Bíblia Hesiquiana

Hesíquio de Alexandria (?-c.300) foi um exegeta que produziu a Bíblia Hesiquiana, uma recensão da Septuaginta e partes do Novo Testamento (possivelmente, os quatro evangelhos).

Hesíquio teria sido bispo de um lugar no Egito no século III e é confundido com lexicógrafo homônimo.

Esta recensão é mencionada por Jerônimo como obra de Hesíquio com a colaboração de Luciano de Antioquia. Segundo Eusébio (Hist. Ecl.8.13.7), um tal Hesíquio foi martirizado sob Diocleciano com três contemporâneos: Pacômio, Fileas e Teodoro. Os quatro mártires escreveram uma carta datada de 296 d.C. a Melício, bispo cismático de Licópolis, no Alto Egito, repreendendo-o por ordenações irregulares

No século IV as igrejas do Egito e em Alexandria utilizavam a Septuaginta Hesiquiana ao invés da edição de Orígenes. Jerônimo (Praef. in Paral.; Adv. Ruf. 2,27) critica Hesíquio, acusa-o de interpolação em Isaías 58:11 (Comm. em Is. ad. 58, 11) e de falsas adições ao texto bíblico (Praef. em Evang.). O Decretum Gelasianum alude aos “evangelhos que Hesíquio forjou” e chama-os de apócrifos.

Crítica textual

A crítica textual é o ramo da filologia aplicada na determinação dos textos bíblicos. Busca comparar evidências internas e externas em manuscritos e outras testemunhas para reconstituir o texto bíblico.

É também chamada de manuscritologia ou “baixa crítica”, conceito hoje obsoleto.

BIBLIOGRAFIA

Epp, Eldon Jay; Fee, Gordon D. Studies in the Theory and Method of New Testament Textual Criticism. Grand Rapids: Eerdmans, 1993.

Crítica canônica

A crítica canônica da Bíblia é uma abordagem exegética sincrônica que estuda o texto tal como foi recepcionado por comunidades de fé, interpretando-o em seu contexto canônico e reconhecendo a Bíblia como uma coleção unificada e inspirada de escritos. Esse método se concentra em ler a Bíblia como um todo coerente, buscando captar sua mensagem teológica e literária integral e sua relevância para as comunidades que a recepcionaram.

Definição e Princípios Fundamentais

A crítica canônica, também conhecida como Abordagem Canônica, enfatiza a leitura da Bíblia como um conjunto harmonioso, a Palavra de Deus para a igreja e para a comunidade de fé. Trata-se de uma metodologia que busca entender as escrituras dentro de seu próprio contexto literário e teológico, reconhecendo a Bíblia como uma seleção cuidadosamente formada de textos sagrados. É uma abordagem frequentemente adotada por cristãos que leem a Bíblia com uma perspectiva de fé, focando-se em compreender seu significado espiritual e moral para suas vidas e suas comunidades.

Princípios-Chave

  1. Verdade: A Bíblia é lida com a expectativa de encontrar a verdade, seja ela literal, histórica, poética ou simbólica. Passagens que podem não ser historicamente precisas são ainda consideradas portadoras de verdades profundas e espirituais.
  2. Relevância: Todo o conteúdo bíblico é visto como eternamente relevante para os fiéis, mesmo quando trata de questões específicas do período da igreja primitiva. Os leitores buscam o significado contínuo desses textos para o contexto contemporâneo.
  3. Importância: Cada passagem da Bíblia é considerada significativa e portadora de sabedoria divina. Nenhuma parte das escrituras é vista como trivial ou irrelevante.
  4. Autoconsistência: A Bíblia é entendida como um documento que fala com uma voz única e unificada. Contradições aparentes entre passagens são encaradas como oportunidades para uma leitura mais aprofundada e uma interpretação harmonizadora dos diferentes pontos de vista no contexto da narrativa bíblica.
  5. Conformidade com o Ensino da Igreja: Especialmente enfatizado em contextos católicos, esse princípio sugere que a interpretação bíblica deve se alinhar com os ensinamentos e tradições centrais da igreja, assegurando que as interpretações sejam fundamentadas na fé histórica da comunidade.

Características Distintivas

A crítica canônica distingue-se de outras abordagens exegéticas por seu foco em certos aspectos centrais:

  • Ênfase na Bíblia como Unidade Completa: Diferentemente de métodos que analisam textos ou versículos isoladamente, a abordagem canônica valoriza a interconectividade das escrituras, buscando compreender a Bíblia como um todo integrado.
  • Foco na Fé e na Comunidade: Esta abordagem reconhece o papel essencial da Bíblia na formação da fé e da vida espiritual da comunidade cristã. O texto é lido em diálogo com as tradições e práticas da comunidade de fé.
  • Sensibilidade a Temas Teológicos: A crítica canônica está particularmente atenta às mensagens teológicas da Bíblia, explorando suas implicações para a crença e prática cristã.

Comparação com Outras Abordagens

Ao contrário de abordagens críticas tradicionais que utilizam fontes extrabíblicas para esclarecer aspectos históricos e culturais, a crítica canônica considera a Bíblia em seus próprios termos. Embora reconheça a importância dos contextos históricos e culturais, esta abordagem não depende deles; em vez disso, prioriza referências e alusões internas para elucidar passagens desafiadoras.

Não é parte do escopo da crítica canônica examinar tradições ou partes menores internas a um livro, como faz, por exemplo, a crítica das fontes. Dessa forma, esse método coloca a Bíblia como um documento completo e divinamente inspirado, direcionando sua interpretação de modo a buscar sentido e unidade teológica.

Forças

  • Promove uma Leitura Holística e Unificada da Bíblia: Estimula os leitores a considerarem a Bíblia em sua totalidade, o que favorece uma visão abrangente de sua mensagem.
  • Encoraja o Envolvimento com a Mensagem Teológica da Bíblia: Convida os intérpretes a explorar as profundezas espirituais e doutrinárias das Escrituras.
  • Fomenta um Sentimento de Continuidade com a Tradição Cristã: Ao alinhar-se com os ensinamentos históricos da igreja, preserva a conexão com as interpretações tradicionais da fé.

Limitações

  • Tendência a Negligenciar Particularidades Históricas e Literárias: Pode deixar de lado as nuances e o contexto de textos específicos, focando mais na unidade global.
  • Risco de Impor Interpretações Teológicas Pré-Concebidas: Ao partir de uma visão de unidade e harmonia, corre-se o risco de encaixar interpretações em uma moldura predefinida, em vez de permitir conclusões mais abertas.

Conclusão

A crítica canônica, desenvolvida por Brevard Childs (1923-2007), oferece uma estrutura rica e unificadora para a leitura da Bíblia dentro de um contexto de fé e comunidade. Ao enfatizar a unidade, relevância e profundidade teológica das escrituras, essa abordagem convida os leitores a se engajarem com a Bíblia como a Palavra viva de Deus. Mesmo com suas limitações, a crítica canônica continua a ser uma ferramenta importante para aqueles que buscam uma interpretação da Bíblia enraizada na tradição e na continuidade da fé cristã.

Bibliografia

Childs, Brevard. Introduction to the Old Testament as Scripture. Philadelphia, PA: Fortress Press, 1979.

Arnold, B. T. & Beyer, B. E. Encountering the Old Testament: A Christian Survey. Grand Rapids: Baker, 1999.

Louis Cappel 

Louis Cappel ou Ludovicus Cappellus (1585 – 1658) foi um pioneiro tratamento puramente filológico e científico do texto da Bíblia e professor da Academia de Saumur.

Nasceu em uma família de huguenotes nobres refugiados em Sedan. Estudou hebraico e viajou pela Alemanha e Holanda antes de tornar-se professor em Saumur, onde foi colega de Amyraut.

Suas obras publicadas são:

“Arcanum Punctationis Revelatum”, publicado anonimamente por Thomas Erpenius, em Leiden, em 1624. Demonstrou conclusivamente que a vocalização do texto hebraico era algo tardio, bem como a escrita quadrada dos manuscritos massoréticos eram posteriores à escrita paleohebraica dos samaritanos.

“Critica Sacra”, impresso em Paris, em 1650. Demonstrou que o texto consonantal massorético teve uma transmissão praticamente sem erros, mas que as edições contemporâneas precisavam serem corrigidas comparando versões e pelo método conjectural. Assim, distinguiu entre os autógrafos e os textos atuais nas línguas originais.

Johann Salomo Semler

Johann Salomo Semler (1725-1791) foi um teólogo luterano e biblista alemão.

Filho de pietistas, mas viria a aderir à teologia racionalista dos neólogos. Junto de J. A. Ernesti (1707–1781) e S. J. Baumgarten de Halle (1706–1757), Semler desvinculou a teologia dogmática da ortodoxia luterana — quer pietista, quer escolástica — abrindo o caminho para uma teologia racionalista. Em 1751 tornou-se professor na Universidade de Halle.

Os neólogos afirmavam estudar a Bíblia de um ponto de vista científico despido de pressupostos dogmáticos. Assim, buscavam provar que a teologia era compatível com uma fé racional.

Semler foi um dos primeiros teólogos alemães a aplicar o método histórico-crítico ao estudo da Bíblia.

Distinguia entre teologia e religião bem como entre Palavra de Deus e Escrituras em sua principal obra Tratado sobre a livre investigação do cânon (1771). Baseando-se na distinção que Lutero e Melâncton faziam entre Escrituras e Palavra de Deus, Semler argumentava que a revelação residia somente na Palavra de Deus. Hesitante em definir o que seria a Palavra, no entanto, empregava essa distinção, em contraste com a tradição da Reforma de considerar a tripla manifestação da Palavra de Deus. Para Semler, a Palavra de Deus seria as verdades espirituais interiores, a qual seria universal, abstrata, transcendente e capaz de levar à instrução salvítica. A Palavra de Deus seria discernível pelo testemunho do Espírito Santo no coração do leitor. Já as Escrituras seriam a acomodação dos autores humanos à revelação divina da Palavra de Deus.

A distinção entre o texto e a Palavra de Deus permitiu-lhe trabalhar criticamente com a Bíblia enquanto mantinha sua fé na autoridade da Palavra de Deus. Assim, levou em conta os aspectos humanos da composição da Biblia. Notou sistematicamente vieses pró e antijudaico no Novo Testamento. Enquanto os textos bíblicos foram escritos para audiências específicas, a Palavra de Deus seria universal.

Questinou autoridade e autenticidade de parte do conteúdo bíblico.
Considerava que muito do texto bíblico seria local e efêmero, portanto não normativo. Desse modo, rejeitou tentativas de harmonização dos evangelhos em uma narrativa singular, salientando as perspectivas únicas de cada evangelho. Inaugurou a crítica de audiência, notando que Jesus e os discípulos acomodavam seus discursos às suas audiências.

A produção de Semler foi vasta, sendo estimada entre 171 e 250 publicações. Muitas de suas novas conclusões eram pouco ortodoxas. Apesar disso, questionava as doutrinas do racionalismo (principalmente do spinozeísmo), do naturalismo, do deísmo e dos socinianos. Sustentava, no entanto, que os ministros deveriam ser obrigados a subscrever publicamente a confissão de fé conforme a doutrina tradicional.

BIBLIOGRAFIA

Hornig, Gottfried. “Die Anfänge der historisch-kritischen Theologie: Johann Salomo Semlers Schriftverständnis und seine Stellung zu Luther.” Forschungen zur systematischen Theologie und Religionsphilosophie (1961).

Kümmel, Werner Georg. “Semler, Johann Salomo: Abhandlung von freier Untersuchung des Canon. Hrsg. von H. Scheible.” Theologische Rundschau 35.4 (1970): 366-366.

Kümmel, Werner Georg. The New Testament: The History of the Investigation of It’s Problems. Trad. MacLean Gilmour, Howard C. Kee. Nashville: Abingdon Press, 1972.

Paschke, Boris. Semler and Historical Criticism. Concordia Theological Quarterly 80 (2016), 113-132.

Schroter, Marianne. Aufklarung durch Historisierung: Johann Salomo Semlers Hermeneutik des Christentums. Berlin: Gruyter, 2012.