Teoria da substituição penal

A teoria da substituição penal é uma perspectiva soteriológica forense de como a morte de Cristo proporciona a reconciliação da humanidade com Deus.

Nessa perspectiva da expiação pela substituição penal, os pecados original e atuais são ofensas à santidade e à justiça de Deus. A satisfação a essa ofensa seria paga pela morte de Cristo (razão para essa teoria ser chamada por vezes de expiação transacional ou comercial). Cristo foi o único capaz de suportar a penalidade total do pecado do homem em sua morte vicária. Toda a culpa e o castigo que os pecadores merecem foram transferidos para Cristo. A obediência de Cristo em vida e sofrimentos em sua pena total foram de tal modo que o pecado não seja mais imputado ou a pena exigida daqueles por quem Ele morreu. Assim, a penalidade dos pecados foi transferida para Cristo por imputação.

As bases bíblicas geralmente apontadas são João 11:50-52; Romanos 5:8-9; Tito 2:14; 1 Pedro 3:18.

Inicialmente a teoria da substituição penal foi elaborada por Calvino com base na teoria de satisfação de Anselmo e da imputação da justificação de Lutero. Vale atentar que tanto Calvino quanto Lutero tratavam da doutrina de modo complexo, sem exclusivamente reduzi-la ao modelo de substituição penal. Calvino refinou essa doutrina em seu debate com Andreas Osiander. Foi contestada por Hugo Grócio e alguns arminianos mediante a teoria governamental de expiação. Entretanto, a teoria da substituição penal ganhou uma versão em John Wesley que se tornou corrente entre arminianos de língua inglesa.

Variantes ocorreram nas confissões calvinistas do século XVII e na teoria do representante federal. Essa variante foi desenvolvida por Cocceius, Turretin e John Gill. Nela, por uma aliança das obras Adão foi o representante federal de toda a humanidade. Portanto, seu pecado e suas consequências seriam legalmente imputados a todos. Cristo seria a contrapartida e representante, mas sendo divino e humano, não pecou. Estaria, assim, representando a humanidade diante do Pai.

A ênfase no vicário (substituição) leva a uma reafirmação pleonástica de “substituição vicária” para distinguir essa doutrina de outras variantes substitutivas de expiação, mas não penais. Um exemplo de substituição não penal é a teoria do prêmio. No final do século XIX, o teólogo sueco P. P. Waldenström chegou à conclusão de que Cristo morreu não para mudar a atitude de Deus Pai para com os pecadores, mas para mudar o coração dos pecadores. Essa variante é chamada de teoria do prêmio (premial theory) da expiação, pois considera o prêmio do lado vitorioso em um caso forense. É uma teoria popular entre denominações e grupos avivados de matriz escandinava.

A doutrina da substituição penal distingue-se também das teorias sacrificiais de Zinzerford e Girard. A soteriologia do teólogo morávio é sacrificial, mas não substitutiva. Zinzendorf centrava-se na metáfora de Cristo como o Cordeiro imolado, cujo sangue e feridas resgataram o mundo, proporcionavam a união mística e exemplo para humanidade. Influenciado por Dippel, não aceitava que o Deus de amor se satisfaria com a morte de um substituto para a humanidade. Já na teoria do bode expiatório René Girard e James Alison propõem uma substituição vicária, mas não penal. A humanidade odiou os ensinos e vida de Cristo porque não o podia imitar. Foi sacrificado como uma vítima do ódio humano. A morte gera um arrependimento e possibilidade de restaurar a ordem originalmente proposta.

As doutrinas da substituição penal ou expiação sacrificial e mesmo todo o sistema de soteriologia forense recebe diversas críticas teológicas. Um problema o qual essa teoria não responde é a do papel do Espírito Santo bem como não liga ou explica a expiação às transformações proporcionada pela graça desde salvação até cura divina. Há ainda críticas à moralidade dessa teoria. Por exemplo, Rita Nakashima Brock compara expiação sacrificial a abuso infantil divino. Em pesquisa empíritca, Hydinger e seus colaboradores encontraram uma correlação entre a propagação dessa doutrina com sofrimentos psicológicos. Ainda esse modelo contradiz as evidências bíblicas e históricas sobre a função do sacrifício na antiga religião israelita, o qual não tinha caráter forense. Outra crítica é que na ideia de que na cruz Cristo recebeu a punição exata e literal da humanidade não corresponde exatamente a um inferno de sofrimento eterno em penalidade ao pecado. Todavia, na Declaração de Cambridge (cidade de Massachussetts), elaborada em 1996 pela Alliance of Confessing Evangelicals, um grupo de pastores novo calvinistas e de alguns luteranos, consideraram a doutrina da substituição como o próprio evangelho:

Segunda tese: Solus Christus

Reafirmamos que nossa salvação é realizada somente pela obra mediadora do Cristo histórico. Sua vida sem pecado e expiação substitutiva por si só são suficientes para nossa justificação e reconciliação com o Pai.

Negamos que o evangelho seja pregado se a obra substitutiva de Cristo não for declarada e a fé em Cristo e em sua obra não for solicitada.

Diante desse ataque à fé cristã tradicional, reacendeu-se a discussão sobre a doutrina da expiação. Teólogos evangélicos e de diversas vertentes denominacionais responderam com novas articulações das doutrinas históricas do cristianismo sobre a expiação tanto em termos de soteriologia forense quanto de soteriologia transformativa.

BIBLIOGRAFIA

Belousek, Darrin W. Snyder. Atonement, justice, and peace: The message of the cross and the mission of the church. Grand Rapids: Eerdmans, 2011.

Brock, Rita Nakashima; Parker, Rebecca Ann Parker. Saving paradise: How Christianity traded love of this world for crucifixion and empire. Beacon Press, 2008.

Hydinger, Kristen, et al. “Penal substitutionary atonement and concern for suffering: An empirical study.” Journal of Psychology and Theology 45.1 (2017): 33-45.

McGrath, Alister E. Iustitia Dei: a history of the Christian doctrine of justification. Cambridge University Press, 2005.

Stott, John R.W. The Cross of Christ. Downers Grove, Ill. : InterVarsity Press, 1986.

Stump, Eleonore. Atonement, Oxford University Press, 2019.

Teoria da satisfação

A doutrina da satisfação ou teoria da compensação para a obra reconciliatória de Jesus Cristo postula que por sua a vinda e morte os pecados foram expiados porque, mesmo que a honra de Deus tenha sido ofendida pelo pecado, Cristo pagou pelos pecadores uma satisfação ao Pai.

Proposta originalmente pelo teólogo medieval Anselmo em reação à doutrina do resgate da expiação. Anselmo considerava ímpia a noção de resgate como uma transação comercial paga a Satanás. Assim, a teoria da satisfação explicava porque era necessário que Deus se tornasse humano para satisfazer a justiça divina, maculada pelo pecado original.

A base bíblica mais importante para essa perspectiva encontra-se em João 10:18.

Pode-se resumir o pensamento da teologia de Anselmo que Deus é o ser com os máximos atributos possíveis. Sendo o mais justo, deveria ter sua justiça divina satisfeita. Essa seria a razão pela qual Deus se tornou humano e morreu pelos pecados dos seres humanos. Pelo pecado, a humanidade ofendeu a honra de Deus. Por isso, a justiça de Deus exige satisfação por essa ofensa. Porém, somente alguém totalmente santo e puro poderia realizar essa satisfação. Por isso, Jesus Cristo como Deus encarnado foi o único capaz. Sua morte fiel permitiu satisfazer a necessidade divina por justiça, apaziguar sua ira e reconstituir sua honra.

Portanto, se não é apropriado que Deus faça algo injusto ou fora do curso, então não pertence à sua liberdade, compaixão ou vontade deixar impune o pecador que não retorna a Deus daquilo que o pecador defraudou-o.
Cur Deus Homo 1.12

Nas sociedades urbanas e no direito civil contemporâneo ocidental não é algo corrente pensar em honra e satisfação. A soteriologia forense e a noção de justiça de Anselmo foram concebidas em uma matriz cultural do direito franco-germânico medieval. Por esse motivo, Hasting Rashdall (1919) vê a soteriologia de Anselmo como a atuação de um advogado lombardo em uma corte feudal.

Na sociedade feudal, um ofensor era obrigado compensar ou dar uma satisfação ao ofendido de acordo com o status dessa pessoa. Assim, um crime contra um rei exigiria mais satisfação do que um crime contra um barão ou um servo. Por analogia, a humanidade finita e falha jamais poderia satisfazer a Deus Todo-poderoso. Ela somente poderia esperar apenas a morte eterna. O único meio de reconciliar a humanidade com Deus, portanto, só poderia ser via alguém que fosse tanto Deus – porque Deus poderia vencer o pecado pela impecabilidade – quanto humano – porque os humanos eram culpados de pecado.

Nesse ambiente cutural, Anselmo concebia a justiça de Deus de forma múltipla. A justiça divina, em um aspecto, seria distinguir o bem e o mal. Em outro aspecto, ontológico, a própria justiça de Deus seria o caráter próprio da divindade.

Embora Anselmo tenha sido o primeiro teólogo a expor esta doutrina, vestígios da doutrina da satisfação já podem ser encontrados em autores patrísticos latinos como Tertuliano, Cipriano de Cartago, Agostinho de Hipona e Gregório Magno.

A teoria da satisfação ganhou força entre os escolásticos e depois entre os reformadores, principalmente com a doutrina da imputação da justiça em Lutero e na teoria da substituição penal de Calvino. Variantes da teoria da satisfação constituem uma das principais doutrinas entre católicos romanos e anabatistas sobre a reconciliação.

É digno de nota que Anselmo distingue entre satisfação e punição, enquanto na recepção posterior (como na Summa Theologica de Tomás de Aquino ou no Catecismo de Heidelberg) estas coincidem. Revendo esta doutrina, Thomas Merton diz que a doutrina da expiação por satisfação de acordo com Anselmo foi mal interpretada. Para Anselmo, satisfazer a honra divina seria principalmente buscar a restauração da comunhão entre Deus e o homem, de modo que a honra de Deus é satisfeita quando a paz é restaurada.

Enquanto Anselmo lançou as bases para o conceito de satisfação no discurso teológico, Lutero e Calvino expandiram este tema, particularmente no contexto de apaziguar a ira ou justiça de Deus. Lutero, ao enfatizar a noção da ira de Deus como uma força imparável que deve ser satisfeita, propôs um conflito dramático dentro da pessoa de Deus entre a ira e a misericórdia. Segundo Lutero, na cruz, Jesus atua como uma esponja absorvendo a ira de Deus, extinguindo-a eventualmente através de sua morte sacrificial. Este retrato convida os crentes a se alinharem com a misericórdia de Deus sobre a ira, enquadrando a ira como indesejável e a misericórdia como virtuosa. Por outro lado, Calvino traduziu a teoria da satisfação em termos jurídicos, concentrando-se na justiça de Deus que requer satisfação. Para Calvino, o perdão sem justiça seria injusto, necessitando de uma forma de reconciliar misericórdia e justiça. Neste quadro jurídico, Jesus torna-se um substituto que suporta o castigo exigido pela justiça, conforme delineado na lei de Deus. A cruz é vista como um ato de punição, com o Pai infligindo e o Filho suportando, enfatizando a quantidade crucial de sofrimento necessária para cumprir a justiça.

A maioria dos anabatistas concordou com alguns aspectos da teoria da satisfação sustentada pelos reformadores magisteriais, especialmente que a obra de Cristo foi suficiente para a salvação de toda a humanidade e que a salvação é somente pela graça. Contudo, as teorias da satisfação de Lutero ou Calvino eram inadequadas ou insuficientes. A razão foi porque os reformadores magisteriais concentraram-se principalmente na morte de Cristo. Além disso, a satisfação foi reduzida a uma doutrina passiva ou forense que dizia respeito apenas a uma mudança no estatuto jurídico da humanidade perante Deus, sem produzir mudança interior e ativa no crente. Finalmente, os anabatistas apontaram a negligência do papel do Espírito Santo na salvação da soteriologia magisterial e rejeitaram a distinção melanctoniana entre justificação e santificação.

Uma crítica é restringir a expiação à crucificação. Por esta interpretação, em sua agonia na cruz, Cristo satisfez plenamente a honra, a ira ou a justiça do Pai de modo que nada mais seria necessário. O problema é que isso representa a imagem de um Deus vingativo e mesquinho. Adicionalmente, tal doutrina contraria a necessidade de ressurreição para a expiação, conforme enfatizado pelo Novo Testamento. Se Cristo tivesse apenas morrido, mas não tivesse ressuscitado, Sua morte por si só não seria satisfatória para a expiação dos pecados (1Co 15:17; Rm 4:25).

Outra crítica é o corolário de que nem mesmo Deus é capaz de nos perdoar até que a satisfação seja cumprida. Uma analogia frequente é que seria como um juiz cometer a “injustiça” de abrir um presídio para libertar toda sorte de criminosos que não pagaram suas penas. O problema dessa analogia é não considerar o poder transformativo do evangelho, a graça divina, o ato de resgate por Cristo, a vitória de Cristo sobre o mal que afeta os pecadores, além de limitar a soberania de Deus.

BIBLIOGRAFIA

Anselmo. Cur Deus homo? 1099.

Baur, Ferdinand Christian. Die christliche Lehre von der Versöhnung in ihrer geschichtlichen Entwicklung von der ältesten Zeit bis auf die neueste. Tübingen: C.F. Osiander, 1838.

Green, Joel B.; Baker, Mark D. Recovering the Scandal of the Cross. Downers Grove: IVP, 2000.

Hiebert, Frances F. “The atonement in Anabaptist theology.” Direction 30.2 (2001): 122-138.

Rashdall, Hasting. The Idea of Atonement in Christian Theology. Londres: Macmillan, 1919.

Sattler, Michael (?) “Concerning the Satisfaction of Christ: An Anabaptist Tract on True Christianity,” trans. and intro. by John C. Wenger, The Mennonite Quarterly Review 20 (Oct. 1946): 247.

Teoria do Representante Federal

A teoria do representante federal é uma doutrina que integra a teologia do pacto ou a teologia da aliança para explicar o significado da morte de Cristo na expiação e reconciliação em termos de aliança ou pacto (foedus) com Deus.

Foi desenvolvida por teólogos reformados continentais como Johannes Cocceius e Francis Turretin a partir do século XVII, além de batistas britânicos de tendências calvinistas como John Gill.

A teoria do representante federal explica a morte e a obediência de Cristo como o cumprimento, por um novo chefe ou cabeça, do pacto que Adão violou. Nesse esquema, Deus teria estabelecido com o primeiro homem uma aliança de obras na qual a vida eterna estaria condicionada à perfeita obediência; ao desobedecer, Adão incorreu em culpa judicial e atraiu para toda a humanidade que representava tanto a culpa imputada quanto a corrupção herdada.¹ Para honrar a justiça que fora escarnecida, o Pai constituiu Cristo como “segundo Adão” ou cabeça federal da nova humanidade.² Em sua vida ativa o Messias cumpriu a justiça exigida; em sua paixão levou a penalidade devida, de modo que, unidos a ele, os eleitos recebem tanto a remissão quanto a própria justiça que lhes falta.³ A representação é, portanto, vicária: Cristo age no lugar do povo; mas também substitutiva: ele efetivamente paga a penalidade e satisfaz a dívida contratual, sem que isso anule o caráter relacional do pacto.⁴

As passagens que empregam na construção dessa teoria são: Romanos 5.12-19, que opõe “um só” que trouxe a condenação a “um só” que traz a justificação; 1 Coríntios 15.22, que fala da morte “em Adão” e da vida “em Cristo”; e Romanos 8.29, que apresenta o Senhor como primogênito entre muitos irmãos, isto é, cabeça da nova raça.⁵

A teoria distingue-se da substituição penal clássica por amplitude: enquanto esta última enfatiza o aspecto punitivo da cruz, a representação federal coloca esse aspecto dentro de uma obediência integral que abrange tanto a satisfação da justiça quanto o mérito positivo exigido pela aliança.⁶ Apesar disso, não há, portanto, antítese entre os dois conceitos; antes, a segunda engloba a primeira.

Em contraste com outra teoria representativa ou federal contemporânea, a teoria governamental, ao contrário, entende a morte de Cristo como mera demonstração da seriedade da lei, não como pagamento pleno da dívida; aí a semelhança de vocabulário (“representante”) esconde uma divergência fundamental sobre o que seja propriamente propiciação.⁷

Johannes Cocceius argumentou que os pactos se desdobram historicamente: o de obras, quebrado no paraíso, é honrado pelo de graça, estabelecido imediatamente após a queda e consumado no tempo pleno por Cristo.⁸ Francis Turretin, por sua vez, defendeu os aspectos jurídicos, insistindo que Cristo é não apenas mediador, mas fiador que pessoalmente responde perante o tribunal divino pelos termos violados por Adão.⁹ John Gill adotou o mesmo esquema, aplicando-o, porém, apenas aos eleitos. Curiosamente, Gill talvez seja simultaneamente um dos mais citados defensores da substituição penal.¹⁰

Em suma, a representação federal não é mera troca de chefe, mas o instrumento jurídico pelo qual a justiça retributiva e a promessa salvífica se encontram: na pessoa do segundo Adão, Deus cumpre o que exigira ao primeiro e, ao fazê-lo, restabelece a aliança quebrada, reconciliando consigo o povo que nela se encontra escondido.¹¹

NOTAS

Geerhardus Vos, “The Covenant Concept in the Theology of Cocceius,” in Redemptive History and Biblical Interpretation, ed. Richard B. Gaffin Jr. (Phillipsburg, NJ: P&R, 1980), 234–248.

Francis Turretin, Institutes of Elenctic Theology, ed. James T. Dennison Jr., trans. George Musgrave Giger (Phillipsburg, NJ: P&R, 1992), 8.3.1–8.5.14.

Johannes Cocceius, Summa Doctrinae de Foedere et Testamento Dei (Genevæ: Ioannis Hermanni Widerhold, 1648), 1.6–1.8.

John Owen, The Works of John Owen, ed. William H. Goold (Edinburgh: Banner of Truth, 1965), 5:260–270.

Herman Witsius, The Economy of the Covenants between God and Man, trans. William Crookshank (London: Baynes, 1822), 1.7.3–1.7.7.

Turretin, Institutes, 9.7.4–9.7.9; Cocceius, Summa, 2.3.

Richard B. Gaffin Jr., “Atonement and the Covenant of Works,” in Redemption Accomplished and Applied (Phillipsburg, NJ: P&R, 2022), 45–62.

Hugo Grotius, Defensio Fidei Catholicae de Satisfactione Christi, ed. Edwin R. Wallace (Andover: Draper, 1889), 5.12–5.16.

Cocceius, Summa, 3.1–3.4.

Turretin, Institutes, 12.3.1–12.3.12.

John Gill, A Complete Body of Doctrinal and Practical Divinity (London: Matthews & Leigh, 1839), 2.2.5–2.2.8.

Teoria governamental da expiação

A teoria governamental é uma perspectiva para explicar o motivo da morte de Jesus Cristo e seus efeitos na salvação. Essa soteriologia forense foi proposta pelo teólogo e jurista holandês Hugo de Groot (1583 – 1645) (Grotius, Grócio). Na teoria governamental o sacrifício de Jesus ocorreu para que o Pai perdoasse enquanto ainda mantinha seu governo justo sobre o universo.

DOUTRINA DA SUBSTITUIÇÃO DA PENA

Deus como mantenedor da lei na criação é livre para alterá-la ou abrogá-la, mas tem escolhido lidar com sua criação de modo consistente. Como a lei divina determina “a alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18:20) toda a humanidade estaria fadada à condenação. Simplesmente um perdão leniente não poderia satisfatizer essa lei. A morte de Cristo seria um exemplo público da seriedade do pecado e até onde Deus iria para defender a ordem moral do universo. O foco da morte de Cristo seria a defesa da lei divina, sendo a morte de Cristo uma substituição para a penalidade do pecado.

A teoria governamental é vicária, Cristo morreu em favor dos pecadores (Rm 5:8), mas não substitutiva, ou seja, não em lugar dos pecadores. Uma vez paga a penalidade do pecado, Cristo ofereceu o perdão a quem n’Ele cresse. Desse modo, Deus mantém sua lei ao mesmo tempo que, através da morte de Cristo, perdoa os pecados daqueles que se arrependem e têm fé na morte vicária de Cristo.

Os textos centrais dessa teoria são encontrados em Salmo 2, 5; Isaías 42:21.

HISTÓRIA DA RECEPÇÃO DA DOUTRINA GOVERNAMENTAL

Grócio formulou essa doutrina em resposta ao socianismo. Partindo de sua base arminiana, Grócio buscava explicar a necessidade de satisfazer Deus, não como uma honra ferida nos termos de Anselmo, mas em relação à lei divina. Apesar de sua popularidade como teólogo entre os remonstrantes holandeses, essa teoria governamental nunca ganhou muitos adeptos entre os arminianos, que em geral adotam a substituição vicária formulada por John Wesley.

Variações da teoria governamental da expiação foram adotadas tanto em correntes calvinistas e arminianas de língua inglesa. Na Inglaterra, Richard Baxter (1615-1691) e Samuel Clarke (1675-1729) adotaram alguns aspectos dela. Nos Estados Unidos a New Divinity School ou os edwardianos — seguidores do calvinista Jonathan Edwards (1703-1758) — também adotaram versões dela.

Uma formulação dessa doutrina pode ser resumida em um sermão de Edwards:

“Todos os pecados daqueles que verdadeiramente vêm a Deus por misericórdia, estejam eles como queiram, são satisfeitos, se Deus for verdadeiro que nos diz… de modo que Cristo tendo satisfeito totalmente por todos os pecados, ou tendo realizado uma satisfação que é suficiente para todos, agora não é inconsistente com a glória dos atributos divinos perdoar os maiores pecados daqueles que de maneira correta vêm a ele por isso.—Deus pode agora perdoar os maiores pecadores sem qualquer prejuízo à honra de sua santidade. A santidade de Deus não permitirá que ele dê a menor tolerância ao pecado, mas o inclina a dar testemunhos adequados de seu ódio a ele. Mas, tendo Cristo satisfeito [a Deus] pelo pecado, Deus pode agora amar o pecador e não dar nenhuma tolerância ao pecado, por maior pecador que ele possa ter sido. Deus pode, por meio de Cristo, perdoar o maior pecador sem prejuízo da honra de sua majestade. A honra da majestade divina de fato requer satisfação; mas os sofrimentos de Cristo reparam totalmente a ofensa”.

Edwards, Sermon XXV.

Dentre correntes arminianas, suas variantes aparece nas teologias de Charles Grandison Finney (1792-1875), em William Booth e no Exército da Salvação, bem como para o metodista John Miley (1813-1895).

Para Miley a expiação de Cristo é uma satisfação pelos pecados por substituição dos pecadores no sofrimento, mas não uma satisfação na substituição de penalidade. A expiação de Cristo é universal, mas o perdão dos pecados seria condicional à fé.

Uma crítica a essa perspectiva é que não explica o motivo de escolher um justo para demonstrar a vontade de Deus de defender a lei. Por que não colocar para morrer o pior de todos os pecadores? Por que Cristo e não Barrabás?

Há proximidades teológicas discerníveis com a teoria moral de Abelardo. Contudo, é frequentemente confundida com a teoria da substituição penal.

Tanto Grócio quanto Abelardo acreditavam que a expiação era necessária para o perdão dos pecados. Os pecadores precisavam se reconciliar com Deus e que a morte de Jesus Cristo desempenhou um papel crucial nesse processo. Ambas teoria são focadas na misericórdia e amor de Deus. Deus foi misericordioso em fornecer um meio para os pecadores serem perdoados por meio da expiação, satisfazendo condições morais de manter a justiça e a misericórdia.

Há, contudo, diferenças. A teoria governamental continua a tendência anselmiana da necessidade de satisfação. Já a perspectiva de influência moral a demonstração da misericórdia divina inspira o arrependimento, a fé e produz justiça.

Já a visão penal substitutiva sustenta que Cristo recebeu o castigo que a humanidade merecia por seus pecados, satisfazendo a justiça de Deus e reconciliando os pecadores com Deus. Nessa visão, a morte de Cristo foi um sacrifício substitutivo que pagou a pena pelos pecados da humanidade, e aqueles que crêem no sacrifício de Cristo são perdoados e declarados justos diante de Deus.

A visão governamental, por outro lado, sustenta que a morte de Cristo não foi um pagamento pelo pecado, mas sim uma demonstração da justiça de Deus e um meio de sustentar a ordem moral do universo. Nessa visão, a morte de Cristo serve como uma advertência aos pecadores e um meio de demonstrar a misericórdia de Deus. Cristo não morreu recebendo a pena dos pecadores, mas para os pecadores. Assim, aqueles que crêem no sacrifício de Cristo são perdoados e reconciliados com Deus com base em sua fé e arrependimento.

BIBLIOGRAFIA

Burge, Caleb. An Essay on the Scripture Doctrine of Atonement. Hartford: PB Gleason and Co, 1822.

Geddert, Jeremy Seth. “Too Subtle to Satisfy Many: Was Grotius’s Teleology of Punishment Predestined to Fail?” Grotiana 38, no. 1 (2017): 46–69. doi:10.1163/18760759-03800006.

Grotius, Hugo. A Defence of the Catholick Faith Concerning the Satisfaction of Christ. London: Printed for Thomas Parkhurst and Johnathan Robinson, 1692.

Guelzo, Allen C. Edwards on the Will: A Century of American Theological Debate. Wesleyan University Press, 1989, pp. 134-135.

Edwards, Jonathan. “Sermon XXV. Great guilt no obstacle to the aprdon of the returning sinner”. The Works of president Edwards, Volume IV. New York: Leavitt & Allen, 1852. pp. 424-425.

Miley, John. The Atonement in Christ. New York: Eaton & Mains, 1879.

Miley, John. Systematic theology. Vol. 1. New York: Eaton & Mains, 1892.

Miley, John. Systematic theology. Vol. 2. New York: Eaton & Mains, 1892.

Schrage, Eltjo. “Having Made Peace through the Blood of the Cross: On Legal Arguments in Grotius’s De Satisfactione Christi.” Grotiana 38, no. 1 (2017): 28–45. doi:10.1163/18760759-03800005.

Waldron, John (ed.) The Salvationist and the Atonement : A Compilation of Articles by Various Salvation Army Officers on the Need, the Nature, the Means, and the Fruits of the Atonement. Toronto, ON: Salvation Army, 1982.

Anselmo

Anselmo da Cantuária (1033-1109) foi filósofo, teólogo e arcebispo medieval.

Anselmo nasceu perto de Aosta, na fronteira da Borgonha com a Lombardia. Aos 23 anos iniciou uma viagem de três anos aparentemente sem rumo até se estabelecer na Normandia em 1059. Entrou para abadia beneditina de Bec, sob direção de Lanfranc, um brilhante professor de dialética.

Mais tarde, Anselmo foi eleito abade de Bec e a transformou em um centro intelectual. Escreveu suas obras Monologion (1075–1076), Proslogion (1077–1078) e seus quatro diálogos filosóficos: De grammatico (c. 1059–1060), De veritate, De libertate arbitrii e De casu diaboli (1080–1086).

Em 1093, Anselmo foi nomeado arcebispo da Cantuária, a sé principal da Inglaterra. Quando Anselmo viajou a Roma em 1097 sem sua permissão, o rei William não permitiu seu retorno à Inglaterra. Depois da morte do rei em 1100, seu sucessor, Henrique I, autorizou o retorno de Anselmo. Mas seria novamente exilado de 1103 a 1107.

Suas obras como arcebispo da Cantuária incluem a Epistola de Incarnatione Verbi (1094), Cur Deus Homo (1095–1098), De conceptu virginali (1099), De processione Spiritus Sancti (1102), a Epistola de sacrifício azymi et fermentati (1106– 1107), De sacramentis ecclesiae (1106–17) e De concordia (1107–8). Anselmo morreu em 21 de abril de 1109.

O pensamento de Anselmo provocou uma grande mudança teológica no ocidente. Na busca da comprensão de Deus como um ser, rompeu com a tradição apofática ao propor examinar a essência divina como um ser.

Seu método é primordialmente lógico-dedutivo. A lógica de Anselmo segue a recepção latina de Aristóteles mediada por Porfírio e Boécio. Subscrevia ao realismo na questão dos universais, argumentando que os gêneros e as espécies não desapareceriam se afastados todas as suas instâncias.

Promoveu assim, o argumento ontológico para a razoabilidade da existência de Deus. Com base nos atributos divinos inferidos a priori e dedutivamente, revisitou a teoria do resgate da expiação. Propôs a doutrina da satisfação para o ato expiatório, pois considerava ímpia a noção de resgate como uma transação comercial paga a Satanás. Assim,argumentava que era necessário que Deus se tornasse humano para satisfazer a justiça divina, maculada pelo pecado original.

A soteriologia forense e a noção de justiça de Anselmo foram concebidas em uma matriz cultural do direito franco-germânico medieval. Por esse motivo, Hasting Rashdall (1919) vê a soteriologia de Anselmo como a atuação de um advogado lombardo em uma corte feudal.

O argumento ontológico de Anselmo foi criticado pelo monge Gaunilo (século XI) com o exercício de pensamento da ilha perfeita. Se alguém imagina uma ilha perfeita, há de existir uma mais perfeita ilha, porém não correponde necessariamente a ilha existente e a imaginada. Nessa linha, Lutero, os reformadores radicais e, mais recentemente, Barth e a teologia não realista rejeitaram muito da teologia dos atributos, especialmente atributos a priori ou não revelados em Jesus Cristo, como categorias lógicas arbitrárias.

O legado de Anselmo é notável na teoria da expiação vicária ou substituição penal desenvolvida por Lutero e Calvino.

BIBLIOGRAFIA

Anselmo. Proslogion.

Anselmo. Cur Deus homo

McGrath, Alister E. Iustitia Dei: a history of the Christian doctrine of justification. Cambridge University Press, 2005.

Rashdall, Hasting. The Idea of Atonement in Christian Theology. Londres: Macmillan, 1919.

Williams, Thomas, “Saint Anselm”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2020 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2020/entries/anselm/&gt;.