • Sacrifício: Romanos 5:9; 1 João 1:7; 2:2; 4:10; Efésios 5:2; Hebreus 9:26-28
  • Resgate: Marcos 10:45; 1 Timóteo 2:5-6
  • Participação: Romanos 6:5-8; Gálatas 2:20; Colossenses 2:11-12; 2 Coríntios 5:14.
  • Recapitulação: Romanos 5:12-21; 1 Coríntios 15:21-22;
  • Perdão: Mateus 26:28; Efésios 1:7; Colossenses 1:14; 1 João 3:5.
  • Forense: Romanos 3:21-26; 2 Coríntios 5:21
  • Reconciliação: Romanos 5:10-11; 2 Coríntios 5:18-19
  • Hospitalidade: Lucas 24:28-31
  • União: João 17:20-23; Efésios 2:13-16; Jo 1:12-13; Rm 6:15-23; 8:29-30; 2 Pe 1:3-4; Cl 1:27; 1 Jo 3:2.
  • Exemplo: Filipenses 2:3-8; 1 Pedro 2:21-23; 2 Co 3:18; Jo 13:12-15; 1Co 11:1; 1 João 2:6; Ef 4:32; Cl 3:13.
  • Incutir amor: 1 João 4:9-10; Jo 15:13; Rm 5:8; 2Co 5:17-19; Fp 2:5-11; Cl 3:24. 1 Pe 2:21 e 1 Jo 2:6.
  • Purificação: 1 João 1:7-9; Apocalipse 1:5
  • Confissão vicária: 2Co 5:19; Jo 3:16; Lc 15:11-32.
  • Representante: Jo 1:12-13; Rm 6:15-23; 8:29-30; 2 Pe 1:3-4; Cl 1:27; 1 Jo 3:2.
  • Substituição: 2 Coríntios 5:21; Gálatas 3:13
  • Resgate: Gálatas 1:4; Colossenses 1:13-14
  • Teose: 2 Pedro 1:3-4
  • Obediência: Filipenses 2:8; Hebreus 5:8-9

Com base nessas linguagens, vários modelos expressam com alguma coerência os meios com os quais Jesus Cristo proporcionou uma expiação reconciliatória entre humanidade e Deus. Entre esses modelos, as principais teorias de expiação foram formuladas:

Referente às teorias acima, os debates contemporâneos concentram-se em questões de quão biblicamente fundamentada são, moralidade, o quanto representam a obra reconciliatória (se como metáfora ou evento), se são compatíveis entre si ou exclusivas, dentre outras questões.

BIBLIOGRAFIA

Schmiechen, Peter. Saving power: theories of atonement and forms of the church. Eerdmans, 2005.

Meinrad Limbeck

Meinrad Limbeck (1934–2021) foi um padre católico e teólogo alemão reconhecido por suas contribuições no campo da teologia bíblica, especialmente por suas interpretações inovadoras sobre a morte de Jesus e o papel central de sua mensagem de amor e libertação. Suas ideias desafiaram leituras convencionais sobre a expiação e atraíram tanto críticas quanto elogios por sua abordagem reformuladora da fé cristã.

Nascido em 1934, Limbeck cursou filosofia e teologia católica em Tübingen e Bonn, sendo ordenado sacerdote em 1960. Ele serviu como pároco em diversas comunidades e mais tarde trabalhou como assistente de pesquisa na Universidade de Tübingen, consolidando uma carreira acadêmica marcada por extensa produção intelectual. Entre suas principais obras estão Die Ordnung des Heils: Untersuchungen zum Gesetzesverständnis des Paulus (A Ordem da Salvação: Investigações sobre o Entendimento da Lei em Paulo) e Jesus Christus: Der Weg seines Lebens (Jesus Cristo: O Caminho de Sua Vida).

Limbeck rejeitou a interpretação de que a morte de Jesus foi um sacrifício destinado a apaziguar a ira divina, uma visão que considerava incompatível com a compreensão de Deus como amoroso e misericordioso. Para ele, a mensagem central do Evangelho era a proclamação do Reino de Deus, fundamentada no amor e na justiça. Ele interpretou a crucificação como resultado da fidelidade de Jesus à sua missão e do confronto inevitável com as estruturas de poder de seu tempo, não como um evento necessário para satisfazer exigências divinas.

Sua teologia enfatizou a experiência concreta da vida e dos ensinamentos de Jesus, destacando o chamado à transformação social e espiritual. Obras como Adeus à Morte Sacrificial refletiram sua insistência em reinterpretar a expiação como uma expressão do amor de Deus e da libertação oferecida pelo Evangelho, em vez de um mecanismo de reconciliação por meio de sacrifício.

As ideias de Limbeck geraram controvérsia dentro da Igreja Católica. Enquanto críticos o acusaram de se afastar de doutrinas estabelecidas, outros o celebraram por trazer uma visão renovadora, mais alinhada à centralidade do amor e da inclusão na mensagem cristã. Sua vida e obra continuam a inspirar debates sobre a relação entre tradição e inovação na teologia cristã e o significado da morte e ressurreição de Jesus na experiência de fé.

Herman Wiersinga

Herman Wiersinga (1933-2020) foi um teólogo holandês e professor de teologia sistemática na Universidade de Groningen.

Estudou na Universidade Livre de Amsterdam e foi ministros em várias congregações reformadas na Holanda e Caribe. Depois, estabeleceu-se como capelão universitário em Leiden e Amsterdam.

Wiersinga debate sobre a natureza da igreja e a relação entre igreja e sociedade. A teologia de Wiersinga enfatizou a papel profético da Igreja na sociedade e a sua responsabilidade de promover a justiça social. Promovia um envolvimento crítico com a tradição e a importância da teologia contextual. O trabalho de Wiersinga foi influenciado pela teologia de Karl Barth e pela teologia política de Dietrich Bonhoeffer.

Ficou notório por sua doutrina de expiação. A doutrina da reconciliação de Wiersinga centra-se no profundo amor de Deus, afirmando que mesmo em meio ao pecado humano, Deus continua a amar a humanidade. A expressão central deste amor divino encontra-se na morte sacrificial de Jesus Cristo na cruz, um ato que encarna o amor de Deus e serve como meio de redimir a humanidade do pecado. Esta estrutura teológica é conhecida como “reconciliação através da transformação”, centrada no poder transformador do amor de Deus na remodelação dos indivíduos e na promoção da reconciliação com Deus.

Wiersinga, um defensor pioneiro desta doutrina na Holanda,trouxe para o debate contínuo sobre a doutrina da expiação nas igrejas cristãs. As suas principais afirmações incluem a ideia de que a reconciliação não é apenas uma transação, mas uma relação profunda, que transcende os quadros jurídicos para se tornar uma história de amor, e que a expiação não é uma mudança na natureza de Deus, mas uma mudança transformadora na humanidade. Estas declarações resumem a perspectiva de Wiersinga, lançando luz sobre a natureza matizada e relacional da sua doutrina da reconciliação.