Hegésipo

Hegésipo, o nazareno, (c. 110 – c.180 d.C.) foi um escritor da Igreja primitiva de origem judia.

Viajou amplamente, visitou Roma e escreveu a primeira história da Igreja, os Fragmentos dos Cinco Livros de Comentários sobre os Atos da Igreja (Hypomnemata, ou Memórias). Sua obra foi perdida, embora sobrevivessem até o século XVII. Contudo, restam oito citações delas nos escritos de Eusébio

Expressa simpatia com cristãos gentios, nota a teologia paulina entre os coríntios, as tradições das igrejas de Antioquia e de Jerusalém. Era familiarizado com um Evangelho dos Hebreus e com um Evangelho Siríaco (Diatessaron?), os escritos paulinos, além das tradições não escritas dos judeus. Certamente escreveu contra os gnósticos e de Marcião. Relata o martírio de Tiago, o justo, o “irmão do Senhor”.

Was Christum Treibet

Lucas Chranach, o velho. Pintura do altar de Wittenberg

A frase alemã was Christum treibet, “o que promove Cristo”, indica um princípio hermenêutico de Lutero.

A frase vem do prólogo de Lutero às Epístolas de Tiago e Judas, na sua edição alemã do Novo Testamento (1522):

E nisto todos os livros sagrados justos concordam, que todos pregam e praticam Cristo, e esse é o verdadeiro teste de censurar todos os livros, quer praticam Cristo ou não, pois toda a Escritura mostra Cristo, Romanos 3 e Paulo não quer saber nada mas Cristo 1 Cor. 2. O que Cristo não ensina não é apostólico, ainda que Pedro ou Paulo o ensinem. Novamente, o que Cristo prega é apostólico, mesmo que Judas, Anás, Pilatos e Herodes o tenham feito”.

As implicações desse princípio afetam no conceito de canonicidade, na interpretação bíblica e na homilética luteranas.

A tradição evangélica luterana nunca oficialmente fez um cânone das Escrituras. Nem seria necessário. Por esse princípio, tudo o que aponta para Cristo nas Escrituras hebraicas seriam canônicos e tudo que testificam o ministério de Cristo dentre os escritos apostólicos seria canônico. Em razão disso, Lutero questionou a canonicidade de Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse — os Antilegômenos de Lutero– ainda que os traduzisse e inserisse em seu Novo Testamento.

Quanto à interpretação, essa chave hermenêutica cristocêntrica poupou o luteranismo de muitas controvérsias teológicas. Isso porque passou ser uma hermenêutica centrada na totalidade da mensagem, não em detalhes. Consequentemente, o luteranismo mantém os mesmos documentos confessionais desde o século XVI: o livro de Concórdia.

Lutero entendia que a pregação deveria ser fundamentada nas Escrituras, apontando para Cristo e voltada para o povo. Pregar seria colocar as pessoas em contato com a mensagem de salvação em Jesus Cristo testemunhada pelas Escrituras.

BIBLIOGRAFIA

Jacobson, Diane. “What Lutherans Think About the Bible. Here We Stand — Between Fundamentalism and Secularism”. Book of Faith.

Lutero, Martinho. WA, DB VII 38.

Meurer, Siegfried. “Was Christum Treibet” : Martin Luther Und Seine Bibelübersetzung. Bibel Im Gespräch, 4. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1996.

Laodiceia

Laodiceia foi uma próspera cidade comercial na região da Frígia, no noroeste da Ásia Menor. Era vizinha das cidades de Colossos e Hierápolis (Col 2:1; Col 4:13-16), ficavam neste mesmo vale do rio. Modernamente, o sítio arqueológico situa-se perto da cidade de Denizli, Turquia

No reinado de Nero (60 d.C.) um terremoto destruiu completamente a cidade. Os habitantes recusaram a ajuda imperial para reconstrui-la e a restauraram com um estilo grego.

Havia uma considerável comunidade judia nessa região da Frígia. Antíoco III, o Grande, transportou 2.000 famílias judias da Babilônia para a Frígia. Cícero registra que Flaco confiscou 9 quilos de ouro destinado anualmente ao templo de Jerusalém (Pro Flacco 28-68). O martírio do judeus Lulianos e Pafos, registrado no Talmude, possivelmente aconteceu lá. Um alvará dos magistrados laodicenses autorizava os judeus observarem o sábado e seus outros ritos, de acordo com a injunção de Caio Rubílio. (Josefo Antiguidades Judaicas, XIV. X. 20)

A primitiva igreja reunia-se provavelmente na casa de Ninfa. Epafras, retratado como um dos companheiros de Paulo, aparentemente foi pioneiro das igrejas nas três cidades (Cl 4:12-13). De acordo com Col 4:16, Laodiceia correspondeu com Paulo, mas a epístola de Laodiceia não sobreviveu até nós.

A igreja de Laodiceia foi uma das sete repreendidas em Apocalipse (Ap 3:14-22).

Alguns manuscritos aparecem no final de 1 Timóteo “Escrita de Laodiceia, metrópole da Frígia de Pacatiana”.

Sínodo de Laodiceia

Entre 342 e 380 (provavelmente por volta dos anos 363 e 365) ocorreu o Sínodo de Laodiceia, reunindo cerca de trinta clérigos da Ásia Menor. Se situado na décadade de 360, este concílio de Laodiceia seria uma reação contra o reinado de Juliano, o apóstata, quando as condições políticas à cristandade foram desfavoráveis. Este sínodo marca um início de imposição doutrinária hierarquizada e autoritária.

As principais preocupações do concílio envolviam a regulamentação da conduta dos membros da igreja. Entre seus sessenta cânones condena hereges (cânones 6–10, 31–34, 37), judeus (cânones 16, 37–38) e pagãos (cânone 39). Vedou
a guarda do sábado e incentivando o descanso no domingo (cânon 29). Normatizou litúrgicas (cânones 14–20, 21–23, 25, 28, 58–59). Impôs restrições durante a quaresma (cânones 45, 49–52). Bane as presbíteras, ágapes nas igrejas, força a separação com os judeus e outros cristãos. Proibe o acesso das mulheres ao altar. Impõe uma hierarquia interna.

Seus cânones 59 e 60 discorrem sobre o cânon bíblico, embora a autenticadade do cânon 60 seja duvidável. Esse cânone falta em vários manuscritos gregos e esta ausente na versão latina dos cânones, além da lista ser igual à de Cirilo de Jerusalém.

“59. Nenhum salmo composto por particulares nem quaisquer livros não canônicos podem ser lidos na igreja, mas apenas os livros canônicos do Antigo e do Novo Testamento.”

“60. Estes são todos os livros do Antigo Testamento designados para serem lidos: 1, Gênesis do mundo; 2, O Êxodo do Egito; 3, Levítico; 4, Números; 5, Deuteronômio; 6, Josué, filho de Num; 7, Juízes, Rute; 8, Ester; 9, Dos Reis, Primeiro e Segundo; 10, Dos Reis, Terceiro e Quarto; 11, Crônicas, Primeiro e Segundo; 12, Esdras, Primeiro e Segundo; 13, O Livro dos Salmos; 14, Os Provérbios de Salomão; 15, Eclesiastes; 16, O Cântico dos Cânticos; 17, Jó; 18, Os Doze Profetas; 19, Isaías; 20, Jeremias e Baruque, as Lamentações e a Epístola; 21, Ezequiel; 22, Daniel.

“E estes são os livros do Novo Testamento: Quatro Evangelhos, segundo Mateus, Marcos, Lucas e João; Os Atos dos Apóstolos; Sete epístolas católicas, a saber, uma de Tiago, duas de Pedro, três de João, uma de Judas; Catorze Epístolas de Paulo, uma aos Romanos, duas aos Coríntios, uma aos Gálatas, uma aos Efésios, uma aos Filipenses, uma aos Colossenses, duas aos Tessalonicenses, uma aos Hebreus, duas a Timóteo, uma a Tito, e outro a Filemom.”

Notoriamente, não lista o Apocalipse e inclui 1 e 2 Esdras, Baruque e a Epístola de Jeremias.

Canonização

Canonização refere-se ao processo de estabelecer a canonicidade de textos bíblicos. Especificamente, há três acepções para cânon ou cânone: (1) a regra de fé em coerência com os livros bíblicos; (2) a lista de livros reconhecidos como inspirados para servir como fonte e norma provenientes de Deus para a instrução em sabedoria; e (3) o conteúdo textual dos livros canônicos reconhecido como legítimo.

A canonização ocorreu como um processo emergente e gradual, sem ser determinado por um único evento, um único conjunto de critérios e uma só autoridade. Antes, o processo de canonização foi uma interação complexa de vários fatores, incluindo debates teológicos, pressões sociais e interpretações individuais. Nesse processo, acanonização nem sempre foi perfeitamente consistente ou lógica, refletindo os debates dentro das religiões abraâmicas na busca e definir suas crenças e Escrituras fundamentais, bem como em seu uso cultual.

BIBLIOGRAFIA

Bokedal, Tomas. The Formation and Significance of the Christian Biblical Canon : A Study in Text, Ritual and Interpretation. Bloomsbury, 2014.

Brenneman, James E. Canons in Conflict : Negotiating Texts in True and False Prophecy. Oxford University Press, 1997.

Evans, Craig A.; Tov, Emanuel. Exploring the Origins of the Bible : Canon Formation in Historical, Literary and Theological Perspective. Baker Academic, 2008.

Gallagher, Edmon L., and John D. Meade. The biblical canon lists from early Christianity: Texts and analysis. Oxford University Press, 2017.

Kruger, Michael J. The Question of Canon: Challenging the Status Quo in the New Testament Debate. InterVarsity Press, 2013.

Hovhanessian, Vahan S. The Canon of the Bible and the Apocrypha in the Churches of the East. Peter Lang, 2012

Metzger, Bruce M. The Canon of the New Testament : Its Origin, Development, and Significance. Clarendon Press, 1987, pp. x, 326.

McDonald, Lee Martin; Sanders, James A. The Canon Debate. Peabody: Hendrickson Publishers, 2002.

McDonald, Lee M. 2007. The Biblical Canon : Its Origin, Transmission, and Authority. [Updated & rev. 3rd ed.]. Peabody, Mass: Hendrickson Publishers.

Nel, Marius. “Pentecostal Canon of the Bible?”, Journal of Pentecostal Theology 29, 1 (2020): 1-15, doi: https://doi.org/10.1163/17455251-02901001

Thomassen, Einar, ed. Canon and Canonicity: the formation and use of scripture. Museum Tusculanum Press, 2010.

Cânone de Ebed Jesu

Mar Ebed Jesu (Abd Yeshua, ou Abdisho bar Berika) foi o metropolita de Nisibis e Armênia da Igreja do Oriente. Era de origem siríaca. Depois de ser bispo de Sigara (Sinjar) por cinco anos foi feito bispo de Soba ou Nisibis em 1290 d.C.

Erudito, em c. 1298, publicou um cânone bíblico — uma lista de livros válidos para a vida em Igreja.

Com a força de Tua ajuda, ó Senhor, e auxiliado pelas orações de todos os eminentemente justos e da Mãe de grande nome, escrevo um excelente tratado, no qual enumerarei as Divinas Escrituras e todos os escritos eclesiásticos de tempos antigos e modernos. Além disso, registrarei os nomes dos autores dos diferentes livros e os assuntos de que tratam; e, com ajuda de Deus, começo com Moisés.

Moisés escreveu a Lei em cinco livros, a saber: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Depois disso, segue o livro de Josué, filho de Num; Juízes; Samuel; o livro dos Reis; as Crônicas; os Salmos de Davi; os Provérbios de Salomão; Eclesiastes; o Cântico dos Cânticos; a Grande Sabedoria [Sabedoria de Salomão]; a Sabedoria do filho de Siraque; Jó; Isaías; Oseias; Joel; Amós; Obadias; Jonas; Miqueias; Naum; Habacuque; Sofonias; Ageu; Zacarias; Malaquias; Jeremias; Ezequiel; Daniel; Judite; Ester; Susana; Esdras; Daniel o Menor [adições de Daniel?] ; a Epístola de Baruque; as Tradições dos Anciãos [Mishna? ou Pirkei Avot?]; Josefo, o historiador; o livro de Provérbios; a Narrativa dos filhos de Salomona; os Macabeus; um relato do rei Herodes; o livro da destruição da última Jerusalém por Tito; o livro de Asenate a esposa de José, o filho de Jacó, o justo; e o livro de Tobias e Tobit, o israelita.

Tendo enumerado os livros do Antigo Testamento, iremos agora registrar os do Novo Testamento. Primeiro, Mateus escreveu na Palestina, na língua hebraica. Depois dele vem Marcos, que escreveu em latim em Roma. Lucas, em Alexandria, falava e escrevia em grego. João também escreveu seu Evangelho em grego em Éfeso. Os Atos dos Apóstolos foram escritos por Lucas a Teófilo; e as três epístolas de Tiago, Pedro e João foram escritas em todas as línguas e chamadas de católicas. Além dessas, há quatorze epístolas do grande apóstolo Paulo, a saber, a epístola aos Romanos, escrita em Corinto; a Primeira Epístola aos Coríntios, escrita em Éfeso e enviada pelas mãos de Timóteo; a segunda aos Coríntios, escrita de Filipos da Macedônia, o grande, e enviada pelas mãos de Tito; a Epístola aos Gálatas, escrita em Roma e enviada pela mesma pessoa; a Epístola aos Efésios, também escrita em Roma e enviada por Tíquico; a Epístola aos Filipenses, escrita no mesmo lugar e enviada pelas mãos de Epafrodito; a Epístola aos Colossenses, escrita em Roma e enviada por Tíquico, o verdadeiro discípulo; a Primeira Epístola aos Tessalonicenses, escrita em Atenas e enviada pelas mãos de Timóteo; a Segunda aos Tessalonicenses, escrita em Laodiceia da Pisídia, e enviada também por Timóteo; a Primeira Epístola a Timóteo, também escrita de Laodiceia da Pisídia, e enviada pelas mãos de Lucas; a Segunda a Timóteo, escrita de Roma e enviada pelas mãos de Lucas, o Médico e Evangelista; a Epístola a Tito, escrita em Nicápolis, e enviada pelas mãos de Epafrodito; a Epístola a Filemom, escrita em Roma e enviada por Onésimo, escravo de Filemom; a Epístola aos Hebreus, escrita na Itália e enviada pelas mãos de Timóteo, o filho espiritual. E os [Harmonia dos] Evangelhos, chamados de Diatesseron, compilados por um homem de Alexandria chamado Amonis, que é Taciano.

Vale salientar que o conceito de cânone bíblico nas igrejas orientais é diferente de sua concepção ocidental. Entre cristãos ortodoxos do mundo oriental há livros elencados como dignos para doutrina e liturgia bem como outros livros inspirados, mas reservados à leitura privada. O cânone de Ebed-Jesu deve ser compreendido nesse caráter amplo.

BIBLIOGRAFIA

Abdisho’ bar Brika (Ebed-Jesu). Marganitha. Em Metrical Catalogue of Syriac Writers. G.P. Badger, The Nestorians and their rituals (1852) vol. 2, pp.361-379.